O espelho, eu, e as minhas escolhas

JAcQUEs TOU AQUI!

Jacques Arlindo dos Santos

Hoje mais do que ontem, os dias exigem dos angolanos bom senso e patriotismo. 

É nestes dias de hoje que o meu pensamento voa ao encontro da figura de Gustavo Costa.

Até sempre, amigo e camarada

JAS

Neste momento de escrutínio político em Angola, sou levado por força das suas circunstâncias, a contemplar-me algumas vezes ao espelho. Não desgosto do reflexo que emana dele apesar dos defeitos que os sábios angolanos do comportamento humano descobrem com a mesma eficácia de renomados investigadores. Não estou nem aí pra essa malta! Cumprimento respeitosamente o indivíduo focado, meu conhecido desde menino. Por ele senti justificado orgulho bastas vezes, embora me tenha decepcionado noutras tantas ocasiões. Nesse cenário, vi-me a pecar por culpa própria e também por certa ingenuidade. Por causa de coisas que fui vendo durante os dias, meses e anos e hoje, borbulhando no cérebro, tais coisas me incomodam seriamente. Tenho até, veja-se só, numa altura destas, muitas dúvidas sobre uma palavra mágica. Chama-se democracia. Tenho dúvidas sobre o que significa ser realmente democrata. Foi por tal facto que deixei há algum tempo e por imperativo de consciência, de acreditar em certas pessoas, algumas em quem já tinha confiado. “Fazes bem, há gente em quem não se pode nem se deve confiar”, disse-me o homem do espelho, um dia destes no decorrer de uma das nossas conversas matinais, ao revelar-lhe a minha decisão. Aproveitou a deixa e perguntou, e tu como estás nesse capítulo da democracia? Não sei, respondi sinceramente. Apesar de todos os dias me confrontar nas esquinas com uns pobres de espírito, autores de supostos ditos democratas, acrescentei.

Obrigou-me a reflectir, levando-me até fora da lógica, a concluir que é triste reconhecer um logro, admitir que nos enganamos em relação aos que se diziam ser probos e não o eram, aos que escondiam vergonhas que afinal eram bem conhecidas e chegavam a mostrar descaradamente que eram hoje uma coisa e amanhã outra. 

A fala do homem do espelho revelou-se determinante nesta fase da minha vida. As conversas quase diárias têm valido pelo seu conteúdo e alcance, e valem sobretudo porque são sensatas e realistas, próprias de conselheiro amigo. Ajudam-me bastante, já que indicam sempre, nestes dias difíceis, no momento exacto e hora certa, o melhor caminho, o carreiro do bem. Aconselham-me, entre várias outras coisas, a meditar sobre a integridade do ser humano. Aquela rectidão que nos leva a fazer nos momentos difíceis, escolhas certas de forma consistente.

Num país como Angola onde abunda o dinheiro hipoteticamente pertença do povo e onde, por causa da sua má distribuição e da ambição de alguns o possuírem facilmente, a integridade escasseia entre as pessoas, é normal vermo-nos mesmo sem nos darmos conta, misturados com indivíduos dispostos a orientarem os nossos hesitantes passos. Pretendem-no, com lições de democracia que mais não são que conversas enganadoras, inclinadas para o lado dos seus interesses. 

Entre os seus mais diversos impulsos e quefazeres, conseguem “milagres” de regresso ao passado tribal, inculto e violento e ainda a afirmações do género de que roubo é dádiva de Deus. De que quem pensa diferente tem forçosamente ligações com o colono. Coitadinhos. Na fúria dos seus ódios recalcados e dos seus delírios identitários inscrevem teorias segundo as quais em Angola só pode ter poder de mando quem nasceu no mato profundo e cerrado, quem tiver sido parido em certa região, quem for escuro no tom de pele, quem acredite no feitiço ou no encanto das sereias. Juntam-se a essas, mais umas quantas teorias recônditas que foram ultrapassadas há muitos anos, e de que, felizmente e para desespero dos puristas do templo, significativas camadas da juventude angolana, delas se desembaraçam com naturalidade. Tranquilizei com esta reflexão, o homem do espelho. 

