FABULOSO MUNDU IÊTU (6)

 
JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

CAPÍTULO 6

O mundo crescia surpreendentemente em termos humanos. Quase sem se dar por isso, os vales e savanas, os extensos territórios até então desabitados, deram lugar aos grandes centros populacionais, a vilas e grandes cidades. Nasceram as grandes estradas e avenidas, os túneis e as pontes; expandiram-se as fábricas e intensificou-se o comércio geral, os rios sugeriram barragens e outras barreiras artificiais, os mares, os mesmos que distanciaram cidadãos do mundo inteiro, voltou a aproximá-los, produziram riqueza incalculável. Fizeram surgir os portos e a garantia do transporte de mercadorias; ligaram terras distantes, transformaram-se em retaguardas de guerra. A aviação, os caminhos-de-ferro e as comunicações tornaram o mundu iêtu mais próximo e acessível. Os enormes latifúndios diversificaram culturas e mostraram as suas enormes capacidades. Nas universidades estudaram-se variadíssimas matérias, o direito, inclusive. Com a nobre intenção de se conquistar o mundo. Nomeadamente o espaço astral. Dominaram-se várias ciências. A saúde permitiu que se vivesse mais e melhor, mas o homem mau, sempre com o espírito do lobo e da hiena a guiá-lo, não permitiu vitórias sobre muitas enfermidades. Principalmente a da insensibilidade e da ganância. Contudo, nessa e noutras áreas, formaram-se os sábios e os doutores. Com uma percentagem enorme de ignorantes e analfabetos, viu-se o mundo a crescer. Vivendo todos na eterna expectativa de um dia poderem ser alguém.

Lembram-se os acontecimentos das transformações verificadas, todavia cobriu-se com um manto de esquecimento, com tecido forte de neblina, o pensamento de homens e mulheres. Pelo mundo fora, muitos deles esqueceram a existência do antigamente da vida. Nunca mais se lembraram de personagens icónicas como Katambi e Tendungumba. Delas passaram a fazer apenas referências e imitações refinadas. 

Foram esquecidas as actividades sobrenaturais dos feiticeiros afamados, obrigando-nos a recordar a acção dos mulóji de primeira grandeza, nos quais se integrava o famoso Ngana Nvunji de triste memória. Foram todos intérpretes de actos chocantes. Permitiram e conduziram entre o mais bárbaro e terrível das sociedades antigas, a transfiguração de pessoas que passaram magicamente da vida real para a vida mística. Algumas ficaram a ser vistas como imortais. Os principais alvos da transformação fabulosa eram figuras públicas. As práticas proporcionaram vidas vividas por muitos anos, utilizando sempre os mesmos nomes de então. Não mudavam nunca a fisionomia e a forma de ser e de pensar dos tempos de antigamente. Ocuparam os mesmos espaços, os cargos de sempre, e tiveram os mesmos chefes conselheiros. Resultado mais visível desse fantástico estado de transformação: um toque discreto mas indisfarçável da genética que os identificou para a eternidade, quer fisicamente, quer na estrutura mental. Facilmente se fazia deles o retrato implacável da maldade. Era intrínseco, o mal estava estampado na sua fisionomia, a carregar inexoravelmente maldade incomensurável.

O tempo deixou marcas. Nas nossas bwala foram indiciados os cúmplices dos acontecimentos da vergonha. Nunca houve inocentes no rapto da menina Úmba, filha de Kassembe. Provou-se o conluio com as hienas, tal como se mostrou que houve cumplicidade com Nzûmbi, o diabo maldito, no caso da menina com o coração a bater do lado direito. Provavelmente, um dia qualquer, será instituído o dia da clemência e do perdão, consagrado ao arrependimento e ao pedido de desculpas.

