REFLEXÕES SOBRE O DISCURSO ‘O ESTADO DA NAÇÃO’

Qual a política de estado para contrariar a tendência de empobrecimento da população angolana, até 2027, em resultado do desequilíbrio entre o crescimento económico em baixa e a taxa de crescimento demográfico em alta?

POR CESALTINA ABREU 

Nota prévia: do que aprendi sobre teoria (e prática) do discurso enquanto mecanismo colectivo para a identificação dos problemas, a definição das questões e a coordenação da acção, ou seja, um elemento central do processo dinâmico de construção da sociedade, destaco a sua dimensão colectiva, cuja emergência e progressivo alcance ao nível dos imaginários sociais são historicamente constituídos. Também aprendi que, em democracia, o discurso político não é monopólio de partidos e de governos. Ou seja, não é nem univocal, nem unânime e nem consagrado em ortodoxias imutáveis. Em democracia, o discurso político é, juntamente com os quadros de referência que o sustentam, algo disputado em condições de diálogo transparente. E esses quadros de referência cognitivos que estruturam a vida social, designadamente ao nível dos direitos, da justiça e o da responsabilidade, fornecem o pano de fundo para a construção de narrativas sobre a compreensão do mundo e da história, a elaboração de identidades e a criação de solidariedades, a definição de projectos e a articulação de discursos sobre a vida social. 

Assim, entendo que o discurso sobre o Estado da Nação” deveria ser a afirmação de uma liderança, resultante da habilidade de motivar, de influenciar, de inspirar e de orientar uma sociedade a fim de atingir objectivos comumente partilhados, o que pressupõe que tenham sido identificados e priorizados através de processos participativos. Não se trata, portanto, nem de chefatura nem de ordem superior. Traduz a capacidade de analisar o contexto actual, interno e externo, de decidir objectivos e vias para os alcançar, de aprender com as lições do exercício presente e de as incorporar nas acções de futuro para evitar repetir os mesmos erros, bem como de identificar os desafios e os riscos e como enfrentá-los. E gerar confiança: É possível! 

O discurso sobre o Estado da Nação” deveria, então, começar por lembrar quais eram as perspectivas da ‘Nação’ (ou para a ‘Nação’) no novo mandato 22/27. Quais os progressos a alcançar, os desafios/riscos identificados e como se previu fazer-lhes face; quais as dinâmicas políticas, sociais e económicas a promover para o alcance dos objectivos definidos. Qual era o objectivo específico para 2023? O que é que mudou de substantivo no contexto interno e internacional que possa ter influenciado os resultados alcançados? Onde nos encontramos em relação às perspectivas então traçadas? Que impactos é que se registaram na vida das pessoas, suas comunidades e da sociedade angolana em geral? Quais os constrangimentos identificados? Em que é que errámos e porquê? O que é que aprendemos em 2023, como usar estas lições para não só progredirmos em 2024, mas também não repetirmos os mesmos erros? Quais os impactos – positivos e negativos – dos resultados alcançados no objectivo último de qualquer acção de governação: o bem-estar e o progresso social do seu povo? Quais as medidas de política para corrigir os erros, quais as acções para mitigar os impactos negativos? Como está Angola em relação aos compromissos assumidos a nível continental e internacional, nomeadamente: 

No plano continental:  

a) Compromisso de Dakar – 20% do orçamento para a educação;

b) Acordo de Abuja – 15% do orçamento para a Saúde;

c) Acordo da SADC – 10% do orçamento para a agricultura;

d) Cobertura de Protecção Social – compromisso assumido em Novembro de 2021 (entre escritório regional da OIT e a União Africana) para o alcance de 40% da cobertura da Protecção Social em 31 de Dezembro de 2025;

e) Como está Angola no alcance da Visão Pan-Africana de Uma África integrada, próspera e pacífica, impulsionada pelos seus próprios cidadãos, representando uma força dinâmica na arena internacional, e das 7 Aspirações da África que queremos (1), ao fim da primeira década (2014-2023) do plano de implementação da Agenda 2063;

 f) Para quando as rádios Comunitárias;

g) Quando serão realizadas as eleições para os órgãos do poder local;

Nota: na região SADC Angola é o único país onde não existem Rádios Comunitárias e onde não estão implantados orgãos do poder local. 

No Plano internacional:

  • Como está o cumprimento, por Angola, dos objectivos de desenvolvimento sustentável 2030 (2)?

Nota: Importa lembrar que, recentemente, e na qualidade de Presidente em exercício da SADC, o Presidente João Lourenço considerou “crucial” examinar em conjunto os progressos alcançados na implementação do Desenvolvimento Sustentável ao nível das diferentes regiões do mundo, e um esforço conjugado entre a região e os parceiros internacionais, sem constrangimentos e obstáculos, com vista ao cumprimento dos objectivos de desenvolvimento (3)

Situação de Fome em 2022 – Angola figura na 98ª posição, com 25,9 pontos, uma situação considerada grave.

