Guiné-Bissau. Há coisas que nem mesmo a Sociologia pode explicar

Elísio Macamo*

A televisão suíça entrevistou-me para me perguntar o que pensava sobre a tentativa de golpe na Guiné-Bissau. Uma das perguntas que me colocaram foi porque o país anda sempre em golpes. Recorde-se que já houve quatro golpes e dezasseis tentativas. É muito fácil recorrer ao que todos nós sentimos e responder dizendo “é a África!”. Tendo em conta que a tentativa veio na sequência de outros golpes recentes na África Ocidental essa resposta faria todo o sentido.

Só que eu preferi complicar as coisas. Disse à jornalista que não havia nenhum mistério, apesar de ser extremamente desagradável e mau. Cada país desenvolve as suas maneiras de resolver problemas, quer elas sejam boas ou más. Quando uma maneira parece eficaz, a tendência é de ela se tornar no meio ao qual se recorre quando se reúnem circunstâncias que exigem uma “solução”. É interessante notar que o golpe de estado é um método frequente na África Ocidental. Na nossa região são as guerras civis. O Lesoto foi talvez uma grande excepção.

Mas que sociologia se esconde por detrás disso? É uma sociologia negativa. Inspiro-me numa ideia do intelectual ugandês, Mahmood Mamdani. Fala daquilo que ele descreve como “história por analogia” referindo-se à mania de analisar a África a partir da comparação com a Europa, muitas vezes apresentando o nosso continente como uma aberração. A sociologia negativa em causa tem duas dimensões. 

A primeira descreve-se melhor com recurso à expressão “deus ex machina” (deus surgido da máquina) que se refere a uma solução miraculosa, repentina e inesperada para algum problema, tipo ruandeses de repente oferecerem a sua ajuda como se não tivesse nenhum antecedente sobre o qual a sociedade não foi informada. No caso da história por analogia esta dimensão funciona ao nível de pensar o que a Europa é hoje como algo que surgiu do nada, dum momento para outro. Ou por outra, imaginamos a Europa hoje sem história nenhuma. Num belo dia ela ficou democrática, civilizada, respeitadora dos direitos, etc. Recordei à jornalista que o nosso ideal político refere-se à Europa dos últimos 80 anos, e isso apenas numa parte pequena dela.

A segunda dimensão está ligada à primeira. Manifesta-se através da procura, nos desaires que a África sofre, apenas das razões que explicam o falhanço, mas nunca daquilo que pode apontar caminhos para o futuro. A dificuldade aqui chega a ser lógica e ter muito a ver com a obsessão que temos nas ciências sociais, e no quotidiano, de explicar fenómenos a partir dos seus resultados. Dito doutro modo, se alguém teve acidente é porque de certeza conduziu mal, se um país tem pobreza é porque os governantes não fizeram nada, se, já agora, o projecto na origem das dívidas ocultas se deu mal é porque o projecto em si era mau, etc. 

O problema da história por analogia é que ela assenta numa concepção teleológica. Isto é, ela parte do princípio de que a história humana tem uma lógica própria que se desenrola no cumprimento dum objectivo pré-definido. Assim como no Cristianismo estamos na terra em preparação do dia do Juízo Final, ou no Marxismo caminhamos irremediavelmente rumo ao comunismo, a história por analogia imagina o percurso humano como algo progressista em que estamos sempre a subir. É tão forte essa convicção do progresso inevitável que quando um país não consegue, a suspeita é sempre que não se esforçou o suficiente. A crueldade da história por analogia reside justamente aqui.

O sucesso europeu serve sempre como prova de que é possível. Aqui nem importa aquela questão já levantada nos anos setenta no contexto da teoria do sistema-mundo, segundo a qual haveria uma relação estrutural entre o sucesso de uns e o falhanço de outros. Mas o mais grave nem é isso. É a forma como a história por analogia nos encoraja a ver o sucesso como manifestação duma lei natural, um pouco aquela coisa de se pensar que quem se esforça sempre acaba sendo recompensado. É claro que a moral por detrás dessa crença é linda, mas não tem nada a ver com a vida e com o mundo. Nietzsche não gostava nada disso e ocupou-se disso longamente na “Genealogia da moral”. 

Na prática, a história por analogia cria um ambiente de frustrações que priva o discurso académico da paciência necessária para pensar os problemas estruturais do continente e, no fundo, nos embrutece porque só pensamos o político numa perspectiva material, portanto, aquilo que escrevia ontem. Por exemplo, quantos presidentes africanos (incluindo o celebrado Kagame) têm uma ideia de política independente de preocupações materiais? O que é visão política no nosso seio senão o desejo difuso de resolver os problemas do povo? Vamos ser directos: o nosso presidente tem alguma ideia do que significa construir um país? Ele é capaz de articular alguma visão nesse sentido? A julgar pelo que diz e faz tenho muitas dúvidas. E, infelizmente, não é só ele. Mesmo ao nível da esfera pública podemos constatar a mesma pobreza.

Dei voltas para chegar ao ponto de partida. Porquê o golpe na Guiné? Segundo a sociologia negativa que proponho aqui, o problema é, talvez, de olhar para o golpe de forma isolada como um fenómeno sui generis. Não é. O golpe, a guerra civil, ou seja qual for o mecanismo através do qual uma comunidade política tradicionalmente resolve os seus problemas é uma manifestação de duas coisas: primeiro, da ausência duma abordagem articulada do desafio de construção nacional e, segundo, da consequente falta de investimento nisso. Sissoko não tem projecto político que vá para além do combate ao narcotráfico e, por isso, não vê a necessidade de investir na criação de condições que permitam que todos os actores políticos guineenses se sintam parte de alguma coisa. Tudo o que tenho visto dele é a hostilização de quem não está com ele.

Em Angola, aconteceu o mesmo. O projecto político de João Lourenço é a luta contra a corrupção. Fora disso, não vejo mais nada. Aqui suspeito, infelizmente, que mesmo a oposição – que em Angola é de outro calibre – também não tem projecto para além de fazer diferente do actual governo. Em Moz estamos a ver o mesmo e de forma mais trágica ainda. A Frelimo não tem projecto político (devemos reconhecer isso) para além de se manter no poder. E pior: procura essa manutenção do poder através da hostilização de quem não faz parte, ou se faz, não alinha com o discurso dominante. A forma como a presidência se transformou praticamente numa monarquia em que o presidente não comunica com a sociedade, não é interpelado por ninguém, evita a imprensa, comenta assuntos quentes através de indirectas em discursos (como recentemente em relação à sociedade civil), etc… não é manifestação dum estilo pessoal. É resultado directo da miséria da política.

E uma consequência disso é a perda de controlo sobre a população. Se houver mudança em Moz, essa mudança vai necessariamente ser violenta, nunca pacífica porque a política não investe na criação de condições para que assim seja. A forma como o governo lidou com a questão das portagens é disso prova. Falta-lhe sensibilidade política. E, curiosamente, por causa disso mesmo uma das maneiras que um poder dessa natureza tem de se manifestar é o investimento na repressão. 

A indiferença em relação ao sofrimento das pessoas em Cabo Delgado, o mau comportamento de agentes policiais que é sistematicamente ignorado pelo governo, as medidas drásticas contra a população pobre no contexto da Covid, etc. tudo isso faz parte duma lógica que tem o seu respaldo na perplexidade política. 

Sendo assim, a questão de fundo não é porque há golpes ou guerras civis. É porque os golpes e as guerras civis não produzem outro tipo de sensibilidade política? E para essa pergunta não tenho resposta. Há coisas que nem mesmo a Sociologia pode explicar.

*Sociólogo moçambicano 

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