Poder, heróis da foto e “why?”

Noto, com fascínio e pavor, que tanto em Moçambique quanto em Angola, as pessoas que mais fervorosamente defendem o poder, recorrem sempre ao argumento de que FRELIMO e MPLA é que trouxeram a liberdade como se essa fosse a única condição de legitimação do poder e sem se darem conta de que estão a convidar outros a se rebelarem.

Por Elisio Macamo*

Dos nossos irmãos do Atlântico chegam-nos os ecos de desobediência civil com enorme potencial para trazer de volta os ideais pelos quais se lutou pela independência em Angola e Moçambique. Um jovem músico intrépido, Gangsta77, convocou no espaço duma semana manifestações pacíficas difíceis de serem controladas pelas forças da ordem e segurança com uma adesão impressionante. Mesmo tendo em conta o facto de que isto se verificou principalmente em Luanda, onde a oposição teve bom desempenho nas últimas eleições, dá que pensar.

Eu pertenço a uma geração que se relaciona com a política como quem torce por uma equipa de futebol. Uma vez FRELIMO, sempre FRELIMO. E se é FRELIMO, então em Angola vai ser MPLA, Cabo Verde vai ser PAICV, Guiné-Bissau PAIGC e São Tomé MLSTP. Se parece imbecil é mesmo porque é imbecil, reconheço. Mas não consigo fazer diferente apesar de por vezes tentar. Mas como no futebol reservo-me o direito de criticar a direcção, os treinadores e os jogadores também mesmo sabendo que no seu lugar não faria melhor. Talvez aí resida a minha diferença dos demais torcedores, também porque nunca tive nenhum interesse em fazer política activa, pois esta significaria militância. Militância, no nosso contexto, isto é contextos autoritários, significa muitas vezes prescindir do exercício de cidadania.

Então, em Angola torço pelo MPLA – com cada vez menos razões, admito voluntariamente. Por causa disso, vejo com dor como esse grande partido padece dos mesmos males que estão a fazer da FRELIMO um factor de instabilidade política em Moçambique. Nesta reflexão vou concentrar a minha atenção num, de muitos aspectos, que ambos os partidos têm em comum. Já em 2016 dissertava sobre isto num artigo científico, embora olhando apenas para a FRELIMO. Falava duma “teleologia política” na base da cultura política destes partidos que saíram de lutas armadas de libertação nacional.

Dizia nesse artigo que essa teleologia política tinha sido criada por um tipo de violência simbólica e física produtora dum relato da história que dava legitimidade à luta dos movimentos de libertação ao mesmo tempo que servia para desligitimar todas as outras manifestações alternativas de nacionalismo. O resultado disso era a tal teleologia política, isto é a prerrogativa de poder da FRELIMO e do MPLA. Fazer política, assim, passou a ser a reprodução de condições para que mais ninguém assumisse o poder. Noto, com fascínio e pavor, que tanto em Moçambique quanto em Angola, as pessoas que mais fervorosamente defendem o poder, recorrem sempre ao argumento de que estas formações é que trouxeram a liberdade como se essa fosse a única condição de legitimação do poder e sem se darem conta de que estão a convidar outros a se rebelarem.

Nunca fui fã de Frantz Fanon e uma das razões é a sua abordagem da violência no primeiro capítulo de “Os Miseráveis da Terra”. Em mãos inaptas, pode servir para matar a política. Infelizmente, é o que aconteceu em Moçambique e em Angola com as minhas equipas. A ideia duma catarse colectiva em que o colonizado responde à violência colonial com violência como forma de emancipação pode ser uma boa maneira de celebrar o momento de libertação. Só que não funda a política. O que isso funda é a ideia de violência como pressuposto do exercício do poder. Ou seja, o apego à ideia de que nós (FRELIMO e MPLA) representamos o verdadeiro e único interesse nacional torna supérflua qualquer ideia de país baseada no reconhecimento da diversidade. Parecendo que não, isso retira legitimidade ao poder – que fica apenas violência – e, por via disso, inviabiliza a política.