O que não foi dito: Como está Angola em 2023? 

  • Esperança de Vida – O relatório do IDH (2022), sinaliza que desde 2019 a esperança de vida de cada angolano tem vindo a cair. Nesse ano a média de era de 62,4 anos, em 2020 caiu para 62,3 e 2021/2022 cada angolano passou a ter uma esperança de vida inferior em sete meses, para 61,6 anos. Os três últimos anos contrariam a tendência crescente desde 2002, fim da guerra civil;
  • Pobreza – em Maio 2022 os dados do Afrobarómetro indicavam que a pobreza extrema em Angola tinha crescido de 35 para 44 % entre 2019 e 2022, afectando quase metade da população; no meio rural, a pobreza extrema atingia 63% da população. Em Outubro de 2022, um estudo realizado pela ADRA destacava: O problema da pobreza extrema em Angola “vai além da realidade estatística” apresentada pelas autoridades. 
  • Índice de Desenvolvimento Humano 2022 (dados de 2021) – posição 148 entre 189 países, no Grupo de Países de Baixo Desenvolvimento Humano, com 0,586, baixando 0,004 relativamente a 2020;
  • Ajustando este IDH na perspectiva da desigualdade (Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade 2022), o IDH sofre uma perda devido à desigualdade na distribuição dos indicadores do IDH (rendimento, acesso educação e à saúde, esperança de vida), descendo Angola para o grupo dos países de baixo desenvolvimento humano;
  • Índice de Capital Humano – Entre 173 países, Angola está na posição 166, tem um dos índices mais baixos do mundo, 0,36%. Isto significa que uma criança nascida hoje em Angola só conseguirá alcançar 36% de todo o seu potencial produtivo quando crescer;
  • Fome – Situação de Fome em 2022 – Angola figura na 98ª posição, com 25,9 pontos, uma situação considerada grave. Esta situação pode agravar-se pela subida dos preços dos combustíveis e dos alimentos (4). A situação pode ser agravada pela crise de dívida, Angola vem sendo referida com um risco de inadimplência de dívida soberana na faixa de mais de 50%, até 2025;
  • Escolaridade – Média de anos de escolaridade (IDH 2022) – Angola tem 5,4 anos de escolaridade, o que praticamente corresponde ao ensino primário;
  • A taxa de analfabetismo é de 24% entre os cidadãos com idade acima dos 15 anos, sendo as províncias com o maior índice de analfabetismo situadas do centro para o Leste: Bié, Huíla, Malanje, Moxico, Lunda-Norte e Lunda-Sul;
  • Acesso à água potável alcança apenas 40% dos angolanos e com um nível de segurança de água classificado de “escasso”, segundo um estudo do INWEH relativo a 2020, contra a média de 71% nos países africanos, entre os quais alguns PALOP (Cabo Verde e São Tomé e Príncipe);
  • Acesso à electricidade – apenas 42% dos angolanos têm actualmente acesso, dos quais 37,8% através de ligação à rede eléctrica nacional – percentagem que fica abaixo dos 10% em três províncias – Bié, Cunene e Lunda Norte – Cabinda cerca de 52% e Luanda 66%. Segundo um relatório das Nações Unidas, Angola está na lista dos 20 países com maior défice de acesso à energia no mundo, com 18 milhões de pessoas sem eletricidade;
  • Rendimento per capita – De 2010 para cá, o rendimento per capita tem vindo a cair ano após ano, atingindo os 5.466 USD em 2021/2022 de acordo com o IDH;
  • Democracia – Índice de Democracia 2022 – a pontuação de Angola foi de 3,96, encabeçando a lista dos ‘Regimes Autoritários’;
  • Liberdade – Mapa da Liberdade: elaborado anualmente pela Freedom House sobre direitos políticos e liberdades civis em todo o mundo, Angola está classificada como. Não Livre, com 30 pontos, menos um do que no ano passado;
  • Corrupção – Índice de Percepção da Corrupção, elaborado pela Transparência Internacional: Angola teve 33, um só ponto acima da pior média – a da região subsaariana, 32 -, ficando na 116ª posição, 4 acima da classificação de 2021.
  • Inclusão Digital – Mapa-múndi da economia das plataformas digitais, Angola encontra-se nos amplos “vazios geográficos da economia digital” do sul global (apesar do satélite!). 