Para a posteridade ficaram aspectos menores, fisionómicos, identitários. Homens e mulheres, puros ou atravessados de raça, distinguiam-se pelos seus traços. As testas largas e amplas, sem rugas, os narizes extravagantes, redondos ou afilados, aduncos ou romanos, as bocas sensuais, pontiagudas, feias e bonitas, mais os dentes grandes, passaram a constituir sinais fortes nos processos identificativos dos indivíduos. Constituíam a base da ascensão política e profissional de certos cidadãos. Marca infalível para se tornarem chefes entre os seus, mesmo que não tivessem capacidade para os desempenhos. Talvez fosse mera ilusão, mas faziam lembrar hienas, na maioria dos casos analisados. 

Por outro lado, ficou para sempre inscrito no pensamento popular, que homens e mulheres nascidos geneticamente com o coração ao contrário, só podiam dar filhos de maus instintos. 

Neste fabuloso mundi iêtu, desde o seu antigamente, aconteceram coisas impensáveis que haveriam de se repercutir por séculos e séculos. No tempo percorrido, criaram-se e multiplicaram-se milhares, milhões de pessoas maldosas, aproveitadoras do mal alheio, que desviaram em momentos próprios e exclusivamente para o mal, nações nascidas sob os auspícios do bem e da prosperidade. Não podia resultar noutra coisa a convivência secular com hienas e marimbóndo, os animais que melhor simbolizaram o mal e deixaram a nação à mercê do descrédito e da falta de carácter dos seus mandantes. Derrubaram tudo o que havia sido construído pelos seus antecessores, na base e com os fundamentos da dignidade e do respeito. 

Influenciaram as novas gerações de sempre mas, no fundo, não alteraram o seu comportamento retrógrado, rígido, a sua teimosia secular, a sua indiferença e arrogância perante os semelhantes. Mantiveram também o terror sempre sentido pelos animais dos muxitu, do mesmo modo que jamais deixaram de acreditar no feitiço e nos feiticeiros. 

EPÍLOGO

O povo wakangu, a exemplo de muitos africanos, amargou, século atrás de século, as vicissitudes e os conflitos gerados pela ocupação estrangeira. Vítima dos mesmos algozes herdou os hábitos e costumes dos ancestrais, as suas virtudes e seus defeitos, embora nunca se tenha afastado das ideias que o norteou no sentido do primitivo pensamento. Desde o antigamente da vida, os caminhos que trilhou conduziram-no gloriosamente rumo à liberdade e ao direito de ser ele mesmo. 

Presenciou, como poucos, a maldição das mulheres. Circunstancialmente esteve presente em momentos críticos. Nos que julgaram comportamentos. Dos que amaldiçoaram Nguáxi e Kassembe. 

Observou, como poucos, sociedades a encarar serenamente o fenómeno da mestiçagem. Seguiu o desígnio apontado pelos Ngana. Durante séculos, os mestiços foram vistos como símbolo da maldição. São ainda o resultado das misturas nunca aceites. Aos olhos de muitos vistos como pessoas más, falsas, pouco tolerantes. Contra eles, os ódios exacerbaram-se e perduraram até aos nossos dias. A mestiçagem foi factor de negação e ódio das partes que a construíram, e por imposição maior do mais poderoso parceiro nessa acção. 

Através de duras lutas, o povo alcançou a liberdade, embora as tribos em luta eterna se digladiassem exacerbadamente para estar em vantagem nas disputas políticas. A corrupção, o nepotismo, a exclusão e todos os males que prejudicam as nações nunca tiveram significado para muitos dirigentes africanos e mundiais. Enquanto se amestraram e se amansaram os animais selvagens em circos e zoológicos, os humanos tornaram-se cada vez mais ferozes, mais desumanos.

Mostram capacidade de sonhar mentirosamente com processos de democratização em sociedades autocráticas. Falam dissimuladamente de justiça séria e independente, enfim, de poder alicerçado na vontade popular. Brincam com vocábulos como “sociedade civil”, sem noção correcta da tremenda responsabilidade que o termo em causa encerra.

E assim caminha a humanidade, desde os tempos primitivos de Katambi e Tendungumba. A alimentar-se de esperanças, aguardando que um dia qualquer se alcance a paz e o progresso para todos.

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