O vencedor fica com tudo(1)

Perdão implica verdade, como disse Desmond Tutu: “A reconciliação verdadeira nunca é barata, porque ela é baseada no perdão, que é caro. O perdão, por sua vez, depende do arrependimento, que é baseado no reconhecimento de que se fez algo de errado, e por isso, depende da revelação da verdade. Você não pode perdoar o que desconhece”.

Por Cesaltina Abreu*

Desde 2002, o calendário oficial de Angola regista o dia 4 de Abril como sendo o da Paz e da Reconciliação Nacional em Angola. No discurso oficial é, também, o da Paz Definitiva! Mas, para além de ser uma “data consagrada” oficialmente, será mesmo uma “data vivida, sentida” pelos angolanos como tal(2)? O que significam os termos desse slogan? 

1.Começando pelo fim: o que é ‘Angola’? 

Do ponto de vista constitucional, Angola é um estado-nação; do ponto de vista social, pode ser entendida como um ambiente multicultural de um estado multinacional cuja sociedade foi constituída a partir da incorporação, forçada, de nações autónomas com culturas territorialmente delimitadas, e caracterizado pela diversidade cultural resultante de movimentos migratórios (3). A incorporação forçada aconteceu durante a dominação colonial, pela criação da colónia a partir de diversos reinos existentes na região, progressivamente anexados por conquista, resultando no que hoje é a República de Angola com as fronteiras negociadas na Conferência de Berlim (4). Os movimentos migratórios reportam a épocas distintas, dos fluxos durante a colonização que originaram processos de mestiçagem, racial e cultural, à imigração de indivíduos, famílias e grupos para e de países vizinhos, antes e após a independência, bem como às movimentações de indivíduos, famílias e grupos durante a guerra civil em busca de segurança e de oportunidades, de ser, estar e fazer. Qualquer destes movimentos provocou processos de assimilação, aculturação e discriminação, com consequências na formação das identidades individuais e colectivas de hoje. Acima de tudo, esses processos estiveram (e continuam…) na origem de tensões e conflitos de diversa natureza e intensidade, que constituem o esteio da vivência diária de gerações de angolanos. 

Embora seja uma sociedade multicultural, Angola não é uma sociedade pluralista devido ao não reconhecimento, ‘de facto’ da diversidade cultural que nos caracteriza, apesar da sua manifestação diária em todas as vertentes da vida do país. Não se concretizou a promessa da organização política do espaço herdado do colonialismo, através da integração das distintas nações, com base no reconhecimento das suas diferenças: uni-las através do traço comum das suas histórias, da vivência da experiência colonial e da luta contra essa dominação. Nesse legado histórico comum parecia residir a possibilidade de construção de uma identidade cultural pluralista, capaz de fornecer os quadros de referência do projecto-nação, assente no reconhecimento e respeito pela diversidade e pela diferença. 

2. O que significa “Paz”? A ausência de guerra?

Quem, como eu, questiona a designação de “Paz definitiva” como sendo o resultado da assinatura do Acordo de Luena que pôs fim a décadas de guerra civil, não está a menosprezar nem a pôr em causa o valor, para a sociedade angolana, do fim da guerra, particularmente uma guerra pelo poder, que vinha de antes da independência e que resultou da falta de capacidade e de interesse dos “libertadores” em colocarem, irrestrita e declaradamente “Angola” e o interesse maior de construção da nação, nas pautas das tantas negociações falhadas. Não era preciso aguardar para ver se a implementação iria de encontro ao plasmado nas declarações finais das ditas ‘negociações’, traduzidas numa linguagem intencional de nacionalismo. Bastava olhar, e ver, os rostos tensos dos intervenientes, quantas vezes sem olhar uns para os outros nem quando do aperto de mãos! 

3. O que significa “Reconciliação Nacional”? 

Para começar, o prefixo ‘Re’ remete a um momento anterior de ‘conciliação’, ou seja, significa ‘voltar a conciliar’. A pergunta é: a que “conciliação” nos remete essa dita “Reconciliação”? … e quanto à segunda parte desta, digamos, o que significaria ser “Nacional”? Aconteceu, de facto, o fim da guerra, mas não por negociação, por consciência. Houve vencidos e vencedores e; não houve “Acordos” capazes de conduzir à construção social da PAZ, porque a ‘nação’, na sua diversidade, esteve sempre deficitariamente representada nas mesas de negociação e, depois, não incluída na implementação do que dos acordos terá resultado. 

A (re)conciliação social em Angola remete à consideração dos meios necessários para a sua viabilização devido à carência, entre outras, de instituições intermediadoras de confiança, capazes de motivar e constranger o comportamento de todos, governantes e governados. Será necessário, então, estimular a sua criação e para isso, parece-nos que uma saída possível recorreria à combinação das duas perspectivas (5): uma cívico- comunitária ascendente, com base na participação a partir de círculos relativamente pequenos como a família, os grupos, as associações e as redes locais de cooperação, que seria estimulada por acções no âmbito da perspectiva republicana, descendente, seguindo a fórmula ‘bom governo e boas leis fazem bons cidadãos’, visando eliminar arbitrariedades, evitar o monocentrismo e o secretismo, e ultrapassar a incapacidade e a incompetência das instituições públicas. 

