DIZ RAPOSO: TRUMP ANULA DARWIN

São as variações culturais que em cada época surgem, pondo em causa os valores vigentes, que, em cada época, entram em competição com os primeiros, e definem a linha entre, os conservadores e os progressistas, determinando novas selecções e novas sínteses que desembocam nos nossos valores e na nossa cultura de hoje.

POR LUÍS BERNARDINO 

No seu artigo do Expresso de 06.09.24 encimado por este título, Henrique Raposo (HR) parece que nos vai dar a sua achega sobre o fenómeno do ex-Presidente e agora recandidatado à presidência dos Estado Unidos. Mas só a meio do artigo encontramos o nome de Trump, e poucas mais linhas lhe são dedicadas além destas: 

“O que causa repulsa em Trump é a ausência de uma visão moral do mundo, seja ela qual for. Um herói ou um voluntário são idiotas aos olhos de Trump. Esta sociopatia causa-nos aversão…”

Na verdade, o grande visado na escrita de HR é o outro personagem do título, Darwin, e os nomes só se associam porque, diz também Raposo:

Se o darwinismo estivesse correto, Trump seria a norma e não a exceção…” 

E numa figura quase delirante de estilo acrescenta:

Trump é a jaula darwinista que desfila todos os dias nas nossas ruas…”

E dando sequência, de forma algo hermética:

“Trump é a personificação e, por isso mesmo, também é o cancelamento do darwinismo aplicado à psicologia humana…”

Portanto, Trump é usado como pedra de arremesso para um propósito mais vasto, congeminado, como diz o autor … não por acaso, acabo de chegar de Roma, a consubstanciação do tempo…” e que consiste num ataque a Darwin e aos determinismos muito moderninhos e materialistas causadores dum processo em que “…não foi apenas Deus que desapareceu; o altruísmo e o amor também foram varridos…”

O que HP e o seu universo criacionista não perdoam a Darwin, foi o ter derrubado a visão antropocêntrica medieval do Homem ocupando um lugar exclusivo no Universo em   diálogo preferencial com a divindade todo-poderosa.  Através do novo espírito da ciência nascente, Darwin estudou metodicamente a Natureza, descreveu as mudanças nas espécies vivas ao longo da geografia e do tempo, o que contrariava a paisagem mínima e estática que era descrita na Bíblia, e delineou a história dinâmica da vida e a sua sucessiva cadeia evolutiva, que integra a espécie humana na grande família animal. Esta imagem exaltante de comunhão do Homem e do Mundo não é do agrado dos Criacionistas: eles consideram um rebaixamento, este desalojá-lo do seu cantinho vip medieval.

HR, ao considerar que a ciência materialista e darwiniana excluiu o altruísmo e o amor, repete preocupações antigas e não confirmadas, e ignorou ou desprezou os importantes estudos feitos a partir do meio do século XX por evolucionistas como J.B.S. Haldane e W.D. Hamilton que analisaram os casos que escapavam à luta pela sobrevivência, como o altruísmo de parentesco, baseado em comunidade de genes, e outros altruísmos culturais como a reciprocidade e a solidariedade de grupo, que acabaram por reforçar o poder de competição da espécie humana contra a natureza e as outras espécies, e consubstanciaram os laços de tribalismo, nacionalismo (estes já podendo ser de competição intra-espécie) e de humanismo. Mas estes mecanismos soam demasiado materiais e interesseiros, não têm a força do poder angélico de bondade desinteressada que só a graça divina, segundo os teístas, dá ao Homem. 

Mas Darwin não se limitou a descrever a evolução das espécies, ele propôs um mecanismo para essa evolução que constitui uma teoria genial e presciente, se nos lembrarmos que os estudos genéticos estavam, ao seu tempo, ainda por fazer: o ciclo da Evolução é:

A teoria da Evolução, assim sintetizada, constitui o que o filósofo contemporâneo Daniel Dennett designa num livro de 1995 intitulado “Darwin´s Dangeous Idea” uma teoria que impregnou o pensamento filosófico e científico moderno e tem hoje o estatuto duma lei. Desde a variação genética dos micro-organismos para a sua sobrevivência contra o hospedeiro, as vacinas e os antibióticos, à substituição de espécies no mesmo ‘habitat’ por espécies mais adaptadas, até, por exemplo, às consignas da moderna gestão, que enfatizam que o êxito (selecção positiva), depende de inovação (variação) que se candidata  à selecção (a opinião pública ou o mercado).

