SOBRE A PONTUAÇÃO DE ANGOLA NO ÍNDICE DE DEMOCRACIA 2024

Como foram encontrados os indicadores que apontam como melhorias e elevação da classificação no relatório em que a pontuação de Angola (Governo) melhorou 0,22 pontos em 2023, colocando-o agora no 107º lugar no ranking da análise de 167 países e territórios?

POR CESALTINA ABREU

Para esclarecimento dessas questões e na qualidade de co-coordenadora e investigadora do Laboratório de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Católica de Angola, porque apesar de inscrita e por dificuldades de acesso ao sinal de internet não consegui participar na webinar de apresentação do relatório que ocorreu no passado dia 28 de Fevereiro, enviei a Joan Hoey, diretora regional para a Europa na Divisão de Análise  da Economist Intelligence e coordenadora da editoria do Índice de Democracia, um email expressando as minhas preocupações sobre a classificação que se atribui ao meu país, por entender que não reflecte o que tem sido a nossa realidade, sobretudo política.

Referi a Joan Hoey que é muito difícil compreender a “promoção” que o Índice conseguiu fazer em relação a Angola. E isso porque, o Laboratório de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Católica de Angola, de que sou co-coordenadora e investigadora, está a realizar um estudo sobre a sociedade civil, movimentos sociais e activismo em Angola, com abrangência nacional nestas três “categorias” de organização política da cidadania, cujos resultados preliminares apontam para o contrário.

O estudo inclui as percepções dos inquiridos sobre democracia, participação, direitos humanos, relação entre poderes instituídos (Executivo e Assembleia Nacional) e sociedade civil, eleições gerais de 2022, entre outros. Deverá estar concluído até ao final deste ano, mas posso desde já adiantar que tudo aponta para uma progressiva e acentuada degradação da situação no país, a começar pelo agravamento das condições de vida da população, e da pobreza extrema, da fome e das desigualdades sociais, como dei conta a Joan Hoey.

A questão é que a mera realização formal de procedimentos democráticos em contextos de evidente autoritarismo, torna enganador o conceito de democracia híbrida. Na realidade, nestes contextos – e estamos a referir-nos a Angola – a componente de ‘características democráticas’ – a nível governamental e institucional – não está presente. 

Chamar democracia híbrida a um regime autocrático e cada vez mais autoritário e excludente, é minimizar e negligenciar a realidade. Mesmo a crítica que se centra no ‘autoritarismo eleitoral’ esquece que a democracia é vivida (ou não) diariamente nas múltiplas esferas da existência e da vida social, política, económica, etc…

Angola continua a ter uma má pontuação noutros indicadores. Com alguma surpresa, sobretudo pela rapidez, nas 24 horas seguintes recebida a resposta de Joan Hoey. Nela, começou por agradecer o nosso interesse pelo Índice de Democracia e por termos dedicado algum tempo a escrever-lhe sobre os desenvolvimentos em Angola, lamentando o facto de eu não ter podido assistir a toda a sessão do webinar, mas que receberia uma cópia da gravação.

Respondendo às preocupações por mim colocadas no email que lhe enderecei, Joan Hoey começou por clarificar que a pontuação do índice de Angola melhorou 0,22 pontos em 2023, não devido a qualquer melhoria nas instituições ou processos democráticos, mas, precisamente, devido a uma maior participação política e protesto por parte da população. Consideramos que, disse ela, a participação política é uma componente vital da democracia.

Mas, para melhor entendimento, transcrevo na íntegra o conteúdo da sua resposta:

“A pontuação da Q34 (consultar os anexos no final do relatório) – “preparação da população para participar em manifestações legais” – melhorou em 2023. Isto reflecte um aumento das manifestações dos angolanos em todo o país em 2023, num contexto de crise de custo de vida, em particular desencadeada pela decisão do Governo de remover progressivamente os subsídios à gasolina. A pontuação da Q33 – taxa de alfabetização de adultos – também melhorou, reflectindo a taxa de alfabetização de adultos de Angola de 72,4%, que é um indicador importante da preparação para participar na actividade política.

A melhoria na pontuação da participação política deve ser interpretada como uma reacção positiva da população às deficiências do Governo em Angola. Não implica uma melhoria global noutros aspectos da democracia no país.

