(Parte1)
De acordo com o Decreto Presidencial 298/19, de 11 de Outubro, que aprova o Plano Director Geral Metropolitano de Luanda (PDGML), a área da Chicala encontra-se em uma zona definida como Centro da Cidade, admissível apenas a usos como residencial, cultural, institucional, cívica, hospitalidade, lazer e com cérceas dominantes de 8 pisos. Mas uma força superior ‘não identificada’ que veio de Marte, violou o que está estabelecido e ainda ficou com a área onde está instalado o Instituto de Planeamento e Gestão Urbana de Luanda, entidade que vetou a implementação do projecto, que extravasa aquele que, de facto, foi licenciado.

Inicialmente estimado em 200 milhões de USD, o projecto de construção de uma Marina Luanda na zona da Chicala, consumirá agora 300 milhões de USD, com a alteração não licenciada que inclui a construção de um moderno Centro de Convenções. Publicamente, pouco se sabe: se o empreendimento é de domínio privado ou se comparticipado pelo Estado angolano, ou se é na totalidade financiado com fundos públicos, mas não declarados no OGE. O que se vai dizendo nalguns círculos da alta-roda de influência empresarial, é que o negócio envolve o empresário Sílvio Alves Madaleno, e que terá contado com financiamento disponibilizado por um sindicato bancário, que integra o BFA e o Banco Valor, de Álvaro Sobrinho, irmão de Sílvio, que também pode estar ligado, cogitando-se também que terá sido emitida uma Garantia Soberana do Estado, só possível com o agrément do Presidente da República. Sílvio Alves Madaleno não fala sobre o empreendimento, que sofreu o veto do Instituto de Planeamento e Gestão Urbana de Luanda (IPGUL) por violar o Plano Director Geral Metropolitano de Luanda (PDGML), mas está a ser construído. E os que falam, pedem-nos a ocultação da identidade, porque temem represálias, tendo em conta as figuras visíveis que estão envolvidas e as ‘invisíveis’ que até poderão ser os verdadeiros proprietários.
Uma das figuras ‘invisíveis’ citadas pelas nossas fontes como tendo eventuais interesses no projecto, é o cidadão João Manuel Gonçalves Lourenço. Por associação directa ou de alguém a ele ligado, já que, com alguma regularidade e secretismo, tem visitado a obra para constatar a sua evolução. Sendo um projecto privado, justifica-se o secretismo. Não sendo, como acontece noutras visitas, seria reportada pelos seus órgãos de apoio e de comunicação públicos e privados.
A previsão de conclusão do Centro de Convenções seria Maio. Seria, porque o nível de execução indica que se poderá estender até ao final do ano. E terá sido do próprio, essa ‘força superior’ que interferiu, em favor do projecto, para expropriação de áreas pertencentes ao Estado (Governo Provincial) onde funciona o próprio IPGUL que não licenciou o projecto porque não era o órgão competente? Desse acto resultaram as devidas compensações para arrecadação de receitas para o Estado (Governo Provincial)?
Por outro lado, quem assumirá os custos da transferência e do realojamento das famílias que vivem na Chicala, cujas casas serão demolidas, tendo em conta que, apesar da entrada que está a ser construída em frente ao Memorial, o musseque não combina com o projecto? Também essa intervenção envolverá os órgãos de administração do Estado, e como já aconteceu noutros casos, teremos mais cidadãos que com o que têm vivem com alguma dignidade assegurada por décadas de trabalho, mas correm o risco de ser atirados à condição de precaridade por anos seguidos? A chuva, ao sol, a todas as intempéries…
E há também o desassoreamento e a limpeza dos canais que ligam à ponte da Ilha e à Baía, fundamentais para a navegação das embarcações no acesso à parte interior da Marina. Essa intervenção será custeada pelo Estado, por via do Ministério dos Transportes, ou suportadas por fundos contemplados no financiamento global do projecto? E foi elaborado algum estudo para aferir o impacto ambiental, bom ou mau naquela área, por alguma entidade distanciada dos interesses do(s) donos do projecto? Por que razão não existe nenhum tipo de informação visível à entrada ou noutro local do recinto da obra, como obriga a lei, sendo privado ou ainda que, comparticipado pelo Estado?
Para responder essas questões, iniciamos, faz algum tempo, a recolha de informação diversa que divulgaremos por partes. Mas, a nossa pretensão e empenho tem sido profundamente dificultada pela falta de transparência e de probidade, questões que não são propriamente novidade, porque caracterizam a gestão da coisa pública e privada na generalidade. Uma prática que esperávamos não ver mais alimentada a partir de cima.