Num momento seguinte, também não apresentado, seria necessário abordar o FUTURO. Isso significaria, por exemplo, começar por transmitir como está a ser pensado o próximo ano, 2024, quais os grandes objectivos e o que se espera em termos de melhoria das condições de vida das pessoas: 

  • Mais e melhor acesso aos serviços básicos – combate à pobreza e eliminação das desigualdades sociais, educação, saúde, água, saneamento, energia, habitação, ordenamento dos espaços de vida, protecção social, entre outros;
  • Melhores os indicadores de Liberdades, de governação, de corrupção, de inclusão digital, para citar apenas alguns;
  • Que parcerias / alianças / plataformas sociais estão sendo perspectivadas – se é que estão – no sentido de democratizar os processos de tomada de decisão e de participação na construção colectiva da sociedade;
  • Quais os grandes desafios e riscos que Angola pode enfrentar? Quais as implicações na vida dos angolanos e como está sendo pensado enfrentá-los? 
Quando será assumida a necessidade da construção social da Paz através de um processo amplo e inclusivo?

As grandes questões que ACREDITO todos os angolanos gostariam de ter escutado: 

  • Qual a política de estado para contrariar a tendência de empobrecimento da população angolana, até 2027, em resultado do desequilíbrio entre o crescimento económico em baixa e a taxa de crescimento demográfico em alta?
  • Para quando a verdade entre o que formalmente se designa de Estado Democrático e de Direito e o que temos de enfrentar no dia-a-dia? Há mais de 17 anos (aprendi ‘esta medida’ lendo o Jornal de Angola), escrevia na minha tese de doutoramento sobre Sociedade Civil em Angola: “Embora o discurso oficial conclame a participação de todos os angolanos na reconstrução nacional, o processo de tomada de decisão mantêm-se fechado no Executivo, em particular na Presidência e os actores cívicos (organizações da sociedade civil, movimentos sociais e as múltiplas manifestações de activismos socialmente engajados) permanecem num plano secundário e subalternizado, lutando por oportunidades e espaços de participação, num cenário que glorifica os militares e as lideranças dos partidos que protagonizaram a guerra, esbate os demais integrantes do sistema político, e mostra o discurso político bipolarizado em torno dos dois partidos, MPLA e UNITA (5)”; continua actual! 
  • Quando será assumida a necessidade da construção social da Paz através de um processo amplo, inclusivo, que simultaneamente aborde as questões da construção do passado no qual todos nos reconheçamos (a memória social), da projecção do futuro que queremos (a Visão para Angola) e no qual todos estejam incluídos, e das formas de participação na edificação dos sentimentos de pertença e de reconhecimento (a Angolanidade) para construção social da Nação para que, finalmente, possamos ter um discurso sobre o Estado da Nação (sem aspas)? 

O que pretendi demonstrar é que o Discurso sobre o Estado da ‘Nação’” não deveria ser um relatório descritivo cheio de números e de detalhes sobre acções planificadas, as poucas realizadas, as muitas viagens feitas, algumas visitas recebidas, as inúmeras conferências participadas, os poucos benefícios das mesmas, para não falar das perseguições, intimidações, detenções, etc. Deveria ser um discurso de verdade! É incorrecto, indigno e desrespeitoso transformar o “Discurso do Estado da ‘Nação’” (que ainda não somos) num fastidioso relatório de actividades do chefe do poder executivo e dos seus auxiliares. 

16 Outubro de 2023 

(1) 1ª Aspiração: Uma África próspera baseada no crescimento inclusivo e desenvolvimento sustentável; 2a Aspiração: Um continente integrado; politicamente unido com base nos ideais do pan-africanismo e na visão do Renascimento da África; 3a Aspiração: Uma África de boa governação, democracia, que respeita os direitos humanos, justiça e estado de direito; 4a Aspiração: Uma África pacífica e segura; 5a Aspiração: Uma África com uma forte identidade cultural, herança, valor e ética comuns; 6a Aspiração: Uma África, onde o desenvolvimento seja orientado para as pessoas, confiando no potencial do povo Africano, especialmente na mulher e na juventude, e nos cuidados à criança; 7a Aspiração: África como actor, unida, resistente, forte e influente e parceira a nível mundial.

(2) Não será, certamente, suficiente, que o ministro da Indústria e Comércio, Rui Minguês declare, em Nova Iorque, o “compromisso inabalável” de Angola para com os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), no quadro do combate à pobreza e à protecção do meio ambiente.(JornaldeAngola,18Set2023). https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/angola- firme-no-cumprimento-dos-objectivos/

(3) ‘Angola longe de alcançar as metas de desenvolvimento sustentável’, VOA, 23 Set 2023. https://www.voaportugues.com/a/7281117.html

(4) Expansão, “Preços da cesta básica cresceram mais de 50% em três semanas”, 23 Junho 2023. https://expansao.co.ao/angola/interior/precos-da-cesta-basica-cresceram-mais-de-50-em-tres- semanas-113728.html 

(5) Abreu, Cesaltina, Sociedade Civil em Angola: da realidade à utopia. IUPERJ, Rio de Janeiro, Brasil. 2006: 5 

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