Angola continua a ter uma má pontuação noutros indicadores: Funcionamento do Governo (3,21) e liberdades civis (2,65). Ao contrário de outras medidas de democracia, o nosso Índice inclui a participação política como uma componente vital.

Tal como salientei no webinar, o modelo do Índice de Democracia é uma medida “espessa” da democracia. Baseia-se no ponto de vista de que as medidas de “liberdade política” da Freedom House não abrangem suficientemente, ou de todo algumas características que determinam o carácter substantivo da democracia ou a sua “qualidade”. Os elementos da participação política e do funcionamento do Governo só são tidos em conta de forma marginal e formal no índice da Freedom House. O nosso Índice de Democracia baseia-se em cinco categorias: processo eleitoral e pluralismo; liberdades civis; funcionamento do Governo, participação política e cultura política.

As nossas cinco categorias estão claramente inter-relacionadas e formam um conjunto conceptual coerente. A condição de ter eleições livres e justas e competitivas, e de satisfazer os aspectos relacionados com a liberdade política, é, claramente, o sine quo non de todas as definições. Todas as definições modernas, excepto as mais minimalistas, consideram também que as liberdades civis são uma componente vital do que é frequentemente designado por “democracia liberal”. A maioria das medidas, como a medida da Freedom House, inclui também aspectos da qualidade mínima do funcionamento do Governo (se as decisões baseadas na democracia não puderem ou não forem implementadas, então o conceito de democracia não tem muito significado ou é uma concha vazia). A participação é uma componente necessária (reflectida apenas marginalmente na medida da Freedom House), uma vez que a apatia, a abstenção e a não participação são consideradas inimigas da democracia. Além disso, uma cultura política democrática é crucial para a legitimidade, o bom funcionamento e, em última análise, a sustentabilidade da democracia, e daí a inclusão da categoria cultura política no nosso Índice.

Como a pontuação global de Angola estava no extremo superior da classificação de “regime autoritário”, em 2022 (em 3,96), as duas alterações de pontuação foram suficientes para aumentar a pontuação global do índice para 4,18, empurrando Angola para a classificação de “regime híbrido”.

Angola encontra-se no extremo inferior da classificação, acima apenas da Mauritânia (4,14), e está em 107º lugar no ranking de 167 países e territórios. Isto não representa uma grande melhoria: mas, na medida em que houve uma melhoria, é o resultado do envolvimento da população em protestos populares contra o Governo.

A melhoria registada no modelo não indica que o Governo se tornou mais democrático – mas reconhece o espírito da população angolana em exercer o seu direito democrático de protestar (mesmo perante a repressão do Estado).

Espero que esta explicação responda às suas preocupações e lhe dê uma melhor compreensão do modelo do Índice de Democracia. Encorajo-vos a fazer uso do relatório e a utilizar o ensaio sobre o modelo e a metodologia – e os 60 indicadores que compõem o modelo – como um recurso e a base para a discussão entre o vosso grupo. O relatório está disponível para descarregar gratuitamente aqui.” – fim da resposta de Joan Hoey.

Maior visibilidade da acção da sociedade civil é considerada uma conquista e não uma concessão. Como referi, na verdade, fui agradavelmente surpreendida pela rapidez e o cuidado da resposta de Joan Hoey. Mas foi ainda com mais satisfação, que identifiquei comunalidades entre a sua resposta e as razões apresentadas pelos respondentes ao nosso estudo, nomeadamente, ao considerar que uma maior abertura do espaço público se deve a uma conquista da cidadania, através da realização de manifestações, de acções cívicas (petições, acções populares, protestos, etc…). Estes entendimentos foram posteriormente defendidos nos cinco encontros regionais de validação das respostas ao questionário que serve de base ao Estudo sobre Sociedade Civil, Movimentos Sociais e Activismos. O mesmo aconteceu na resposta à pergunta sobre como poderia o Governo angolano ser classificado no que se refere a participação da sociedade civil. A maior visibilidade da acção da sociedade civil é considerada uma conquista e não uma concessão.

Dei conta que o nosso estudo vai entrar na fase de sistematização e análise dos dados por regiões e a nível nacional. Em princípio, esperamos produzir entre 5 a 6 produtos, com base nos resultados, e esperamos estar em condições de os apresentar para as últimas contribuições em finais deste ano.

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