Inesperadamente, eis os hospitais

JAcQUEs TOU AQUI!

Jacques Arlindo dos Santos

Todo o paciente que você vê é uma lição 

muito maior do que a doença da qual ele sofre

William Osler

Inesperadamente porquê? Perguntar-me-ão pela certa os que derem atenção à epígrafe. Inesperadamente porque o cidadão normal, aquele que pertence ao povo em geral e que é sempre o último a saber das coisas importantes,  não deixou de ficar surpreendido com a rapidez com que, nos últimos meses, se mostraram orgulhosamente ao público um conjunto de novas unidades hospitalares, superiormente equipadas e instaladas em diversos pontos do país. Ainda bem que elas apareceram, já terá gritado a maioria do povão, tornando até obrigatório o seu aplauso ao saudar a louvável decisão do Executivo. Uma atitude que peca apenas por tardia, há consenso. 

Independentemente das críticas que lhe caíram em cima pela colação que se tem feito dessas inaugurações a pretensa propaganda eleitoralista, elas não podem deixar de ser bem-vindas. Se seguirmos o sentido da palavra de ordem do Presidente Agostinho Neto, “o mais importante é resolver os problemas do povo”, temos que nos congratular com quem se empenha em resolver os problemas básicos da nossa população, sejam eles ou não concretizados em período eleitoral. Na verdade, o importante é que os problemas sejam resolvidos, até porque no caso vertente, o intrincado assunto da saúde é dos mais delicados temas sociais que a nossa sociedade enfrenta.

Mas, como em tudo na vida, neste caso também se coloca o princípio do não há bela sem senão. Pensamos nisso ao ganharmos consciência de que os hospitais não funcionam sem médicos, da medicina geral aos mais especializados. Não podem funcionar sem enfermeiros, paramédicos, administrativos e equipas multidisciplinares formadas para tirarem proveito das valências de máquinas, aparelhos sofisticados e equipamentos de primeiríssima geração que, tanto quanto sabemos, apetrecham gabinetes, salas, enfermarias e demais dependências que fazem o todo de todos os bons hospitais. Nessas circunstâncias, é suposto que se coloquem às autoridades outro tipo de problemas. Evidenciam-se claramente e estão relacionados com as imensas carências de capital humano, existentes na área da saúde. “A menos que estejam a ser formados em larga escala e escondidos da população”, brinca-se com a situação. Porém, o assunto não é para brincadeiras. O que fazer então? Pergunta o povo e perguntar-se-ão os governantes que têm noção das dificuldades que a falta de quadros acarreta. Não tardará que fatalmente venham à tona hipóteses de novos acordos de cooperação com parceiros estrangeiros, talvez já despoletados ou em vias disso; quem sabe até se acontece o mais inesperado, ou seja, que os futuros OGEs se venham a submeter a revisões ou reformas pontuais e sejam os seus números observados com outro realismo, abdicando o Executivo de gastos supérfluos e inúteis para o momento (que não abonam em nada um país em crise), com o objectivo de atacar o problema dos quadros para a saúde (um entre muitos outros problemas que estamos com eles). Posto isto nestes termos, conclui-se que não haverá saída que não seja a fatal contratação de médicos e técnicos estrangeiros, sejam cubanos, portugueses, vietnamitas, espanhóis, sejam os que forem, caso se materialize a ideia de organizar a sério, a área mais importante da nossa vida social. Se assim for, vai exigir-se que sejam competentes, que ajudem a formar técnicos angolanos e não venham com remunerações bastante superiores aos dos nacionais, para que não se reacendam makas antigas do sector. 

Temos noção das dificuldades que se enfrentam para contornar todas essas contrariedades mas, perante a evidência da situação, não há razão para, pelo menos, não falarmos do problema. É necessário que se aborde a questão. Quero afastar para bem longe de mim, a hipotética imagem dessas instalações modernas a degradarem-se por falta de pessoal que cuide delas. Não gostaria de ver repetida, agora na saúde, a triste cena da falência dos estádios de futebol erguidos no CAN que realizamos há doze anos.

