…isso exige programas curriculares culturalmente adequados e interdisciplinares, pensados para abrir as mentes, para promover o pensamento crítico, a criatividade e a inovação, e não se limitar a reproduzir programas curriculares e materiais escolares importados de outros contextos.
Sim, Educação é o caminho para mudar as pessoas, para interromper o ciclo de reprodução da pobreza e das desigualdades sociais … mas importa perceber de que maneira está a ser pensada essa educação e quais são os indicadores usados para a “medir”.
Os indicadores geralmente mobilizados limitam-se ao número de salas de aula e ao número de professores. Para além de quantidade ser manifestamente insuficiente, há outros aspectos que aprendi a considerar, e a valorizar, quando se trata deste tema e quando a Educação é apresentada como ‘o caminho’1.
Eu aprendi que a Escola pode até existir, estar no centro da aldeia ou do bairro, e pode até ter aulas à noite, mas a menina não irá à escola, ou irá desistir a meio do ano lectivo, e a mãe e as irmãs mais velhas, não irão às aulas à noite, por alguma das seguintes razões, ou por elas todas /ou algumas combinadas:
As meninas:
a) Precisam cuidar dos mais novos; precisam ajudar as mães na venda; precisam ajudar a ‘cartar’ água e lenha … isso acontece nas aldeias do meio rural e nas áreas periféricas (mas não só) das cidades;
b) As famílias com cada vez mais baixos rendimentos, continuam a privilegiar a escola para os rapazes, na velha ideia de preparar o “provedor da família”;
As mães e irmãs mais velhas:
a) Têm de assegurar os cuidados – todos – com a família, desde a maternidade, ao cuidado dos menores, a educação e a saúde, a produção de alimentos no arimbo, para a casa e para vender ou trocar eventuais excedentes;
b) Têm de ‘cartar’ a água (até para o banho dos homens) e a lenha;
c) Além disso, ajudam a reparar as redes, a escalar e salgar o peixe para secar, ou para vendê-lo fresco no mercado; mas o dinheiro é dele, foi ele quem pescou;
d) Ainda são ‘quem está por perto’ quando é preciso acudir a emergências na aldeia ou no bairro.
Para além da necessidade de melhoria do papel da mulher em si e por si, por uma questão de justiça social, importa lembrar que qualquer melhoria no aumento da capacidade das mulheres para o exercício do seu papel de agentes na sociedade tem uma repercussão muito mais ampla, no mínimo na melhoria da sobrevivência das crianças e na redução das taxas de fecundidade.
A mudança deste cenário implica:
a) Assumir que a criação das novas gerações, o futuro das Nações, seja a Prioridade Primeira, no campo ou na cidade, e que isso passe dos discursos à acção através de:
a.1 – criação de estruturas de atendimento e cuidado, incluindo nutricional, com as crianças, quer estejam nas zonas rurais (onde os Pic Pecs deixaram de existir) ou nas cidades e suas periferias;
a.2 – assegurar o cumprimento do direito aos cuidados pré-escolares, entendido e implementado numa base universal, e um potencial gerador de emprego, por exemplo, criando as condições físicas, materiais e logísticas para mães de família cuidarem das suas e de outras crianças, enquanto as outras mães vão fazer outros trabalhos;
b) Providenciar serviços de distribuição de água potável numa base universal, bem como o acesso a fontes de energias, tradicionais ou alternativas, tanto para iluminação quanto para cozinhar;
c) Criar condições de habitabilidade e de acesso a serviços básicos nas áreas de residência, desde a habitação até ao saneamento do meio e serviços de educação, saúde, entre outros;
d) Reconhecer e valorizar o trabalho desenvolvido por milhões de mulheres no sector informal, na agricultura familiar, na ‘economia de cuidado’, e que garante grande parte do rendimento da maioria das famílias (muitas vezes como complemento de rendimentos obtidos no sector formal), incluído nos processos de geração de rendimento e nos circuitos de aprovisionamento e transformação de produtos para alimentação, e não só.
É preciso libertar os períodos de tempo que as mulheres e as meninas consomem nessas actividades que podem, e devem, ser realizadas através de uma outra maneira de pensar e de implementar a criação e a prestação de serviços básicos à população, numa base universal e numa perspectiva de direitos. Aí, será possível associar os indicadores usuais – Escolas e Professores – à contribuição para a criação de capacidades para mudar o Mundo.
Mas, ainda assim, é necessário considerar:
1.º Que, como lembra Paulo Freire, a Educação não muda o mundo; a Educação pode mudar as pessoas, as pessoas poderão mudar o Mundo se a Educação for pensada numa perspectiva de desenvolver capacidades, em geral, e não apenas reproduzir habilidades técnicas. É preciso pensar na Educação como forma de expansão da cidadania, de educar para quebrar os ciclos de reprodução da pobreza, da dependência e das desigualdades, e os tabus … mas isso exige programas curriculares culturalmente adequados e interdisciplinares, pensados para abrir as mentes, para promover o pensamento crítico, a criatividade e a inovação, e não se limitar a reproduzir programas curriculares e materiais escolares importados de outros contextos;
2.º A complementaridade fundamental das actividades culturais, desportivas, manuais e o lazer como parte integrante dos processos educativos. Porque só assim será possível preparar as pessoas para compreender o meio em que estão inseridas, identificar os problemas que vivem e procurar soluções para os resolver. Por exemplo, o desporto, irá ensinar, na prática, a importância da união, que colectivamente, em equipa, pode conseguir-se o que individualmente será difícil alcançar. Só o desporto colectiviza, e materializa o ditado popular “A União Faz a Força”!
3.º A adoção do bilinguismo na Educação e no quotidiano, criando as condições para que, em cada região, a língua materna (designada nacional) seja usada no dia a dia, a par da língua oficial. Isto iria permitir uma maior visibilidade do papel de agentes de um número crescente de mulheres, com reflexos em mudanças sociais e económicas devido, principalmente, ao controlo do ciclo de fecundidade e à redução da natalidade, para além da influência no debate público, aos diversos níveis, da comunidade ao nível de direção da economia. A garantia da educação básica permite às mulheres adquirir conhecimento e senso crítico, conhecer e exercer os seus direitos, ser mais saudável e viver mais e melhor, emancipar-se e ‘sair’ da dependência, engrossando as fileiras das lutadoras por justiça social, respeito e reconhecimento.
Estas são algumas das questões que, ao longo do tempo, fui levando em consideração ao equacionar o papel da Educação na nossa sociedade. E mais, isto só será possível alcançar se nós conseguirmos impor uma outra maneira de pensar as relações sociais e de poder na nossa vida, nomeadamente, tendo voz e visibilidade, através da inclusão no processo de tomada de decisões. Só participando nas decisões aos diversos níveis nós teremos condições de promover a eleição de políticas (que sejam, de facto) ‘públicas’ que, neste e noutros domínios, contribuam para termos uma sociedade mais justa e inclusiva.
Mas, em grande medida, depende de nós! Principalmente de nós, mulheres!
08 Março 2023
1 Durante os anos de trabalho no campo como agrónoma (1975-1983) e depois na Assistência Técnica e no acompanhamento de programas locais ou regionais, ainda na agricultura (até 1991), mais tarde no MINPLAN e, principalmente no FAS (1994 a 2000).
*Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.