CAPÍTULO 3
Avançando na caminhada do tempo, a narrativa alcança o burgo de Tendungumba. Encontra confiante, o primeiro-conselheiro de Katambi. Um nzuakahima de gema, refractário às leis wakangu e acérrimo opositor da governação do Chefe Grande. Notava-se a rivalidade entre os dois altos responsáveis cada vez mais acesa. Também visíveis nos apoiantes dos dois lados em confronto, a falta de sabedoria para ouvir, opinar, orientar e dirigir, secundada por impune permissão da manutenção de atitudes condenáveis. A arrogância, a teimosia e o obscurantismo cultivados pelos ngana mandantes.
O povo tentava, embora tivesse ganhado consciência das dificuldades em superar a anormal situação vivida. Apesar dos esforços, não conseguia adquirir força suficiente para reagir. Continuava enredado por ideias rudimentares. Resmungando apenas, não fazia barulho nem mostrava atitude capaz. Não ultrapassava as barreiras impostas pelas coisas menos boas a acontecer amiúde. Os que tiravam vantagem da situação esdrúxula batiam palmas, apoiavam com entusiasmo as asneiras cometidas. Os outros iam dando mostras de um desagrado indisfarçável, indiciando contornos de uma profunda divisão na comunidade.
Os ideais dos povos wakangu permaneciam confinados a um beco situado entre a ignorância e a espiritualidade. A situação era inaceitável, o povo sabia-o e mostrava isso. Mesmo com as suas limitações, dava conta dos tremendos erros que o manietavam. Na verdade, vivia-se uma situação deplorável, porém aceite resignadamente por todos ou quase todos.
Ao contrário do que acontecia na bwala de Katambi, na de Tendungumba funcionava, inexplicavelmente, uma “lei” abominável a que ninguém se conseguia opor. Extraordinário. Era determinação de carácter reservado, muito íntima e pessoal, apenas aceite nessa bwala. Tratava-se, na verdade, de uma decisão especial, uma ordem “institucionalizada” pelo feiticeiro-chefe, um indivíduo preponderante no meio e no aparelho da governança. A sua acção, independente dos demais poderes, soberana, portanto, punha, desde logo em evidência, as contradições existentes entre os dois maiores grupos da família wakangu.
A incongruência da medida posta em vigor há considerável tempo, era de tal modo sensível que acabava por atingir com rudeza, os sentimentos de todos, inclusivamente os dos povos distantes, igualmente filhos da grande Nação. Para essa gente, a “lei” não vigorava. Prova disso era o facto de não se ter notícia de nenhuma deslocação do feiticeiro-chefe a território de Katambi ou a outro qualquer, muito menos da divulgação oficial da original orientação política.
O dito feiticeiro era um homem de fisionomia tenebrosa. Diziam que contava mais de trezentos anos de vida. Feio como a fome, dizia-se que tinha o dom de falar fluentemente com os bichos, e deles recebia orientações animalescas. Tal como recebia de Kitári, o anjo da riqueza e da felicidade, uma gama de ensinamentos espirituais. Especulava-se que era, em muitos aspectos, o todo-poderoso, o manda-chuva da comunidade.
Tinha, entre muitas funções atribuídas superiormente, a de tirador oficial de kabásu, cargo para que, assim se dizia, havia sido designado pelo iluminado Kitári. Estava escolhido para ser o iniciador da vida sexual das jovens da bwala em idade casadoira.
No desempenho do cargo há imenso tempo, já não havia lembrança do início da função, o circunspecto e assaz competente Ngana Nvunji tinha naturalmente registado no currículo, um infindável número de kabásu quebrados a jovens donzelas. Bonitas, feias, magras, gordas, baixas, altas, discretas, atrevidas, todas elas, passavam pelo crivo provador do velho depravado. Eram mulheres destinadas à preparação para a vida marital. Aprimorar a arte de dar prazer sexual ao marido em aulas que obedeciam a um certo ritual, era o seu trabalho principal. Executava-o em local criteriosamente escolhido e resguardado dos olhares públicos e familiares, sendo essa, entre muitas outras, a actividade de maior relevo do mais-velho feiticeiro, especialista maior em actividades sobrenaturais.
– Nga kuriondo ku nguikatulé kabásu – foram capazes de implorar na hora crítica, algumas debutantes mais corajosas, negando-se a entregar a virgindade ao velho debochado.
Vieram as punições e foi o princípio do fim. No seio da comunidade gerava-se alguma contestação à acção do feiticeiro-mor, que já não detinha o domínio daquela área, muito propícia para actuação do imaginário popular. Foi o descalabro. A idade avançada do kota e suas reconhecidas fraquezas não ajudavam. As debilidades levavam-no a não poder cumprir com rigor profissional a missão mais importante do seu mandato. Enfrentava situações bastante embaraçosas na hora de agir. Faltava-lhe o ngúzu, a força suficiente para tirar o kabásu das jovens casadoiras da bwala que lhe eram dadas para o sacrifício nas vésperas dos seus enlaces. A demanda era grande e a resposta do velho Ngana Nvunji bastante precária.
Foi nessas dramáticas circunstâncias que o caso chegou ao conhecimento de Tendungumba. Urgia uma decisão, e essa não seria fácil de tomar. Mas o Chefe tomou-a rapidamente. Foi sem nenhum espanto que se viu o todo-poderoso chefe Tendungumba a anunciar:
– Precisa-se novo chefe para substituir Ngana Nvunji – os putativos concorrentes pensaram imediatamente e com certa apetência, na função especial de tirador de kabásu.
Com esse gesto, atropelavam-se regras do poder local, gerando, desde logo, preocupações na bwala e principalmente no topo da hierarquia. Embora distante, a notícia acerca dos procedimentos em curso chegou a Katambi como mais uma manifestação de rebeldia de Tendungumba.
Apresentando-se candidatos para a substituição, logo se destacou Titundu, o problemático filho de Tendungumba, como o mais apetrechado de todos os pretendentes. Não havendo conhecimento de situação do género e no intuito de se evitarem males maiores, declarou-se urgência na escolha. Titundu, o insubordinado filho de Tendungumba, mostrava-se apressado para tomar posse de todos os cargos que lhe dessem poder imediato e, nesses termos, ia exigindo, às escondidas, a consumação do acto. O objectivo era o de conquistar um cargo que pudesse render, entre outros privilégios, a tomada de assento na Assembleia de Conselheiros, onde também poderia vir a chefiá-la.
Continua…
