QUATRO ANOS DEPOIS, MAIS UMA CONTRIBUIÇÃO PARA UM DISCURSO À ‘NAÇÃO’

O seu autor deveria pedir perdão por continuar a recorrer à figura do “inimigo”, (interno desta vez) para justificar tudo o que, de negativo, acontece em Angola! Mantém-se, há décadas, a incapacidade do regime se reconhecer como o responsável pela deplorável situação em que o país e a sua população se encontram…  

CESALTINA ABREU

Pensando no que tenho vontade de dizer sobre o discurso de ontem percebi que, no geral, as questões centrais se mantêm. Tanto sobre o ‘facto’: leitura de 55 páginas, num tom monocórdico, inexpressivo, despido de sentido de Estado, recorrendo a uma imensidão de números e detalhes para dispersar a atenção quanto sobre o conteúdo! Em termos de conteúdo, o mesmo sentimento de que faltou um pedido, sincero (não como o de 26 de Maio de 2021), de desculpas à Nação:

– Por não se ter ainda priorizado a construção social, em termos democráticos e plurais da prometida, e desejada, Nação;

– Pelo (ainda pior) estado da sua população, que viu agravarem-se as desigualdades sociais e a pobreza, em resultado da simultaneidade de crises: a política, a social, a económico-financeira (resultado da prevalecente má governação), a ambiental, e as consequências da recente pandemia.

Esse pedido de desculpas deveria ser acompanhado do reconhecimento:

– Da situação generalizada de fome em Angola (não é relativa, não senhor!): no IGF, Índice Global da Fome 2024, contrariamente à maioria dos países lusófonos, a posição de Angola agravou-se em relação a 2023(1), passando do 99.º lugar para o 103.º em 2024(2). No ‘ranking’ da fome ,com base na ‘lista dos países que mais passam fome no mundo’ do IGF 2023, Angola já ocupava o 11.º lugar dos 20 países, ter-se-á agravado neste último ano(3):

– De que, embora não tenha havido actualização dos dados sobre a Pobreza Multidimensional, presente em todos os municípios de Angola e atingindo mais de 54% da população em 2020 (com base nos dados do Censo de 2014)(4), é perceptível a deterioração da situação e, mais grave, a ausência de políticas e acções de Estado para reverter a situação;

– De que a crescente desigualdade social é a principal causa da fome e da destituição de grupos da população marginalizados na economia de mercado, agravada pela inexistência (ou disfuncionalidade) de disposições institucionais visando a criação de redes de segurança social, apesar das Estratégias de Combate à Pobreza (2004) e da Segurança Alimentar (2009)(5).

– De que o acesso e uso efectivo de direitos fundamentais aos serviços públicos de qualidade nas áreas de educação (pública e universal), de saúde (preventiva), de acesso à água e energia, de habitação e saneamento, a um ambiente saudável, estão longe de mínimos satisfatórios, negando à maioria as mais básicas condições de uma vida condigna e, a todos, as aspirações de um futuro melhor;

– De que o desemprego, em média de 32,4%, aumenta para 64,5% na faixa dos 14 aos 24 anos, e que se deve à ausência de políticas que de facto contribuam para (voltar a) diversificar a economia angolana, e ao mau ambiente de negócios em Angola(6);

– De que, devido a essa simultaneidade de crises, a emigração de angolanos, só para Portugal, mais do triplicou desde 2017, principalmente jovens e com filhos, em busca de melhores condições de vida e de oportunidades de esperança no futuro(7);

– De que a ausência de uma Visão de País, socialmente construída, e consequentemente a inexistência de um sentido de Missão, de objectivos estratégicos, de Valores e Princípios (a crise de ética) e de estratégias partilhadas, não criou Nação, gerou atraso, pobreza, exclusão, provocou desânimo e teve um efeito demolidor na autoestima das angolanas.

E a finalizar:

– Redobrar o pedido de desculpas ao “Futuro de Angola”, as suas crianças, pelo visível, vivido e sentido agravamento da situação retratada em ‘A criança em Angola. Uma análise multidimensional da pobreza’ (INE 2018), e tentar explicar porque desde então nunca se referiu ao mesmo(8):

– Comprometer-se, publicamente, a assumir as dotações reais do OGE 2025 para sectores com implicações directas na vida e bem-estar das crianças, como: Educação (pública, de qualidade), Saúde (preventiva), Alimentação variada e de qualidade (em casa e na escola, investindo na Agricultura e nas Pescas), Protecção Social (com recursos nacionais), Energia estável e Água corrente, CulturaLazer e Desporto(na escola e nos bairros/aldeias), Habitação (não abrigo), Trabalho para os Pais/Mães, inspirando-se nos Compromissos de Dakar, de Abuja, da SADC, e na Convenção sobre os Direitos da Criança.

Em jeito de despedida, pedir perdão por continuar a recorrer à figura do “inimigo”, (interno desta vez) para justificar tudo o que, de negativo, acontece em Angola! Mantém-se, há décadas, a incapacidade do regime se reconhecer como o responsável pela deplorável situação em que o país e a sua população se encontram.

16 Outubro 2024

Referências

(1) RFI, 28 Maio 2024, Angola – 38% de crianças em situação de desnutrição crónica, citando o Relatório sobre o Estado da Nutrição e da Segurança Alimentar no Mundo em 2023;

(2) HEALTHNEWS, 12 de Outubro 2024. Lusófonos melhoram pontuação no Índice Global da Fome 2024,mas preocupação persiste;

(3) PACTO CONTRA A FOME, 21 agosto 2024. Fome no mundo-um panorama da situação actual;

(4) https://ophi.org.uk/publication/national-mpi-directory/mp-angola-2020;

(5) Expansão, 13 Outubro 2024. REA em ‘morte cerebral’, Entreposto ineficiente e produtores sem negócios;

(6) VOA, maio 23, 2024. Angola-Taxa de desemprego entre jovens chega a 63,5 cento e economia;

(7) Novo Jornal, 27 Setembro 2024, número de imigrantes angolanos em Portugal mais do triplicou desde 2017;

(8) Novo Jornal, 10 Dezembro 2022. “A criança em Angola ainda não é uma prioridade. Por isso é que ainda temos a situação que temos” (Ivan Yerovi, rep do UNICEF).

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