O Estado da Nação deve reflectir feitos e preocupações da sociedade em geral. Não foi isso que se verificou, como parece ter ficado demonstrado. Perante isso, não parece ilegítimo que cada angolano possa fazer o seu Estado da Nação, e muito menos os líderes da oposição, dado ser um direito conferido pela Constituição. Negar esse direito foi um modo infeliz de finalizar um discurso já de si pouco mobilizador.
Terminei a última conversa afirmando que a preocupação do zelador da sala não deveria ser apenas a de limpá-la por estar molhada, mas também, e sobretudo, a de fechar a torneira que provoca a inundação. Quis com isso dizer que se devem atacar as causas dos problemas e não as consequências. Voltei a pensar o mesmo no final da leitura da última mensagem sobre o Estado da Nação.
Do ponto de vista metodológico e comunicacional, o discurso enferma dos mesmos erros anteriores. Indiferente aos sinais e críticas da sociedade, voltou a ser longo, fastidioso, excessivamente detalhado e por vezes com falta de rigor ou inverdades – vimo-las sobre a evolução da esperança de vida, os números sobre o sector da educação, o financiador do projecto de reabilitação do café, entre outras imprecisões. O foco continuou a ser a enumeração de acções e projectos, sem referência às implicações na vida real e dos cidadãos, e não a análise e enunciação de políticas e estratégias. Se os objectivos específicos para o período em análise nunca estão explicitados ou claros, não poderão nunca poderão ser avaliados. Esses erros são bem uma evidência da fragilidade institucional que tenho vindo a denunciar como uma das razões do estado de crise que nos aflige há muito. Já lá vamos.
Parte do que o Presidente disse é importante, embora por vezes fosse omisso ou contraditório em certos aspectos. Falou, uma vez mais, de construção de infra-estruturas, mas não disse nada sobre os discutíveis critérios de priorização, nem sobre as suspeitas de corrupção, nem sequer sobre o preocupante problema da sua manutenção; anunciou que, finalmente, a eliminação dos subsídios aos combustíveis será feita de modo gradual, como tanta vez foi proposto por inúmeras vozes, o que poderia ter evitado a turbulência de Junho passado; enalteceu o combate à pobreza, que, sabe- se, está limitado às acções do Kwenda, pois outros programas não têm fundos nem estratégia; elogiou a agricultura familiar, mas nada disse das suas enormes limitações e carências, que impedem melhor desempenho; congratulou-se com o desempenho orçamental de 2022, mas não alertou para o facto de o Plano de Desenvolvimento Nacional prever que em 2027 estaremos mais pobres porque a previsão de crescimento do PIB será menor do que a população; reconheceu que se antevê uma desaceleração da actividade económica justificada pela recessão do sector petrolífero, mas contraditoriamente diz que será compensada pelo crescimento esperado do sector não-petrolífero, em virtude das medidas aprovadas recentemente, o que, sabemos todos, não tem tido efeitos na vida dos cidadãos.
Igualmente, ou mais, importante foi o que não disse: o sufoco da dívida interna que se arrasta há anos e tem prejudicado as empresas e o emprego; a preocupação com o número de crianças fora do sistema de ensino e a qualidade do ensino, principalmente o primário, que está a afectar as capacidades profissionais e o futuro de milhões de jovens; a importância da educação para a saúde e das acções de prevenção para aliviar os hospitais e diminuir custos com a saúde; a gravíssima situação de fome e de desnutrição, principalmente de crianças, o que afecta também o seu futuro pelas implicações na aprendizagem; o sério risco de Angola voltar a figurar na lista cinzenta do Grupo de Acção Financeira Internacional (GAFI), com as consequências que dolorosamente já conhecemos. Se o Presidente não quer eleições autárquicas, seria mais avisado permanecer em silêncio sobre o assunto, pois as justificações dadas para o congelamento do pacote legislativo são um insulto à inteligência dos angolanos.
Quando o Presidente se dirige à Nação na circunstância de um preceito constitucional, não pode agir como Titular do Poder Executivo e muito menos como líder partidário. Não reconhecer que estamos em presença de uma crise polifacetada, a mais grave desde o fim da trágica guerra civil, é de facto não querer fechar a torneira. Já é tempo de perceber que, sem mudanças estruturais e de rumo, poderemos tentar elaborar projectos e programas e aprovar políticas que nunca poderão resolver os problemas de enorme dimensão que nos afligem, pois as pessoas e instituições envolvidas são claramente incapazes de, desde logo, gerar o capital social e a confiança que a tarefa exige. Se em vez de instituições organizadas e eficazes para resolver os problemas dos cidadãos e da economia, tivermos responsáveis interessados sobretudo em ter momentos de poder e benefícios financeiros ou materiais para agilizar o passaporte ou a autorização para a realização de um negócio, são apenas exemplos, os projectos e programas conhecerão forçosamente insucessos. A partidarização dos interesses e das instituições leva a que, apesar da formação académica, estejamos perante responsáveis e quadros que não têm experiência e não conhecem o país e a realidade em geral, são arrogantes e estão animados da ideia de que “chegou a minha vez”. São quadros de costas viradas para o povo e que não pensam em soluções para os problemas dos cidadãos, mas noutras mais adequadas a outras realidades – e isso explica o sucesso de pequenos empresários asiáticos ou da África Ocidental. Não têm em conta que o poder deve ser exercido tendo em vista o bem comum, não de um partido ou de interesses pessoais.
Vale a pena olhar para um texto do sociólogo moçambicano Elíseo Macano, que esteve entre nós no mês de Julho para participar na Semana Social organizada pela CEAST e pelo Mosaiko- Instituto da Cidadania e foi soberbamente ignorado pela nossa comunicação social, a propósito do que se passa em Moçambique. Diz ele, outrora um “frelimista” convicto, que há um “caminho que sucessivas gerações de elites políticas africanas se recusam a trilhar porque, tal como os regimes coloniais, não confiam na capacidade dos africanos de caminharem sem o seu amparo” e acreditam que “o indígena precisa da tutela colonial”, agora representada por elas. Mais adiante acrescenta que essas elites “no fundo, acreditam que exercer o poder é impor a sua vontade, não é governar no interesse nacional”. E não fica por aqui: “É isto que está na base do profundo desprezo que a Frelimo tem – e que, possivelmente, os outros partidos teriam, uma vez no poder – das regras do jogo e das instituições”. Encontrar diferenças para o nosso caso é difícil, convenhamos.
O discurso sobre o Estado da Nação deve ser um exercício de análise do contexto holístico da sociedade e da envolvente internacional e não um relatório do Executivo. Em autocracias pode ser da exclusiva responsabilidade do Presidente da República. Quando se pretende governar em democracia e com os cidadãos, como o Presidente João Lourenço enfatizou na inauguração do seu primeiro mandato, sem que tivesse recuado nesse propósito alguma vez, o Estado da Nação deve reflectir feitos e preocupações da sociedade em geral. Não foi isso que se verificou, como parece ter ficado demonstrado. Perante isso, não parece ilegítimo que cada angolano possa fazer o seu Estado da Nação, e muito menos os líderes da oposição, dado ser um direito conferido pela Constituição. Negar esse direito foi um modo infeliz de finalizar um discurso já de si pouco mobilizador.
Novo Jornal, 20/10/23