Com efeito, a cultura política destes partidos sempre assentou na negação da política. A abertura para o pluralismo político não mudou nada, pois os que herdaram o poder da independência são pessoas que ainda não se libertaram desta teleologia política. É verdade que as guerras civis contribuíram bastante para que essa mentalidade se cimentasse. Ao mesmo tempo, porém, na incapacidade de se libertarem da teleologia política as elites políticas dominantes têm investido muito pouco na criação de condições para que o seu poder seja realmente legítimo.

Uma das formas através das quais o poder se torna legítimo é a maneira como quem o exerce protege as minorias. Quando um governante diz que “o povo elegeu-nos”, pode estar a se equivocar se pensar que um instrumento de selecção – a maioria eleitoral – significa a prerrogativa de só fazer a vontade dessa maioria. Poder legítimo é aquele que cria condições para que aquele cuja vontade não se impôs se sinta parte da mesma comunidade política. Isso não significa fazer também a sua vontade. Significa não lhe dar razões para se alienar do país. E é neste ponto que as elites políticas da FRELIMO e do MPLA têm falhado redondamente.

Nos dois países há movimentos jovens bastante promissores. Tipicamente, quer na costa atlântica, quer na índica responde-se a esses movimentos com repressão, portanto com a negação da política. Como dizia Hannah Arendt na sua análise espectacular da violência, o contrário de violência não é a não-violência. O oposto de violência é poder, sendo que poder é política, isto é a capacidade de deliberação no respeito pela diferença. Se eu fosse assessor político desses dois partidos o conselho que havia de lhes dar seria mesmo este: invistam na política, usem este momento para regressarem ao verdadeiro projecto de independência que consistia na criação duma comunidade política em que cada membro se sente respeitado, independentemente de estar do lado de quem detém o poder ou não.

Reproduzo duas músicas aqui que podem muito bem servir para reflexão. Já escrevi um texto sobre Paulo Flores e a sua composição “Heróis da Foto”. Quando oiço esta música vejo angolanos com enormes dificuldades de reconhecerem no seu país a realização do projecto de independência. Serve para Moçambique. Partilho também a composição de Stwart Sukuma, “porquê?” que me parece também traduzir a frustração dum número cada vez maior de moçambicanos com o mesmo projecto. Stewart diz que precisamos de respostas (ku laveka nhlamulu) e ainda constata que amamos sem fazermos nada, amamos e viramos as costas.

Para termos as respostas que Stewart Sukuma nos convida a procurar, precisamos de colocar as perguntas certas. A FRELIMO e o MPLA há muito deixaram de colocar perguntas certas. Gerem apenas a sua ignorância. É preciso sair da prisão intelectual que nos sussura aos ouvidos que quem pensa diferente e não nos aplaude – mesmo quando pensamos estar a fazer o bem – é mero inimigo da pátria. Uma pátria apreendida por um número crescente de pessoas como estando refém dum grupo não pode ser pátria. Angola e Moçambique precisam de acordar. É urgente.

Sobre o autor

*Elísio Macamo é Professor Catedrático de Sociologia e estudos africanos na Universidade de Basileia, na Suíça. Formou-se em Moçambique, Inglaterra e na Alemanha, onde se doutorou e fez a sua agregação em Sociologia Geral e Sociologia do Desenvolvimento. É membro do comité científico do CODESRIA (Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África), membro fundador da Escola Doutoral de Estudos Africanos da Universidade de Bayreuth (Alemanha), director do Centro de Estudos Africanos de Basileia (20011-2019), é membro do Conselho do International African Institute (Londres), co-editor da African Sociological Review, membro do conselho científico das revistas DADOS, Africa Spectrum, Stichproben, Revista Sociológica Angolana, etc. Dirige o programa de doutoramento do Centro de Estudos Africanos na Universidade de Basileia e tem uma publicação no prelo (Sovereign Reason: Issues in the methodology of the social sciences. African Minds: Cape Town).

Referências:
https://youtu.be/7JKIQo2T0m4
https://youtu.be/Ibl9CJm6dro

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