Na sociedade humana também actuam os mecanismos evolutivos e de selecção.  Essa proposta foi feita por Herbert Spencer em meados do século XIX, independentemente dos estudos biológicos de Darwin, mas por haver pontos comuns de substância, não tanto de interpretação, e dada a grande projecção do Darwinismo, adoptou-se a designação de Darwinismo Social a este conjunto de ideias, o que lhes deu uma conotação infeliz e ambígua, face aos que as consideraram, não uma descrição neutra dos mecanismos de selecção do mais apto dentro das sociedades, mas como a promoção desses mecanismos como justificativos no ambiente de conquista colonial de fins do século XIX. Este erro de interpretação, que, veremos, HR também comete, ignora que as leis da evolução, como todas as leis científicas, são amorais – não defendem valores, apenas se propõem explicar os factos da natureza. A história da humanidade tem sido um confronto de grupos animais, étnicos e sociais, em que, de acordo coma as leis da evolução darwiniana, os mais aptos são os mais fortes, e foram seleccionados e dominaram os grupos mais fracos, através de relações de domínio, colonização, imposição de cultura e língua, por vezes escravatura, que gradualmente, ao longo dos séculos, moldaram a actual paisagem entre as nações. É irónico que no role dos maus da narrativa de Raposo figurem, inevitavelmente, os marxistas, e ao que ele considera (erradamente) uma sua variante, as ideais woke, e constatarmos que à luz das leis de evolução social de Darwin, o fenómeno colonial dos séculos XV a XIX é, globalmente, amoral (como é duma forma geral todo o itinerário do Homo Sapiens através da História) determinado pelos condicionalismos culturais e económicos da época, e não deve ser sujeito a condenações   ad posteriori pelos tribunais do séculos XXI, como defende o Wokismo. São as variações culturais que em cada época surgem, pondo em causa os valores vigentes, que, em cada época, entram em competição com os primeiros, e definem a linha entre, os conservadores e os progressistas, determinando novas selecções e novas sínteses que desembocam nos nossos valores e na nossa cultura de hoje.

Voltemos a Trump: tem HR razão em associá-lo a Darwin? Tem, sim, mas duma forma a que ele é surpreendentemente cego: o advento de Trump não se deve a Darwin, mas, dentro das leis evolucionistas estabelecidas por Darwin, à situação de competição capitalista que o seleccionou e o tornou poderoso. O capitalismo e a liberdade de negócios configura um estudo de caso da lei de competição e selecção do mais forte, e desta forma os multimilionários como Trump surgem com um poder que se multiplica em ciclo vicioso, a dominar, os meios de informação e a associar-se com outros grandes poderes.  Mas os Trumps deste mundo surgem no caldo ideológico da direita liberal e dos conservadores, criacionistas, seguidores da Bíblia e aliados de Israel que constituem a grande massa dos seus apoiantes e de quem HR, é a vários títulos próximo, por isso ele manifesta preocupação que a sua antipatia por Trump lhes vá desagradar.

O outro pecado epistemológico de HR é o de apontar o dedo a uma ideologia determinista, que, segundo ele, não valoriza o Homem como individuo, lhe tira a centralidade no Universo e o poder e liberdade, e que, ao eliminar Deus exclui, como receava Dostoievsky, o seu julgador   e a barreira contra o Mal – apareça agora como a causadora dos males de todos os Trumps deste mundo… Como?  Se eles (os materialistas) são amorais   e passivos, e fazer o mal significa acção? Talvez por deixarem o campo livre… ao Diabo… ou serão eles mesmo o Diabo como está bastante implícito no seu texto?

Concluindo: a inspiração com que Raposo veio de Roma, de, através de Trump fazer um ataque a Darwin, não parece ter sido feliz, não tanto por revelar algum desconhecimento das Leis da Evolução, mas, mais grave ainda, por confundir as relações entre o descobridor das leis e o efeito das mesmas, atribuindo responsabilidade do autor pelas consequências nefastas que os determinismos da natureza descortinados pela lei possam causar. Assim, considerar Darwin, o autor da teoria da selecção do mais forte, que explica o triunfo do capitalismo, como o culpado   pela ascensão e poder do multimilionário Trump, é como culpar Galileu, o construtor da teoria da gravidade, pela queda dum helicóptero. Mas tendo chegado de Roma, HR deve sentir-se apoiado, porque aí também, nos saudosos tempos, o Galileuismo foi criticado e punido.

Luanda, 18.09.2024

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