Partido dos camaradas: o vazio das promessas

A derrapagem em toda a linha do estado de direito e democrático pela captura do Estado, corrupção sistémica, cerceamento das liberdades, violações e abusos de direitos humanos, reforço da concentração de poderes na instituição presidencial, sequestro das instituições judiciais, tentativas de bloqueio e implosão de partidos da oposição, instrumentalização de instituições civis de diversa natureza, quasi-monopólio da média marcam o momento crucial que Angola atravessa.

Por Mário Paiva

Apaziguadas que foram por agora as querelas internas no partido dos camaradas, pesem os interesses do congresso dos próximos dias, abordagem da “luta selectiva contra a corrupção” dos ditos marimbondos deram lugar ao estabelecimento de um campo de fidelidades absolutas a liderança. O contraditório foi praticamente extinto e o unanimismo, os encómios e a bajulação viram seu estatuto consolidados. A renovação na continuidade – um slogan caro ao partido dos camaradas – encontrou esteio na quota feminina de 50% e na ascensão de jovens – uma panóplia de dirigentes “yes man”, incapazes não só de dizer não, mas também de sugerir caminhos diferentes face a linha oficial.

A ousadia do militante António Venâncio de candidatar-se ao lugar cimeiro da hierarquia do MPLA, foi rapidamente abafada de facto e de jure, entre campanhas não oficiais de difamação e intimidação, mas o seu efeito político vai perdurar muito após o congresso. O mito sagrado do unanimismo foi seriamente abalado, assim como dos dirigentes inamovíveis.

A reiterada estratégia dos cavalos de Troia e dos submarinos amarelos para fazer implodir a UNITA, desconseguida no passado mais recente, ganhou novo fôlego, sorvendo recursos financeiros e materiais avultados de origem obscura, encontrando nos círculos castrenses mais ressabiados e avessos as mudanças e reformas democráticas, um protagonismo inusitado com os “generais da sombra” e os “oficiais de campo” de carácter oficioso, chamados a “missões patrióticas” sem assumir de jure cargos e tarefas do Estado. 

A dimensão da Administração/governo paralelo, que tinha ganho um foro privilegiado no longevo consulado do presidente Dos Santos – mas afoita nas lides de negócios e outras tratativas não escritas – ganha agora um cariz mais opaco, mais nebuloso, ancorado nas lealdades antigas da tropa e de matiz familiar ou proximidade.

Ao ascender a liderança da UNITA há alguns anos, Adalberto da Costa Júnior veio romper com uma certa linha de acomodação a transição política de uma oposição sempiterna que não almejaria o poder pela alternância política em troca de um falso bipartidarismo, trazendo um exercício mais activo e próximo das demandas sociais e económicas dos cidadãos, algo que ajudou a tirar o partido do Galo Negro do seu eleitorado tradicional, uma clausura com dificuldades em romper. Nesse sentido, a aproximação com diferentes sectores das oposições e da sociedade civil viria a ser uma consequência lógica, quando se percebeu nas hostes do principal partido da oposição, que a soma aritmética do descontentamento popular não era igual a um apelo ao voto singular na UNITA nos próximos pleitos.

A perseguição quase obsessiva que o partido da situação por ora sob liderança de João Lourenço promove contra ACJ e a UNITA, utilizando todas as armas e recursos do partido-estado – desde o lawfare, aos cavalos de Troia, a alegada sedução de benesses e prebendas, passando pela intimidação e violência politicas, aliados a tradicional diabolização – haveria de conduzir, ao contrário do que as mentes obtusas das estratégias securitárias pensaram – não a implosão da UNITA e ao descrédito da sua liderança, mas, paradoxalmente, ao granjear de maiores apoios dentro e fora das fileiras do Galo Negro. 

Isto mesmo pode ser aferido não só pelo elevado score eleitoral de ACJ na corrida à presidência do partido UNITA, mas também, pelo indiscutível aumento da sua popularidade fora dele.

Esta “perseguição impiedosa” encontrou acolhimento nas teses dos referidos círculos fundamentalistas do regime, segundo as quais uma UNITA domesticada, sujeita aos ditames do status quo, seria a melhor opção para a sua sobrevivência política. O efeito de boomerang político que esta estratégia está a ter para o próprio MPLA, começa a ser evidente com a crescendo do descrédito do MPLA entre as populações remetidas ao vilipêndio sistemático de indigência de toda a ordem: fome, desemprego, carência de habitação, cuidados primários de saúde, acesso a educação ….

A alegada recusa do presidente emérito José Eduardo dos Santos em comparecer ao congresso do partido dos camaradas, era um dos epílogos possíveis após um período de conturbada e mal disfarçada relação entre o antigo e actual inquilino do palácio da Cidade Alta. Nem o recente retorno de JES a Luanda após um “exílio constrangido por motivos de ordem médica e política” e os posteriores comentários apaziguadores do presidente JLO em torno de especulações sobre a existência de tensões latentes entre os dois grandes protagonistas do MPLA, puseram água suficiente na fervura. 

O denominado “arquitecto da paz” antes celebrado por todos os seus pares nas hostes vermelha-e-preta, pelo menos até a data do pleito de 2017, não podia deixar de ficar agastado por aquilo que se consagraria por uma luta enviesada contra a corrupção que teria nos seus familiares e alguns dos indefetíveis mais próximos, os alvos declarados desta cruzada. Sobretudo quando altas figuras do antigo/actual regime desfrutam tranquilamente do acúmulo de riqueza após uma campanha de recuperação de activos cuja opacidade já não espanta ninguém.

