De Casseca às cartas de Pequim

A iniciativa veio há cerca de quatro anos. A ideia de homenagear o académico Michel Laban ganhou corpo. Nada mais merecido para perpetuar a memória e a obra do falecido pesquisador. LITTÉRATURES AFRICAINES D’EXPRESSION PORTUGAISE MICHEL LABAN, ARPAILLEUR D’OMBRES, é o título do caderno editado em Paris pelo Centro de Pesquisas sobre os países lusófonos no qual várias personagens ligadas às literaturas africanas de expressão portuguesa foram convidadas a dar o seu testemunho acerca da obra e da pessoa que foi Michel Laban. Honra-me o facto de ter sido incluído nessa lista. Autorizado pelos organizadores do livro especial que engloba, naturalmente, diversas opiniões, tomei a liberdade de divulgar neste espaço que é vosso, o texto com o título acima e através do qual distingo Michel Laban. As circunstâncias estranhas que vivemos alertaram a nossa consciência para a conjuntura actual. Dificilmente o livro circularia pelos diversos países e chegaria facilmente ao leitor interessado na literatura de expressão portuguesa. É assim que, neste contexto, vos ofereço o texto de minha autoria que o integra e segue, necessariamente, mais longo que os que escrevo habitualmente.

Dizem que as pessoas são imprevisíveis e, sejamos objectivos, quem o diz tem toda a razão. Também é verdade que muita gente adora rotinas. Para essas pessoas tudo caminha às mil maravilhas quando os dias surgem sem afectar a normalidade da sua vida. Nessa lógica de pensamento, incluo-me no vasto rol e afirmo que aquele 6 de Outubro tinha tudo para ser rotineiro, não fosse o facto de ser dia do meu aniversário. Ia completar 50 anos de idade! Para assinalar a efeméride, fiz algo de imprevisível, bem contrário às minhas habituais rotinas. Como explicar a coragem de levar avante uma empreitada daquela envergadura? Como mostrar àquela gente que afinal eu era apto?

Num local inadaptado, com a ajuda de amigos inesquecíveis (é justo referir Orlando Rodrigues e Fernando Campos), dei corpo ao acto que, nos primeiros anos pós-independência de Angola, era valorizado e estava na moda e daí que, quem conseguisse realizá-lo, fazia-o com compreensível vaidade. Eu não fugia à regra. O lançamento de um livro foi sempre assunto especial, muito sério, toca o ego de quem o escreve. No caso, era a garantia de que, seguidamente, os poucos jornais iriam noticiar o acto e dar a conhecer o título. O autor, esse era inevitavelmente promovido a figura pública. Naquele tempo, há 25 anos, creio que as pessoas se interessavam mais pelos livros, independentemente da sua qualidade ou valia. Agora, com a melhoria dos textos para a qual a internet contribuiu grandemente, é ou me parece que é, tudo mais rotineiro, mais sem graça. Esse livro que reuniu à minha volta um montão de gente, já o afirmei, tinha a ver comigo. Caramba! Era a apresentação do meu primeiro livro!

Aconteceram naquele dia factos imprevisíveis e fora da minha rotina, já referi isso. Um deles, quiçá o mais importante, foi a ansiada presença no meio da pequena multidão que se amontoou no sítio impróprio, de uma pessoa que deixou bem visível no seu rosto a marca de um dia muito feliz para si, tanto quanto ele estava a ser para mim. Era a presença física do meu pai. Foi como se tivesse visto o céu a abrir. A energia que veio da sua pessoa parecia uma estrela em explosão, e de tal modo fui contaminado com o seu sorriso de força e confiança, que fiquei eu também com a marca de um outro que se abriu na minha face, riscando-a de orelha a orelha. Estava ali a registar-se o primeiro encontro, particularmente intenso, entre o imberbe escriba, atrevido cinquentão, metido numa veste que não era a dele, e aquele que viria a ser o primeiro crítico do seu trabalho.

Na verdade, o meu pai, logo no dia seguinte detectou nele a ausência de elementos e protagonistas. Não aprovou a versão tão abreviada das cenas relatadas, queria-as mais completas. Esses padrões, essas palavras, não significam nada. Tudo dito para ajudar, nunca para me fazer desistir, entenda-se. Ó meu pai, por favor, mantenha a calma, fui capaz de lhe dizer mais tarde, em momento certo.