Ainda lhe disse que o espantoso para mim tem sido verificar que, apesar desses avanços, a força da máquina desestabilizadora e esquizofrénica instalada, faz catedráticos e uma outra gama de cidadãos formados a nível superior, classe incorporada por gente colorida, de várias matizes na cútis, muita dela usando óculos, acreditar em gatunos bons e maus, nuns malandros melhores que outros, em vilãos piores que os demais patifes. Classificam traidores pela sua origem ou credo que professem, até pela cor dos seus olhos, condenando uns ao escuro do degredo enquanto outros ganham méritos pelos seus feitos habilidosos. Os mestres em causa usam sem cuidado nenhum, a narrativa pecadora e oportunista, utilizam-na despudoradamente, com mais visibilidade neste momento de escrutínio político que vivemos num clima especial, vivido como nunca se viveu em Angola.

O tipo do espelho perguntou-me há dias, perante a insistência dos meus rogos, se um país assim, que alberga esse tipo de pessoas, se essa sociedade cheia de políticos duvidosos marcados por malandrices e permanentes maus actos, tem modo de sobrevivência, se pode comparar-se às que existem no mundo civilizado e democrático, se na aceitação da submissão se valorizam cidadãos, se esses aceitam livremente a condição de falsos cultos com que os identificam. Se acreditam mesmo nas lendas e narrativas violentas que subtilmente vão produzindo, unicamente para gerar confusão e acções persuasivas.

Num país onde a poesia vive envergonhada, mostrando ter perdido a força que teve para abrir caminhos, tornada hoje pura retórica para adormecer incautos, fica difícil a compreensão dos fenómenos da sociedade. São notáveis os cidadãos intelectuais sem-opinião nem pensamento a respeito do que nos cerca. Pululam medrosos e bajuladores por tudo quanto é canto, tornando-se assunto complicado fazerem-se deles honestas distinções. Esse grupo de referência ficou tristemente constituído numa falange receosa. Sobretudo desconfiada da eventual perda, por gesto incauto, de benesses e oportunidades de negócios, hipótese que a atormenta e a remete a vergonhosos silêncios, uma arma de muitos, porém sempre mais ruidosos e visíveis em alguns. Numa terra onde se classificam as coisas e as pessoas desse modo estranho, a integridade não conta para nada. Conta mesmo é ser quem os poderosos querem que sejamos. Enfim, ser-se pessoa íntegra nesta terra, é mesmo uma coisa muito difícil. 

A quatro dias de nos mostrarmos, de termos que tomar decisões que definem quem na verdade somos e em quem acreditamos; a poucos dias de tomarmos atitude que pode exercer impactos sobre a nossa auto-estima, a nossa integridade e, em última análise, sobre a nossa reputação, certifico que uma das vantagens da terceira idade é chegar-se consciente à conclusão de que se vive num mundo onde a vontade política não passa de uma quimera, mesmo sabendo que dela pode depender a salvação da Nação e de todo um povo. 

As manchetes de rádios e televisões são dominadas por pessoas que fazem escolhas erradas, e as pessoas que fazem as escolhas certas podem parecer espécies raras. Apesar de tudo, tenho sido capaz de dizer afirmativamente ao homem do espelho, “olha, é bom viver e trabalhar com integridade”, porque quando nos tornamos conhecidos por essa característica tão valorizada, sentimos necessariamente as nossas vidas a florescer.

Depois de revisitar o meu percurso sem história pelos meandros da política indígena, tive a última conversa com o homem do espelho, precisamente nesta manhã, sempre com a imagem do Gustavo Costa a acompanhar-me. Em momento dado do curto papo, ouvi dele, sem qualquer espanto, a seguinte pergunta: “já sabes em quem vais votar?”. Equipei-me da serenidade necessária e fui capaz de lhe responder assim, olhos nos olhos, com o máximo da minha convicção, “não te vou responder, porque tenho na frente oito opções e, sabes bem, o voto é secreto”.

Esperando que para a semana o nosso encontro possa ser recheado de boas notícias para o povo angolano, despeço-me de todos, recomendando aos meus leitores, amigos e companheiros de luta, serenidade, respeito e nenhuma resposta a provocações na hora do voto, estejam do lado que venham a estar. Aguardo por todos no próximo domingo, à hora do matabicho.

Lisboa, 20 de Agosto de 2022 

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