Os próximos capítulos desta novela inconclusa da transição de poderes no seio do MPLA, tão badalado alto e bom som como exemplo de maturidade política, quanto caustica e assaz vingativa em surdina, ditarão o figurino mais provável do partido dos camaradas: um MPLA moldado à nova liderança, repleto de ambiciosos (in)activos políticos jovens e quadros adaptados ao Sistema, com os ditos marimbondos acantonados, silenciados e domesticados ou remetidos a dissensão de boca pequena. 

Entrementes, a ascensão de um reduzido círculo de “fideles parmi les fideles” entre os apparatchiks, os castrenses fundamentalistas, os empresários do momento, poderia reinar, com ou sem ruído. Resta saber até que ponto o presente chefe do Kremlin angolano vai assumir as despesas de aprofundamento das fracturas no seio do partido dos camaradas.

Temerosos de um cenário de eleições gerais transparentes e justas, o campo situacionista tem-se desdobrado em expedientes deletérios da verdade eleitoral democrática, seja pela arquitectura jurídico-legal talhada a martelada para definir o ganhador antes do pleito; seja pelo torpedear sistemático de todos os activos capazes de induzir uma transição democrática séria – partidos da oposição, organizações da sociedade civil, instituições do Estado – seja mesmo pelo condicionamento da administração eleitoral e o sequestro das instituições judiciais, como o Tribunal Constitucional e outras. 

Sendo o processo político contemporâneo angolano marcado indistintamente pelo estigma de sucessivas eleições fraudulentas, tanto o postergar indefinido das eleições autárquicas como as ameaças sobre as próximas eleições gerais, não ajudam a credibilidade interna e externa do governo do presidente João Lourenço, acossado que está por uma grave crise económico-financeira e social, num contexto em que minguam apoios e investidores exteriores.

Acresce o pingue-pongue de uma diplomacia errática que navega entre sedução dos pares a Oriente (extremo e próximo) e os apelos ao Ocidente, entremeada com aproximação a regimes com matizes fundamentalistas religiosos e autoritários como a Turquia, culminando no desastre do desapego ao bloco regional da SADC no momento critico da pandemia, não favorece a atração de investidores nem promove a confiança política.

Tanto as oposições como a sociedade civil não podem, uma vez mais, cair na tentação fácil da leitura que o aumento do descontentamento popular, o agravar da crise económico-social, precipitados pelo crispação e intolerância políticas – vão traduzir-se automaticamente no voto garantido da alternância. Não! Não vão, nem a vida nem a política funcionam assim.

Primeiro, porque o sistema está viciado a partida e consequentemente, os resultados transparentes não estão garantidos. Longe disso. Basta ver de que modo a operação de confirmação de identidade e residência pode ter consequências no acesso ao simples acto de votar. Se acrescermos a isso a eliminação do escrutínio local e juntarmos a autoridade eleitoral igualmente condicionada, temos alguns dos temperos principais a fraude anunciada.

Sem convocação de uma participação tão massiva quanto possível primeiro de toda a cidadania, mas em particular dos potenciais votantes, nada estará garantido. Enganam-se também aqueles que entre as oposições e a sociedade civil pensam poder prescindir dos potenciais eleitores do campo situacionista, ou dos militantes que alvitram um devir verdadeiramente democrático entre o partido da situação. Apesar de não dominarem o aparelho nem sobressaírem aos cargos dirigentes, são esses tantos “António Venâncio” ocultos que podem assegurar uma democracia real, fora do colete-de-forças do tradicional partido único. 

Fundamental o sobressalto cívico generalizado e a indignação, podem ajudar a conter esta vaga autoritária.

Se este caminho vai ou não ser feito pela via de uma concorrência política aberta, transparente e leal, ou pelo caminho obtuso da intolerância, cerceamento de liberdades e anulação dos adversários – isso dependerá em grande parte da atitude do partido que governa Angola. O presidente João Lourenço chegou ao poder em 2017, com a promessa de um novo começo de luta contra a corrupção e respeito pelas liberdades democráticas, a reconciliação nacional e milhares de empregos para a juventude. Chega ao final do mandato com um balanço altamente mitigado que não pode, nem de perto nem de longe, ser atribuído as consequências da pandemia da Covid-19. 

Depois de um breve hiato inicia de aparente alargamento dos direitos civis e liberdades, a ressaca autoritária, a intolerância política e o pensamento único voltaram a primeira forma. A luta contra a corrupção transformou-se numa cruzada dos eleitos contra alvos selectivos e o novo-riquismo ganhou cenários novos. Sob o pretexto das situações de calamidade ou emergência insinuadas pela pandemia, os ajustes directos ganharam cidadania de primeira classe. A opacidade na contratação pública continua. As empresas dos PEP’s não deixaram de prosperar tanto como em sentido oposto a miséria do povo, a fome, as doenças, as mortes precoces de toda a ordem. As obras faraónicas milionárias e os elefantes brancos continuam a alimentar o ego e os bolsos de alguns, indiferentes ao clamor generalizado.

Já não temos como na era colonial os “flagelados do vento leste”. Temos flagelados do Sul, do Norte, do Leste, do centro, das periferias dos aglomerados urbanos do litoral. O autismo político prolongado dá sempre maus resultados.

NR: Leia e de seguida deixe o seu comentário. Participe no debate livre de ideias em prol de uma Angola inclusiva. Contribua para o aprofundamento do exercício de cidadania. Opine!

2 Comments
  1. Vamos estar atentos a convocatória da nova selecção angolana dos bolsos cheios. Quem não soube governar antes não vai aprender em dois dias e meio no congresso. O RATO VAI PARIR UMA MONTANHA PODEM CRER.

  2. Very well said Mário!

    A ladroagem, o fútil e vazio pioram a todo instante…

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