Quase nenhuma das partes envolvidas quis falar sobre o assunto. Porquê? Logo, qualquer inexatidão nos dados, não constitui responsabilidade que nos deve ser assacada. Estabelecemos contacto com o empresário Sílvio Alves Madaleno e com o Gabinete do Presidente da República. Não fomos respondidos. Ou melhor: como se diz na gíria, “fomos ignorados com sucesso”.

REFERÊNCIAS DISCRITIVAS DO PROJECTO
Bem ao meio da parte mais nobre da Praia da Chicala, no fim da avenida Massano de Amorim (circunscrição das Ingombotas), numa vasta área que vai para lá de toda a parte frontal do Memorial Agostinho Neto e do anexo onde se diz, conservam os restos mortais do ex-Presidente José Eduardo dos Santos, estão a ser edificadas um conjunto de infraestruturas de grande porte e múltiplas valências. Umas, de maior visibilidade, relacionadas com um Centro de Convenções, que decorrem a todo o gás. Outras, iniciarão numa fase posterior, como a construção de um hotel de grande referência, residências de alto padrão, zonas para parqueamento de viaturas e a marina que dá nome ao projecto, para estacionamento e manutenção de embarcações de luxo. Prevê-se que contemplará, ainda, um campo de golfe e várias quadras desportivas e constatamos no local, trabalhos de remoção do solo arenoso e de introdução de outros.
Mas, o que se destaca no momento, é mesmo o enorme edifício rectangular, que está a ser erguido e localizado a uma centena de metros do mar que banha a Chicala, onde funcionará um imponente Centro de Convenções. Será, como tudo parece indicar, o maior, o mais completo e sofisticado do país. Temos necessidade, quando já existem outros espaços, com uma taxa de ocupação que não paga as despesas, e o país, fome, falta de medicamentos nos hospitais, mortes devido à cólera, e outras enormes prioridades não atendidas por falta de recursos? Mas essas são contas de outros rosários.
Um pouco mais para dentro, no espaço frontal entre o Memorial e o hotel Baía, para ligar a via principal (EN100), erguem-se já os pilares de sustentação do tabuleiro de uma ponte que facilitará o acesso aquele recinto, evitando a outra, continuidade da Massano de Amorim, cortada agora por um paredão que separa o gueto do recinto da obra. Na costa, rasgando as entranhas do mar, já foi concluído um esporão com cerca de meio quilómetro, que dispõe de espaço e largura suficiente no seu dorso, para permitir a circulação de todo o tipo de veículos e de máquinas. E não muito distante dele, duas grandes embarcações fazem a dragagem de areias, eventualmente para limpeza da área ou para roubar espaço ao mar e protecção do empreendimento, tendo em conta que, a zona é fustigada por calemas, pelo menos duas vezes ao ano.
Amiúde, as obras dirigidas por técnicos brasileiros, portugueses e espanhóis sob coordenação da Afrimetal – Engenharia e Construção (uma empresa falida em Espanha e adquirida por Sílvio Alves Madaleno), têm recebido a visita discreta do cidadão/Presidente João Manuel Gonçalves Lourenço. A informação foi-nos prestada por representantes da comunidade intranquila que reside nas imediações, que observam todos os movimentos e etapas do desenvolvimento das obras, e o vaivém de máquinas e de viaturas ligeiras e pesadas, sem saber ainda qual será o desfecho. Ao longo de todos esses anos, apenas ocorreu um contacto com a administradora das Ingombotas, que não foi bem-sucedida, porque também não tinha muito o que dizer.
Para aquela população que também tem filhos a trabalhar na obra, o projecto “tem sim a intervenção do Presidente João Lourenço. Senão, que razões justificam as visitas, como que às escondidas, sem aquele aparato exagerado de segurança habitual que o acompanha nas suas deslocações? Aqui ele vem sem o aparato todo, tipo quando entrou na Presidência. Afinal o projecto é de quem? Acha mesmo que alguém sem poder ocupa tudo isso e faz o que faz?” – Questionam-nos. Aliás, do Palácio, o seu inquilino pode desfrutar de todo o cenário da obra, que tem na frente o musseque e se estende até a ilha do Mussulo. De carro, descendo pela Assembleia Nacional ou em direcção a Marginal seguindo depois por detrás da Fortaleza, o trajecto não leva mais de 10 minutos. “Ouro sobre azul”, que se encaixa na perfeição. Sempre fica mais fácil deslocar-se em direcção ao mar, do que para o interior, cada vez mais atulhado de viaturas.

