Um estadista com a estatura de José Eduardo dos Santos que dedicou 37 anos da sua vida em prol da libertação da África Austral, merece uma estátua num ponto qualquer elevado do centro da região. Mas neste dia histórico, esquecido pelo seus correligionários, nem sequer uma coroa de flores foi depositada no seu túmulo. Esse comportamento não faz parte da nossa identidade, mas tornou-se carimbo da marca do poder político angolano.
A nossa região assinala hoje o Dia da Libertação da África Austral, uma data de elevada preponderância que homenageia milhares de nacionalistas e internacionalistas, que deram o seu contributo para pôr fim ao regime segregacionista e belicista sul-africano. E nós, angolanos, pagamos uma factura extremamente alta por esse esforço de solidariedade e engajamento nessa luta que derrotou o apartheid. Um feito relevante, que faz parte da história de África e particularmente nossa, que nada nem ninguém conseguirá omitir. Daí que, não percebemos nem podemos aceitar essa tentativa de omissão da liderança do Presidente José Eduardo dos Santos em todo esse processo.
E factos são factos. Vivia-se ainda o período de luto pela morte de Agostinho Neto (10 de Setembro de 1979), um dos cinco fundadores da Organização da Linha da Frente, um bloco de resistência criado para apoiar a luta dos namibianos e sul-africanos contra a ocupação e segregação racial, quando, no dia 20 do mesmo mês, José Eduardo dos Santos após eleição pelo MPLA, foi por Lúcio Lara, investido nos cargos de Presidente da República de Angola, Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA),e a 9 de Novembro de 1980, Presidente da Assembleia do Povo.
Como primeiro acto de engajamento nessa luta regional, José Eduardo dos Santos colocou como prioridade na sua agenda do mês seguinte, Outubro, a participação numa Cimeira da Linha da Frente convocada pelo Presidente da República de Moçambique, Samora Moisés Machel, que exercia a presidência rotativa. E manhã cedo, a bordo do avião presidencial Topolev, de fabrico soviético, partimos para a cidade da Beira, capital da província de Sofala situada no norte de Moçambique, onde José Eduardo dos Santos, com apenas 37 anos, no decorrer de um encontro dos lideres da Linha da Frente realizado num dos salões do Grande Hotel da Beira, recebeu as boas-vindas e o conforto dos seus pares mais-velhos. E apenas por mera coincidência do destino, também foi por 37 anos, integrante activo desse bloco que se transformou depois na SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral) contra apenas três (1976/1979) do Presidente Agostinho Neto.
A ‘mini Cimeira’ da Beira durou cerca de três horas e terminou com um descontraído almoço no final do qual, já a tarde ia a mais do meio, as delegações rumaram para o aeroporto, e uma após outra, regressaram aos seus países. Mas, a pedido do anfitrião, o Presidente José Eduardo dos Santos permaneceu mais tempo na Beira. Nem nós, os jornalistas angolanos que acompanharam a delegação, entendemos as razões que levaram Samora Machel a solicitar um encontro a sós com o nosso Presidente, em local que nenhum de nós soube: se no aeroporto, se fora dele, porque estávamos todos já próximos do avião a aguardar autorização de embarque.
Impondo a sua autoridade e para que não restassem dúvidas que aquele ‘miúdo’ era mesmo o novo Presidente de Angola, ainda na placa onde decorreram as honras protocolares de recepção e despedida dos Chefes de Estado, Samora Machel ordenou aos membros do seu Governo que se deslocaram à Beira, que não arredassem pé daquele local. “Quero que estejam aqui todos, para nos despedirmos do Presidente de Angola, o Camarada José Eduardo dos Santos”. E ninguém se atreveu sair do aeroporto, contrariando a orientação do Presidente.
O regresso dos dois à placa ocorreu cerca de duas horas depois, já quase ao fim da tarde. E cumpridas todas as formalidades protocolares, Samora Machel acompanhou José Eduardo dos Santos até a escada de acesso ao Topolev onde depois, virados um para o outro, apertou os seus dois braços pelos punhos com vigor, e repetiu pelo menos por três vezes, a seguinte recomendação: “Não vaciles! Mantém-te firme! Firme! Firme!” E acto contínuo, estreitaram-se num forte abraço que ele, Samora Machel, avesso à protocolos, complementou com fortes batidas nas costas de José Eduardo dos Santos e depois nos ombros, indicando-lhe então as escadas do avião.
Não sabemos o que os dois conversaram nesse retiro, mas percebemos que José Eduardo dos Santos deixou a Beira reconfortado e provavelmente, terá recebido outros subsídios porque Samora Machel e Agostinho Neto estavam igualmente ligados por uma relação pessoal muito estreita e tinham projectos que não passavam pelos demais integrantes dessa troika. Eram amigos e compadres, por via do baptismo de uma filha do estadista moçambicano que foi celebrado em Luanda com toda a pompa naquela altura em que já faltava quase tudo. Mas foi proporcionada uma festa de arromba nos jardins do Palácio da Cidade Alta, simbolizando a relação fraterna entre os dois povos.
Era eu um novato nas lides do jornalismo, e depois de ter acompanhado Agostinho Neto na Cimeira com Ramalho Eanes, Presidente da República Portuguesa, na cidade de Bissau, aquela foi a minha primeira viagem em serviço com o novo Presidente. E até agora conservo arquivada na memória, a imagem captada pela janela do avião de Samora Machel sorrindo e acenando para o avião desejando-nos boa viagem. Não sei se voltei a vê-lo…
Com a morte de Samora Machel, em 1986, num acidente de aviação (crime, falha técnica ou erros de pilotagem, ainda por esclarecer) resultado do despenhamento do Topolev 134 (nas colinas de Mbuzini) que o transportava de Lusaka (capital da Zâmbia) para Maputo onde terá participado numa reunião da Linha da Frente, que vitimou mais 33 membros da sua comitiva, José Eduardo dos Santos torna-se, aos 44 anos, o líder mais influente da Linha da Frente. E o combate ao regime racista que entretanto havia ocupado parte do Sul de Angola, conhece outra dinâmica, atingindo o seu ponto mais alto com as derrotas infligidas no Cuito Cuanavale, em 23 de Março de 1988, em Tchipa, Calueque e Ruacaná, com apenas 46 anos.