4. E o ‘Perdão’? 

Particularmente em situações pós-guerra-civil, e pós tantos episódios de violência institucional que continuam a acontecer, é necessário entender que “Conciliação” implica “Perdão” mas perdão não implica “Abraço”. Perdão implica Verdade. Entre outras, muitas, a estória recente sobre a denúncia da não correspondência do DNA das ossadas, entregues às famílias de algumas das vítimas da repressão do 27 de Maios, com o dos familiares, demonstra não só um completo desrespeito pelos mais essenciais valores da acção de Estado e de convivência social, como escancarou que, não só não houve verdade em todo esse proclamado processo de ‘homenagem às vítimas do processo político em Angola’, incluindo um “pedido de perdão” público, como não há, de facto, vontade de construir um ambiente de paz e de verdade em Angola. Embora haja vítimas a lembrar e a respeitar desde bem antes da independência, nas iniciativas governamentais há datas para se ser considerado/a “vítima do processo político em Angola” e, como tal, ser lembrado/homenageado. Os/As que deram o seu melhor, incluindo o bem maior, a Vida, até às 23:59 de dia 10 de Novembro de 1975 não ‘contam’ nesse processo… Porquê? Quem decidiu? 

Perdão implica verdade, como disse Desmond Tutu: “A reconciliação verdadeira nunca é barata, porque ela é baseada no perdão, que é caro. O perdão, por sua vez, depende do arrependimento, que é baseado no reconhecimento de que se fez algo de errado, e por isso, depende da revelação da verdade. Você não pode perdoar o que desconhece”. 

É preciso promover relações de confiança entre os constituintes da nação. Este processo implica a reconstrução crítica das memórias colectivas dos vários grupos, abrindo uma nova perspectiva de construção de um consenso nacional não apenas baseado nas regras e memória colectiva do grupo dominante e/ou vencedor, mas na busca comum de uma visão mutuamente aceitável de futuro, respaldada numa visão partilhada e aceite do passado. A gestão do passivo da guerra civil coloca questões relacionadas não apenas com as causas mas também com as consequências da guerra; requer abertura e criatividade para organizar o tecido social de uma forma ampla e inclusiva, e a aceitação de um período de transição que podemos caracterizar de “cicatrização das feridas”, durante o qual se deve evitar a escolha de um passado particular, apesar das pressões contraditórias no que se refere à integração social, aos ganhos políticos e à justiça moral (6)

Há sinais que continuam a não vir: a descentralização (o poder popular ficou só no Hino!), eleições directas para presidente e para a Assembleia Nacional (com poderes directamente delegados pelos eleitores), a Constituição com poder constituinte, a construção social de uma Visão para Angola para a qual todos contribuam e que seja o esteio para a deliberação de Pactos Sociais que fortaleçam os valores democráticos, ampliem e reforcem a cidadania, e impeçam recuos em mecanismos legais que ameaçam as liberdades individuais e de grupos e colocam a cidadania universal e plena em estado de espera (7). E aquele que me parece o primeiro passo: a erradicação da pobreza e a eliminação das desigualdades sociais. Ninguém celebra com barriga vazia! 

Alguns escribas de plantão avançam contra qualquer interrogação a respeito desta e de outras ‘datas consagradas’, como se elas valessem por si e como se, questioná-las colocasse a Nação, que não temos e precisamos, em risco. Estudem, porque a História ensina que a abertura é necessária: à reinterpretação pelos diversos actores e grupos sociais do seu passado colectivo, em especial dos conflitos; à passagem de direitos individuais a direitos colectivos; e à redefinição de fronteiras entre os grupos e destes com o exterior. Ou seja, ensina a criação das condições para um processo de educação em moralidade de grupo. E soltem-se, livrem-se de preconceitos e conservadorismos, porque a criatividade é responsável pela capacidade de encontrar os caminhos mais adequados ao contexto social e às necessidades particulares dos grupos envolvidos para contornar os medos, escancarar os tabus e enfrentar as incertezas em relação ao futuro. E isso, constrói-se, social e inclusivamente, não se impõe! 

Canção do conjunto ABBA, 1980, The winner takes it all (O Vencedor fica com tudo )
2  ABREU, Cesaltina (2019). Angola pelos percursos da esperança e da desilusão. Estudo não concluído 

3  KYMLICKA, W. (1995), “Multicultural Citizenship: a liberal theory of minority rights”, citado por ABREU, Cesaltina: Sociedade Civil em Angola. Da realidade à utopia, 2006.
4  NEWITT, Malyn. (1997), História de Moçambique. Lisboa, Publicações Europa América. 

5  Claus Offe (1999), How can we Trust our Fellow Citizens? Citado em ABREU, Cesaltina (2011), (Re)conciliação nacional para valer ou para constar? 

 ABREU, Cesaltina. “Angola, Memória Social para um Futuro Comum”. Comunicação ao IV Encontro Internacional de História de Angola, 28 Setembro a 01 Outubro 2010
7  ABREU, Cesaltina. “… E os Meninos de há 40 anos, o que aprenderam?…”. In Mulemba Revista Angolana de Ciências Sociais 5 (10) | 2015 

Sobre a autora:

*Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e o Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.

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