A CALIFÓRNIA ADIADA E O DUBAI DE LUANDA
Rodeado pelo grupo de moradores que serviu de interlocutor, constituído sobretudo por jovens em grande medida revoltados e que viam naquele momento uma oportunidade para desabafar, falando quase todos ao mesmo tempo, meio a gozar, meio a sério, tentei argumentar que o objectivo daquela obra – barrada por um paredão cuja porta é protegida por efectivos da empresa Securitas (de Sílvio Madaleno) -, e a forma acelerada como decorria (de segunda a segunda e num regime de escravatura, como disseram), poderia ter alguma relação com a cruzada do Presidente João Lourenço pelo mundo, para atrair investimento e o turismo, fundamentais para gerar emprego e recursos. A assistência riu-se em uníssono, perguntando-me sobre os benefícios de tanto despesismo de dinheiro público ao longo desses anos. E um dos jovens, de formação muito sólida, também meio a gozar, meio a sério, disse inclinar-se mais para “uma aposta compensatória”, antes do fim do mandato, para desviar as “nossas atenções do falhanço que foi a transformação de Benguela numa Califórnia, e dos hospitais bonitos que não servem para eles mesmos, porque quando estão doentes vão para o estrangeiro tratar-se, nem para nós, porque não têm medicamentos. Agora pretende fazer aqui o Dubai de Luanda”.
Outra versão, aponta igualmente para o envolvimento de fundos injectados por Manuel Vicente, por via de uma das suas empresas, a SODIMO, detentora de algumas parcelas de terreno na Chicala. Essa participação, sobretudo para o caso específico do hotel de cinco estrelas que o novo projecto não licenciado também contempla, de acordo com fontes por nós contactadas, inclui um empresário dos Emirados Árabes Unidos, supostamente, representando interesses da estrela portuguesa de futebol, Cristiano Ronaldo. Será?
O projecto, de acordo com outra fonte que nos pediu também reserva sobre a sua identidade, “não tem nada a ver com o licenciado, estimado em 200 milhões de USD, nem o processo de licenciamento, estimado em cerca de 4 milhões de dólares, foi realizado, pelo que, Sílvio Madaleno ou a sociedade constituída, estarão a lesar o Estado, que se diz com apertos de tesouraria”.

QUANDO FALTA ÉTICA E DECORO NA GOVERNAÇÃO
O complexo denominado “Marina Luanda” tem agora a sua implantação numa área total de 1.670,058 m², correspondentes a 43 lotes dos 17 inicialmente licenciados a partir de Setembro de 2010, mas apenas para “edificação de uma Marina” e não mais. Parte dos lotes foram usurpados à empresária Welwitschea Abrantes José dos Santos, também conhecida por Tchizé dos Santos, que em contacto estabelecido por nós, acusou o empresário Sílvio Alves Madaleno de práticas desonestas. Para além dos terrenos que lhe pertencem na zona onde decorre a implantação do projecto, Sílvio Alves Madaleno é também acusado por Tchizé dos Santos, de não respeitar os direitos societários que mantém com o mesmo na Marina Baía, ao fundo da Ilha de Luanda, na viela Murtala Mohammed, que vai dar à esquadra policial. Nela, Tchizé dos Santos é detentora de 15% das acções, mas Sílvio Madaleno não tem permitindo sequer qualquer participação ou contacto com um(a) representante.
A iniciativa de implementação do projecto da Marina Luanda na Chicala, começou a ser gizada em 2009/10, ao tempo da governadora de Luanda, Francisca de Fátima Espírito Santo. Em Setembro de 2010, recebeu do Instituto de Planeamento e Gestão Urbana de Luanda (IPGUL), órgão do Governo da Província de Luanda dirigido por Hélder da Conceição José, o pedido de renovação da licença administrativa sobre cerca de 17 lotes com títulos de Direito de Superfície, pressupondo que o projecto da Marina Luanda resultava de um conjunto de várias parcelas concedidas a várias empresas e representantes, por via de uma única individualidade, que era Valter Virgílio Rodrigues. O visado intervinha por procuração no contrato-promessa com o Governo da Província de Luanda, em representação da Sociedade Marina São Miguel, S.A. No entanto, a sede da entidade representada, situada em Luanda, na Avenida Comandante Gika n.º 295, 2.º andar, Apt. 42, Bairro Alvalade, município da Maianga, tem exactamente as mesmas referências apresentadas por Sílvio Alves Madaleno, na escritura do direito de superfície rubricada entre o Governo da Província de Luanda e a Marina Luanda, S.A.