Acredito que estas e outras coisas acontecem apenas por um motivo. Acontecem porque devem e têm que acontecer. E estão sempre a acontecer, a toda hora e momento. Entretanto, no nosso cenário de vida também foi acontecendo o país, fomos crescendo entre a imprevisibilidade e a rotina de cada um dos filhos de Angola, dos seus habitantes. Orgulhosos, criávamos aos poucos, devagarzinho, uma sociedade digna mas onde, infelizmente, imperava o vulgar lugar-comum exclusivo de países em guerra, onde o tosco se torna normalmente sinal de verdade e a submissão ao poder e aos partidos é comparável à democracia. Em paralelo, crescia perigosamente entre os dirigentes o incumprimento de muitos dos compromissos assumidos perante todo o povo. Tudo o que acontecia distante destes parâmetros era considerado estranho. E estranho foi que já no limiar deste novo século que vivemos, nestas lides de ler e escrever em que sem querer me envolvi, aconteceu o imprevisto. O privilégio de conhecer um homem bem diferente daqueles com que até aí tinha lidado. Um homem que marcou de modo particular a minha vida. Especialmente no capítulo do conhecimento e do aprofundamento das virtudes e defeitos da pessoa humana.

Na foto de cima e nesta: Michel, Monique e Christian nas Cachoeiras do Binga

O indivíduo de tez pálida, cabelo farto e grisalho, a rondar o branco, olhar sereno e transparente que brotava dos olhos claros, sorriso simpático e permanente, inspirou-me confiança. Naquele tempo tinha-se receio dos estrangeiros. Os mais radicais angolanos ainda hoje demonstram absoluto desprezo por tudo quanto é estrangeiro. Nalguns casos, por razões óbvias. Em África é comum ligar-se a questão da preservação da economia e da riqueza à cobiça do estrangeiro. Era natural que a conjuntura criasse um ambiente de desacreditação que tomava os sentidos da população. E nós, angolanos, habituámo-nos assim a considerar ao primeiro olhar e com certo critério, muitas pessoas de fora. Ou era gente confiável ou de nenhuma confiança. Sou, como muitos, por força desse hábito, um indivíduo influenciado pela primeira impressão. Regra geral, o grau de empatia, confiança e proximidade são determinados por esse factor de afinidade, imprescindível no relacionamento futuro entre duas pessoas. Isto não justifica que não se passe por situações em que das vias difíceis da antipatia natural, se vá posteriormente pelas veredas que conduzem às avenidas da verdadeira amizade.

Tudo isto para dizer que conheci assim o franco-argelino Michel Laban nos finais da década de noventa do século passado, em Luanda. De nome, já o conhecia há algum tempo e a sua obra já me era de certo modo familiar pelo conhecimento que dela tinha; sabia do notável trabalho que desenvolvia, especialmente na área das literaturas africanas de língua portuguesa, razão pela qual Michel Laban já havia ganhado, sem favor nenhum, o meu respeito. Lembro-me perfeitamente do dia em que trocamos o primeiro cumprimento selado com forte aperto de mão, ainda a “Chá de Caxinde” era um projecto sem consistência, a pretender firmar-se no universo cultural angolano. Orgulho e muita satisfação da minha parte por conhecer pessoalmente a personalidade. Não me enganei. Era humilde como são e sempre foram as pessoas ilustres. As coisas, na verdade, acontecem porque têm mesmo que acontecer!

Michel Laban com Luísa Dolbeth e Aires de Almeida Santos, entre outras pessoas

Não tardou que nos voltássemos a encontrar, desta feita em casa do escritor Fragata de Morais, na Ilha de Luanda. Tudo aconteceu, ainda segundo a lógica do “aquilo que tem que acontecer tem a sua força”. Mas não foi sem espanto que nessa ocasião perene e a meio de conversa ocasional, o homem euro-africano de olhar transparente e sorriso cativante, passou a fazer-me perguntas sobre o significado de determinadas expressões que desconhecia. O porquê da língua e dos dialectos mudarem em regiões próximas e aspectos particulares da língua nacional Kimbundu, careciam esclarecimentos. Queria a verdade sobre a gíria e os provérbios contidos no meu primeiro livro, Casseca-Cenas da vida em Calulo, editado em 1993, o tal que foi lançado no dia em que festejei o meu 50º. aniversário e que ele adquirira não me recorda bem como.

Por essa altura, já era doutor pela França com um grande trabalho sobre a obra de Luandino Vieira, já dirigia o seu curso, já tinha traduzido famosos autores entre os quais Pepetela, Germano Almeida e José Cardoso Pires. À pesquisa, dedicava muito do seu tempo. Também o absorveu a entrevista, género de que se salienta aquela que, entre os angolanos e não só, lhe deu muita notabilidade: a entrevista a Mário Pinto de Andrade. Ligado como já se encontrava aos nossos mais destacados autores e à literatura angolana no geral, mais fortemente se prendeu a Angola quando teve a genial ideia de investigar a figura incomparável de Viriato da Cruz. Coube-me a mim – mais uma vez destaco que o que tem que acontecer tem a sua força – e à casa editora que dirijo, a “Chá de Caxinde”, o elevado privilégio de editar a obra que se tornou referência e muito nos prestigiou. Viriato da Cruz – Cartas de Pequim, é sem dúvida nenhuma um trabalho de superior qualidade. Foi coordenado pelo Michel e, ainda hoje, continua a ser o mais famoso e representativo título do nosso pequeno mas valioso acervo de temáticas editadas. Não resisto, por isso, a transcrever um breve excerto do prefácio desse livro, da autoria do Dr. Edmundo Rocha, assinado em 25.08.2003:

O período de vida de Viriato da Cruz na China, reveste-se ainda hoje de fascínio e mistério. A publicação da correspondência trocada entre Monique Chajmowiez e Viriato da Cruz e da entrevista que Monique dá a Michel Laban e a Christine Messiant, têm o mérito de rasgar esse véu tenebroso e permitir-nos, pela primeira vez, compreender a imensidão do drama que os dirigentes comunistas chineses impuseram a Viriato da Cruz, à sua mulher Eugénia e à sua filha, o sofrimento e a solidão espiritual, a terrível sensação de clausura e o sentimento de se encontrarem totalmente cortados do mundo. Viriato traduz esses sentimentos na carta de 23.07.1971 a Monique…”L’éxile partout est seul; mais, ici, il l’es  beaucoup plus qu’ailleurs”.

Sob enorme expectativa, o lançamento do livro teve lugar na sede da Associação Cultural e Recreativa “Chá de Caxinde”, no dia 17 de Junho de 2004, com a presença do Michel, da Christine e da Monique. Um acontecimento notável que me encheu a alma daquele especial sentimento que só nós conhecemos: o orgulho de ser angolano. O meio intelectual de Luanda agitou-se. Esse clima empolgou-me a tal ponto que me levou a uma imprudência que hoje, por razões compreensíveis, considero inaudita. Encabecei a realização de extensa actividade que contemplou uma homenagem a Viriato da Cruz na sua terra natal. Com honras de inauguração de uma rua com o seu nome em Porto Amboim, culminou com inédito e inesquecível sarau nas Cachoeiras do Binga. Acompanhado pelo som nostálgico da água a cair das alturas, Ruy Mingas cantou e Bonavena disse poemas de Viriato. Escutar num palco raro, de características naturais, um dos nossos artistas mais arrebatadores e apreciar ainda o poeta de braços abertos, a quererem amparar o céu, não acontecia todos os dias. Foi espectáculo muito apreciado pelo Michel, num belo fim de festa. Para os tempos que corriam, esse acto foi considerado um atrevimento e sem que nos déssemos conta, tínhamos sido, sem sabermos, promovidos pelas autoridades, a uma espécie de gente suspeita e perigosa, facto confirmado pelo número pouco habitual de “bófias” que se enquadraram, disfarçada mas descaradamente, na comitiva de umas boas dezenas de carros lotados que se deslocaram em caravana à província do Kwanza-Sul, transportando gente ilustre como o nacionalista Lúcio Lara, entre muitos outros. Na euforia do êxito que constituiu a iniciativa, propus-me a seguir, sempre em representação da “Chá de Caxinde”, fazer uma outra homenagem, desta feita a um homem vivo, que connosco estivera na romagem à terra de Viriato: Manuel dos Santos Lima. Foi-nos dito categoricamente não. Invocaram-se razões para nós insuficientes, de tal modo que as pessoas que admiram e respeitam o académico Manuel dos Santos Lima, ao lhes ser vetada a deslocação ao Bié, seu local de nascimento, juntaram-se a ele numa concorrida e fraternal confraternização na Associação Cultural e Recreativa “Chá de Caxinde”. Outro acto atrevido que, a partir daí, nos custou o avolumar da exclusão a que já estávamos votados, a permanente desconfiança dos nossos propósitos.

Não fosse o receio de tomar mais tempo e espaço de intervenção que me foi generosamente oferecido pela organização desta louvável e muito merecida homenagem a Michel Laban, estaria eu aqui a falar infinitamente sobre a alegria de ter conhecido Michel e, por seu intermédio, Christine e Monique. Estaria, certamente, ainda a tecer lembranças acerca dos poucos mas grandes momentos que partilhámos. Por aqui me fico, meus amigos, agradecendo a honra do convite e enaltecendo a essência do legado histórico de Michel Laban que nos ajuda a manter empunhada a bandeira do nosso patriotismo, e nos força a continuarmos indiferentes à atoarda dos dominantes, dos oportunistas e sobretudo dos poderosos de ocasião. Termino o meu depoimento esperançado que sirva a vossa intenção, enviando através desta mensagem, o meu forte e respeitoso abraço à estimada Maria José e aos seus filhos, gente que muito admiro e que ainda espero conhecer de perto. Bem hajam todos, pela vossa atitude.

Luanda/Lisboa, Outubro de 2018

Com os meus cumprimentos, prometo a minha presença habitual para a semana, no domingo próximo à hora do matabicho.

Lisboa, 22 de Janeiro de 2022 

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