No Sul de Angola, “depois da derrota no Triângulo do Tumpo, Cuando Cubango”, citando o General Matias Lima Coelho ‘NZumbi’ no seu livro “O General dos Generais” bombardeamentos das Forças Armadas Angolanas a Calueque demostraram que “tínhamos condições para atacar as posições sul-africanas na Namíbia”.
Também nessa frente, foi a debandada completa e as forças sul-africanas que até então contavam com o apoio directo da administração norte-americana, foram forçadas a abandonar as áreas que ocupavam “vergados pelo peso da derrota” e pela supremacia das forças angolanas em terra e no ar.
“Eram nove horas quando chegou a coluna vinda do Lubango. De um Land Rover verde saiu um homem de camuflado, cartucheiras ao peito, ‘Aka’ preta de coronha retráctil e um lenço na boca para se proteger da poeira. Quando baixou o lenço reconheci o Comandante-em-Chefe. Saudou-me e ele disse-me que estava na Cahama para felicitar os combatentes. Levei-o para o posto de comando, escavado no chão, e fiz-lhe o ponto da situação” – narra o General Matias Lima Coelho ‘NZumbi’ no seu livro de memória. Ele e muitos outros oficiais vivos, foram testemunhas oculares de alguns dos feitos de José Eduardo dos Santos.
Para além desse confronto directo com um dos exércitos mais bem preparados de África, Angola debatia-se também com o conflito interno que opunha forças governamentais e as forças da UNITA lideradas por Jonas Savimbi, que também resolveu terminando com a assinatura dos Acordos de Paz, em 4 de Abril de 2002.
José Eduardo dos Santos transformou-se assim por mérito próprio, um Herói do continente africano e da África Austral particularmente. E esse estatuto, não tem relação com qualquer outro que lhe possa ser imputado, na sequência da desgraça que nos corrói, como se tivesse governado Angola sozinho.
Por essa heroica folha de serviço, e porque o Presidente João Lourenço é obrigado a respeitar a nossa própria história, não devia ser ele o promotor ou colocar-se no papel cómodo de cúmplice silencioso, passando ao mundo esse ofuscamento planeado do lado bom e heroico de José Eduardo dos Santos. Pelo respeito que merece e tem direito, devia sentir-se na obrigação de homenageá-lo no local onde estão depositados os seus restos mortais, apesar de ter permitido que regressassem ao país no porão de um avião.
Pelos seus feitos, José Eduardo dos Santos é merecedor de uma estátua no coração da África Austral. Não vacilou, como lhe pediu o Presidente Samora Machel naquela viagem à Beira que testemunhei. Manteve-se “firme, firme, firme” na derrota dos “carcamanos”, apelido atribuído aos militares sul-africanos.
Referências históricas:
A constituição da organização dos países da Linha da Frente (1976/1994), resultou de concertação dos presidentes de Angola (Agostinho Neto), Moçambique (Samora Machel), Botswana (Seretse Khama), Tanzânia (Jullius Nyerere) e Zâmbia (Kenneth Kaunda) logo após a independência de Angola e de Moçambique, na sequência de invasões dos sul-africanos. O objectivo fundamental era o de coordenar esforços, recursos e estratégias de apoio aos movimentos de libertação que actuavam na região, designadamente, o ANC e o Congresso Pan-Africano (na África do Sul), a SWAPO (na Namíbia), a ZANU e ZAPU, na então Rodésia (Zimbabwe).
Mas algumas das principais figuras da Linha da Frente, primeiro Agostinho Neto (em 1979), Jullius Nyerere (retirou-se em 1985) e Samora Machel (em 1986) ficaram pelo caminho antes mesmo de proclamada a independência do Zimbabwe, em 1980, da Namíbia em 1990, e não viram a eleição de Nelson Mandela como Presidente da África do Sul, em 1994.
Com a morte de Agostinho Neto e de Samora Machel, o afastamento de Jullius Nyerere e a saída de Kenneth Kaunda, José Eduardo dos Santos passou a ser tido como o líder da Linha da Frente detentor de maior protagonismo e influência, inclusive junto dos presidentes das principais potencias dos dois blocos, o Ocidental e do Leste, mesmo continuando a ser o mais jovens entre os presidentes da região e da África.
Numa visão mais abrangente e integradora, apesar do ambiente de guerra, os novos integrantes decidem, para além da vertente política e de segurança, dinamizar também as relações comerciais e de intercâmbio técnico, económico, social e cultural entre os países membros. E o primeiro passo foi consolidado com a criação da SADCC (Conferência de Coordenação para o Desenvolvimento da África Austral), no dia 1 de Abril de 1980 por nove dos estados membros, seguindo-se a sua transformação, em 1992, em SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral). Com presidência rotativa, foram integrados mais sete membros passando para 16 estados Independentes (África do Sul, Angola, Botswana, Comores, República Democrática do Congo, Lesotho, Madagáscar, Malawi, Ilhas Maurícias, Moçambique, Namíbia, Essuatíni, Tanzânia, Zâmbia, Zimbabwe e Seicheles).
José Eduardo dos Santos dirigiu a empreitada de construção desse edifício, que tem condição para continuar a subir, se os que ficaram continuarem a obra colocando cada um mais um tijolo.