O pedido de renovação solicitado por Sílvio Alves Madaleno apresentava títulos dos espaços que não se encontravam assinados, nem pelo promotor e nem pelo Governo da Província de Luanda, sendo que, para o IPGUL, não possuíam nenhum valor jurídico. Esse órgão lembrou na ocasião, em memorando endereçado à governadora, que a “versão licenciada do projecto de acordo com os limites apresentados, não se sobrepunha nem englobava espaços concedidos a outras entidades do Estado”.
No entanto, foi em 2021, altura da solicitação de mais uma renovação pelo empresário Sílvio Madaleno, e por não existir nos arquivos do IPGUL nenhuma cópia do dossier em desenvolvimento até então, e após ter sido solicitado um exemplar do projecto “a ser renovado” para efeitos de cadastro, que se constatou que “estava a ser executada uma versão diferente da apresentada em 2010, com um potencial de intervenção com cerca de 1.670,058 m2, e um aumento de 17 lotes para cerca de 43 existentes na nova versão, englobando nessa altura, espaços previamente cedidos a outras instituições estatais, nomeadamente o IPGUL e a Secretaria do Governo Provincial de Luanda”.

ESPAÇOS PERTENÇA DE OUTRAS INSTITUIÇÕES FORAM ABSORVIDOS
Em virtude dessas alterações, o promotor, Sílvio Alves Madaleno, foi informado que o actual projecto carecia de nova avaliação, porque “violava espaços cedidos a outras entidades”. Do mesmo modo que, pela dimensão do projecto, o título de propriedade apresentado não deveria ser emitido pelo órgão provincial, porque de acordo com a Lei de Terras n.º9/04 de 9 de Novembro, no seu artigo 43º, ponto 1, alíneas a), b) e c), citam que: “A área dos terrenos urbanos, objecto de contrato de concepção não podem exceder os dois hectares nas zonas urbanas e os cinco hectares nas zonas suburbanas”, pelo que, “a concessão de áreas superiores é da competência do ministro que superintende o cadastro”. Ou seja, o ministro dos Transportes, e não o governador da Província, conforme documento apresentado, passado em nome de Sílvio Alves Madaleno.
O parecer do IPGUL termina com o esclarecimento de que a nova versão do “projecto Marina de Luanda apresenta cérceas que variam entre os 2 pisos aos 40 pisos, contudo, de acordo com o Decreto Presidencial 298/19, de 11 de Outubro, que aprova o Plano Director Geral Metropolitano de Luanda (PDGML), o lote em causa encontra-se dentro de uma zona definida como Centro da Cidade, admissível a usos como residencial, cultural, institucional, cívica, hospitalidade, lazer e com cérceas dominantes de 8 pisos”.
A partir daí, Sílvio Alves Madaleno optou por outras vias e o projecto saiu da alçada do Governo da Província de Luanda, subiu para outros níveis de intervenção que, em violação ao que define o Plano Director Geral Metropolitano de Luanda, autorizou a execução das obras à todo o gás. Ora, tal decisão, que incluiu a expropriação de “espaços previamente cedidos a outras instituições estatais, nomeadamente o IPGUL, o próprio órgão licenciador do processo, e a Secretaria do Governo Provincial de Luanda”, não foi nem pode ser atribuída a Sílvio Alves Madaleno. Daí que, aventar-se a hipótese de ter contado com a intervenção do titular do Ministério dos Transportes, e que este, colocando a questão ao Presidente da República, terá intervido de forma directa ou indirecta, influenciando a violação do Plano Director e a implementação de um projecto com licenciamento adulterado e não renovado.
E foi essa a razão que justificou, a 27 de Março, o envio de uma carta à direcção do Gabinete do Presidente da República e à Sílvio Alves Madaleno, na qual solicitamos esclarecimentos sobre os procedimentos e envolvimentos relativos a construção da Marina Luanda na Chicala. Importante investimento, sim, mas que envolve muitas e gritantes irregularidades, atropelos à lei, alguma conflitualidade social (e política), mas também institucional e extravasa competências. O que também não constitui propriamente novidade, porque continua a ser difícil distinguirmos onde começa e termina a defesa do que é pertença do Estado, dos interesses pessoais de quem deveria servi-lo, com ética, comprometimento e decoro.
No fundo, só se virou o disco, já que a letra e a música continuam a ser a mesma: “venhaaaaaa”.
Continua…