Baseando-me na costumeira prática governamental, o acto acidental enfatizado na abertura desta crónica, não terá o mesmo impacto para os auxiliares do Executivo da área da saúde nem para os técnicos que se envolveram na construção e acompanharam o processo que culminou com o surgimento dessas grandes unidades hospitalares. Assim sendo, só esperamos que tudo corra na medida das suas previsões. Na perspectiva do povo em geral, a viver ainda os efeitos da mortífera pandemia da Covid-19 e a sofrer diariamente na pele os males insanáveis do paludismo e da febre tifóide, talvez se encaixasse melhor a ideia do aumento dos postos médicos nos bairros e municípios de todo o país, unidades com capacidade técnica e humana para resolver essas enfermidades e onde o processo de acesso aos hospitais de referência fosse feito somente em caso de emergências justificadas. Não tenho autoridade para falar do caso, mas a verdade é que existe muita gente a pensar como eu e que afirma poder ser um esforço quase inútil, caso esses hospitais de primeira linha se venham a dedicar, como o mais vulgar centro médico, ao tratamento de casos que apelam à resoquina e ao paracetamol, coisa que, sinceramente, não acredito que possam vir a acontecer. 

Como se não bastassem essas inquietações, deparamo-nos com uma efervescente campanha eleitoral, com os partidos políticos e seus apoiantes a pretenderem transformá-la num acontecimento fora de série. Distanciado das questões políticas, o dia-a-dia do povo em geral que sabe tarde das coisas importantes, segue o seu curso desregrado e compraz-se em mostrar-nos inúmeras situações de enfermidades causadoras da morte da população desprotegida, sem meios para procurar estabelecimentos particulares, sem seguro de saúde, sem hospitais capazes de atendimento rápido e postos médicos suficientes, uma situação trágica e real que me faz, por muito que não queira, regressar repetidas vezes ao tema da saúde precária dos cidadãos e dos hospitais na sua forma original.

Foi a gerir este quadro de preocupações que me encontrei com o Alberto (nome fictício) um dia destes, numa rua movimentada da baixa luandense. Foi ele a chamar-me aos gritos e ao ouvi-lo logo manifestei alegria, apressei o passo para o abraço da ordem. Há quanto tempo não o via! Pudera. Estive ausente da terra, mais de dois anos! A seguir, um aperto de mão vigoroso mas com a nota de que havia algo de estranho na figura do Alberto. Ele não podia estar de boa saúde. A palidez do rosto a sobressair na pele negra brilhante, aquela magreza que lhe retirava uns bons quilos à sua estrutura física, não indiciava boa coisa. E fui directo na pergunta, “Alberto, tu estás doente?”. Puxou um sorriso meio envergonhado mas muito amarelo, mais pálido ainda que a expressão da sua cara. A palidez também lhe tingia os olhos, mostrando-os timidamente ao responder, “não estou doente, sinto-me mesmo bem”. Insisti até ao ponto de o convencer a admitir que não podia estar bem com aquele aspecto. No final de uma série de perguntas que lhe fiz, fiquei esclarecido. Não tinha ideia de algum dia ter feito análises ao sangue, nunca fez nenhuma radiografia, sequer um electrocardiograma, desconhecia o papel da urologia na nossa saúde, a próstata não lhe dizia nada, a diabetes e o mal do açúcar elevado, idem, aspas.

Infelizmente, o caso de Alberto não é único, existem muitos angolanos, de crianças a velhos, nas mesmas condições, a viverem situações claras de falta de educação e orientação sanitária que, queiram ou não aceitar os responsáveis, só podem ser minoradas com a enérgica intervenção do Estado. E poderia começar-se pelo mais fácil. Ocuparem-se melhor os tempos e espaços desperdiçados nas rádios, nos jornais e nas televisões, com a promoção de campanhas devidamente estruturadas e veiculadas pela comunicação social estatal que tem a obrigação de ser o principal parceiro do governo na educação cívica da população. Temos que exigir, obriguemos a que cumpram o seu dever realizando trabalho social útil, no campo da saúde e da educação, das boas maneiras e dos hábitos saudáveis, deixando de lado ou reduzindo conteúdos de uma inutilidade absoluta que todos nós conhecemos. Porque se trata de um projecto tão importante quanto o da alfabetização, transformemos este grito num apelo da sociedade. Será, entretanto, uma bela oportunidade para os directores e realizadores da comunicação social angolana lançarem-se a projectos verdadeiramente úteis para a sociedade. Com tanto para ensinar e para aprender, é lamentável ver-se tanto desperdício a andar por aí!

E por aqui me fico. Esperando que o Alberto tenha seguido o meu conselho e conseguido uma consulta a preço suportável, despeço-me dos meus leitores, amigos e companheiros de luta. Espero por todos, no domingo próximo, à hora do matabicho.

Luanda, 11 de Junho de 2022

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