ACABEMOS COM A CULTURA DE ÓDIO CONTRA ANTIGOS TITULARES DE CARGOS PÚBLICOS

Tratar um antigo Presidente da República como “povo em geral” não implica desrespeitá-lo. Temos de acabar com este tipo de procedimento, bastante comum entre nós, que em nada nos dignifica como seres humanos e muito menos ainda, como Africanos. Todo o anterior Presidente da República merece o nosso respeito e a nossa consideração.

PAULO DE CARVALHO

Esta semana, o parlamento angolano deu o seu aval para admissão da proposta de lei que aprova o Estatuto dos Antigos Presidentes da República. A sua discussão, ainda na generalidade, fez-me reflectir acerca de um fenómeno que ocorre entre nós, que consiste no hábito de maltratar os antigos titulares de cargos públicos (que também já se levou para o sector privado).

Temos de reconhecer que (genericamente falando) Angola é um caso à parte, no que toca ao tratamento a atribuir a antigos titulares, seja qual for o cargo desempenhado. Com muita frequência ocorre que, em vez de ser respeitado, o antigo titular é desrespeitado e, até, perseguido, como quem lhe atira permanentemente à cara: “Já não és chefe!”

Sociologicamente falando, criou-se e promove-se como que uma “cultura de ódio” diante do antigo titular.

Vou aqui apresentar dois exemplos que ocorreram comigo, para melhor entendermos o que quero dizer.

Em 2006, no final do meu mandato na direcção da Faculdade de Letras e Ciências Sociais, aqui em Luanda, o Reitor da Universidade Agostinho Neto convidou-me para ser Vice-Reitor da então única universidade pública angolana. Dei conta que não havia condições para aceitação e como nunca estive à procura de cargo (leia-se, de “tacho”), neguei a proposta. Foi de facto aborrecido a universidade, então de âmbito nacional, ter ficado um ano sem Vice-Reitor para a área científica.

Mas a verdade é que cheguei depois à conclusão que tinha sido pessoalmente útil a não aceitação da função de Vice-Reitor da UAN, pois dessa forma, ao invés das habituais paparicações por parte dos funcionários e docentes, passei a ser tratado como anterior director de faculdade – ou seja, alguém disponível para ser hostilizado ou (perdoem-me o termo) abandalhado.

Como não aceitei a ascensão e por não ter feito publicidade dessa proposta, o bom foi que passei a conhecer melhor as pessoas que me rodeavam.

O segundo caso é recente, de modo que vou apenas dizer que depois de ter deixado de ser coordenador dos cursos de pós-graduação na minha faculdade (que vinha pedindo para deixar de ser, já lá iam 7 ou 8 anos, mas que se concretizou somente no ano passado), começo a dar conta que vários colegas (que antes demonstravam nutrir respeito por mim) decidiram passar a atribuir aos meus orientandos a nota mínima aceite no mestrado, que são 14 valores, independentemente da qualidade das dissertações que são chamados para arguir. Não tendo como bater em mim, querem fazê-lo por intermédio dos meus orientandos, prejudicando-os de forma intencional.

Em contrapartida, sendo eles orientadores ou arguentes de outras dissertações (muitas vezes medíocres, cheias de erros ortográficos, com deficiências de cariz teórico e metodológico e até com plágio), atribuem nestes casos notas acima de 16 valores, em total desrespeito pelas regras académicas, pelo exigido rigor e pela postura intelectualmente honesta que deles se espera.

Caso me mantivesse como coordenador dos cursos de pós-graduação da Faculdade, não teriam coragem para agir dessa forma desonesta. Muito pelo contrário, manter-se-ia a total cordialidade. Hoje, opta-se pela hostilização, até de forma clara.

Apesar de ser Professor Catedrático, o que conta por cá, neste país de futilidades, é a função que a pessoa desempenha, não a “patente” que ostenta.

Não acontece apenas comigo.

Outros colegas queixam-se da mesma atitude hostil, após deixarem funções executivas. Ao contrário do que ocorre normalmente lá fora, onde o catedrático (com obra publicada) é respeitado enquanto tal e sem ter de aceitar qualquer função para haver respeito ou consideração.

Pois quem age da forma que acabo de descrever esquece-se de uma das grandes regras de reciprocidade – a lei do retorno, que diz o seguinte: “Receberás amanhã exactamente aquilo que dás hoje!”

E o amanhã é já ao virar da esquina.

E quanto a antigos Presidentes da República?

A partir destes dois exemplos, de dimensão reduzida (pois pertencem apenas ao nível de faculdade e de universidade), podemos imaginar como não será o tratamento dispensado a antigos Presidentes da República. Sobretudo se tivermos em conta que a situação económica e social no nosso país nunca foi famosa e os índices de corrupção sempre foram elevados.

Estou recordado de uma entrevista que dei ao jornal Vanguarda, em Novembro de 2019, em que disse no final, mais ou menos o seguinte: “Não concordo com a forma como muitos dos seus ‘próximos’ estão a tratar o Presidente José Eduardo dos Santos, após a sua saída do poder. Se eu fosse das suas relações, pode crer que após a sua saída do poder, iria visitá-lo ao Miramar todos os fins-de-semana.”

Quero dizer que acompanhámos a forma como o infindável exército de bajuladores e até como antigos Ministros se comportaram com o Engº Eduardo dos Santos, antigo Presidente da República de Angola.

E foi com este caso que ficou provado aquilo que dizíamos antes: “após a sua saída do poder, seriam aqueles que antes chamavam à atenção para os seus muitos erros (e por isso não viam consideradas as suas opiniões), que o defenderiam; não os bajuladores, que passariam a agir da mesma forma diante do seu substituto e até hostilizando o seu anterior Chefe, que antes os tinha promovido e tirado do anonimato.”

Infelizmente, não sei até hoje por que carga de água, o jornal Vanguarda não publicou aquela minha declaração, apesar do meu pedido particular nesse sentido. Mas prossigamos…

Tratar um antigo Presidente da República como “povo em geral” não implica desrespeitá-lo. Temos de acabar com este tipo de procedimento, bastante comum entre nós, que em nada nos dignifica como seres humanos e muito menos ainda, como Africanos. Todo o anterior Presidente da República merece o nosso respeito e a nossa consideração.

E, obviamente, quando se fala em antigos Presidentes da República, está-se a falar também em antigos Vice-Presidentes da República.

Ao contrário do que muita gente diz, o Número Dois tem de ser sempre alguém com arcaboiço moral, intelectual e político para exercer a função Número Um. De outro modo, não deveria lá estar.

A proposta de lei que aprova o Estatuto dos Antigos Presidentes da República visa exactamente dignificar todos quantos tenham antes exercido a tão nobre missão de conduzir os destinos do nosso país.

Mas é preciso que não fiquemos apenas pela dignificação no papel, no texto da lei. É preciso que haja dignificação do antigo titular, também do ponto de vista do nosso comportamento diante dele, no dia-a-dia.

É preciso que os antigos titulares de cargos públicos (incluindo antigos Presidentes da República) deixem de estar vulneráveis a todo o tipo de maus tratos.

E é preciso que deixemos de vez de pagar com escárnio, desdém e até bullying a quem antes nos promoveu e nos fez gente. E que deixemos de maltratar alguém que antes bajulávamos devido à função de chefia que ocupava e passámos a hostilizar apenas por ter deixado de a exercer.

24/6/2023


Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

PROCURAR