O voto certo?

CONVERSA NA MULEMBA

Fernando Pacheco

A parcialidade da comunicação social pública – uma das consequências da partidarização do Estado – é por demais evidente e comprovada pela monitorização dos noticiários televisivos divulgados pelo jornalista Carlos Rosado de Carvalho. Apesar das denúncias, o partido no poder não abre mão dessa prática. A sua manipulação em prejuízo de outros concorrentes representa maior fraude do que a presença de eleitores nas cercanias das assembleias de voto, pois a primeira está proibida pela Constituição e a segunda – ainda que não recomendável por ser provocatória e ineficaz – é permitida pela legislação eleitoral, desde que ordeira e pacífica, embora o Presidente da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) e os repórteres-militantes afirmem que não é. Este é um dos muitos pontos de divergência resultantes da maneira pouco consensual como a legislação eleitoral foi aprovada e da desconfiança que a actuação da CNE merece.

A realização de três eleições consecutivas sem grandes incidentes é um indicador de que, depois da situação deplorável de 1992, a democracia angolana vai ganhando maturidade. Agora, mau grado o ambiente crispado – que poderia ter sido evitado se tivessem sido ouvidos conselhos de muitos actores da sociedade civil, nos quais me incluo –, é de elogiar a ausência de actos violentos, bem como a elevação do espírito crítico dos actores políticos e cívicos e dos cidadãos em geral, apesar da agressividade de alguns nas redes sociais devido ao nervosismo eleitoral.

Contudo, persistem erros na preparação das eleições. Dado o posicionamento da maioria dos partidos, não se compreende a teimosia em não publicar as listas dos eleitores, nem a falta de esclarecimento sobre a manutenção dos falecidos na base de dados dos eleitores. Persiste a afirmação de que votarão mais de 14 milhões de eleitores, omitindo-se o número de defuntos, estimado em dois milhões, que o Ministro da Administração do Território garantiu seriam retirados. Também não se compreendem as dificuldades na acreditação dos observadores, feita exclusivamente em Luanda, e não é aceitável o tom arrogante como fala o Presidente da CNE, nada condizente com o seu papel de árbitro. A CNE não encoraja a realização de debates entre os concorrentes, e não age perante irregularidades como a sonegação de alojamentos, de refeições ou de combustível para um deles. Com tal actuação a CNE pouco contribui para a sua credibilização e para a criação de um ambiente de confiança entre os concorrentes. Instituições credíveis são fundamentais para eleições credíveis – e para o sucesso das democracias. Com tal actuação não é legítimo que se critique quem fale de possíveis fraudes.

É pacífico que estas eleições serão as mais disputadas depois das de 1992, mas também que a vitória só poderá sorrir a dois dos concorrentes. Dada a sua proximidade ideológica actual, as maiores diferenças entre os dois estarão a nível das práticas, antes e depois das eleições. Porém, há dois aspectos no seu discurso que convém realçar. A principal bandeira do partido da situação volta a ser o betão, ou o hardware, sem dar a mesma importância ao software, isto é, às pessoas e às instituições – e este tem sido um dos maiores males das últimas décadas. Quanto ao opositor, preocupa o modo como se propõe resolver o complexo problema da terra. Dizer que se vai “devolver a terra ao povo” é demagógico, perigoso e irrealizável. Quanto aos restantes partidos, seriam mais avisados se baixassem os níveis das suas expectativas e definissem metas concretas para as suas áreas de influência, pedindo aos eleitores o aumento do seu número de deputados para melhor defenderem as respectivas províncias, ou para poderem influenciar a aprovação de políticas públicas mais favoráveis aos cidadãos.

Vale a pena, então, um exercício sobre os pontos fortes e fracos dos dois grandes rivais tendo em vista as escolhas eleitorais. O MPLA continua a beneficiar de um indiscutível apoio popular em determinadas regiões do país (Luanda, Cuanza Norte, Bengo, Malanje, Cuanza Sul e Cunene, principalmente) e nas áreas rurais da maioria das outras; domina o aparelho constituído pelas Forças Armadas, pela Polícia e pela Administração Pública; controla o Tribunal Constitucional, a CNE e a comunicação social pública; e é favorecido pelo apoio do empresariado nacional e estrangeiro e das pessoas ligadas ao “sistema”. Tem obra feita, experiência governativa e o seu candidato domina os dossiês fundamentais da governação em todos os capítulos. Favorece-lhe ainda o benefício da dúvida em relação ao combate à corrupção e a um “novo” MPLA liderado por João Lourenço, em contraposição a um outro do tempo de José Eduardo dos Santos, que terá alimentado a corrupção. Entretanto, não deixa de ter contra si o desgaste de décadas de poder, a percepção de que há continuidade na corrupção, as acusações sobre o uso dos bens e dos funcionários públicos, o desemprego e a pobreza, o descontentamento e a revolta dos jovens, as falhas na reconstrução e na reconciliação nacional, o medíocre funcionamento das instituições, o insucesso da diversificação da economia, o desconforto pela actuação da comunicação social pública, a arrogância de muitos dos actores ligados ao “sistema”, o incumprimento de promessas anteriores, entre outros quesitos. O modo como foi gerido o último período da doença do seu Presidente Emérito, e principalmente o seu óbito, poderá vir a ter peso nas contas finais.

A favor da UNITA estão todos os pontos fracos do MPLA, para além do desejo generalizado de mudanças ou de mudança no sentido da alternância, a situação dos jovens e o seu peso eleitoral nos centros urbanos, uma nova liderança com perfil diferente do tradicional no partido, o reforço de Abel Chivukuvuku e da sua popularidade, a defesa das autarquias, os apoios do Bloco Democrático e de alguns elementos da sociedade civil, as tentativas de assassínio de carácter sofridas pelo seu líder e a defesa de revisão da contestada Constituição. Já em desfavor do Galo Negro jogam principalmente o receio da mudança e do desconhecido por parte de muitos sectores da sociedade, um presumível mal-estar no interior do partido pela aliança com Chivukuvuku e a falta de experiência governativa.

Com a tensão a crescer à medida que se aproxima o dia 24, não posso deixar de manifestar a minha profunda tristeza e preocupação pelo facto de não terem sido ouvidos os meus apelos para que houvesse um diálogo aberto sobre o próximo futuro, de modo a acautelar reacções menos avisadas aos resultados eleitorais e configurar um pacto sobre as grandes questões nacionais. Nesta circunstância o meu apelo dirige-se a quantos defendem a democracia no actual contexto de Angola, para que votem de modo a que se vislumbrem caminhos para a utopia realizável, no dizer de Paulo Freire – direitos cívicos e políticos em equilíbrio com os direitos económicos, sociais e culturais, visando o desenvolvimento sustentável do nosso País para podermos ambicionar, aí sim, vir a ser um exemplo para África.

Novo Jornal, 20/8/22

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