De Calulo ao Cunene

JAcQUEs TOU AQUI!

Aquele que comeu o dendém, 

é o mais guloso de todos…

Trecho de cantiga popular do Libolo

Nas pessoas sensíveis percorre sempre um frémito de emoção, renovado prazer, ao visitarem a terra amada onde nasceram. Principalmente quando a ausência, a falta de contacto com a bwala é longa. É natural que tal aconteça. Normalmente dá-me o tal estremecimento da alma ao chegar a terras de Santo António de Calulo. Encanta-me o ar contaminado por aquele cheiro especial, só dele mesmo, o odor que perfuma as matas cerradas, os cafezais e lavras das cercanias, agora desbravadas sem regra. Novo símbolo da sobrevivência de um povo sofrido. Falava de um cheiro que sobe a partir do sereno deslizar da água do mítico e eterno Cambuco que, na fragrância do seu perfume transmite a sensação da descoberta de coisas novas lá no cimo, onde as enormes rochas parecem contemplar a correnteza do rio. O morro mantém-se firme guardião do território. Ei-lo ali altaneiro, é o lendário monte pedregoso de Kuriamatoji! Paira na atmosfera um vento misterioso que descobre o passado ao pisar-se o chão vermelho e quente do meu Calulo, capital do Libolo. Lembro a terra e a gente guerreira, valente e corajosa, sempre ao lado dos justos; terra dotada de chão e condições para ser única. Já não é, nem poderia ser, a mesma que pariu e acolheu a minha como as gerações mais próximas. Muitas, antes e depois da minha origem. É verdade que as épocas não se repetem, tal como as coisas e as pessoas! 

Mas na imaginação de um kota como eu, ainda surge Calulo com a roupagem com que sempre a vimos. Misteriosa, alegre, com sua gente extremamente bairrista, intérprete de inesquecíveis cenas da vida passada no palco dessa incomparável terra. Torna-se-me difícil dizer aqui se foi bom ou não ter visitado agora Calulo. Claro que é sempre bom o reencontro. E visto de um ângulo positivo, realce para a multidão de jovens e crianças exibindo batas brancas a mostrar que, mesmo sofrivelmente, estudam e pensam no futuro. Igual nota concordante para a presença do Instituto Superior Politécnico do Libolo, vizinho da Biblioteca Maria Carolina. Não tive oportunidade de saber se o Instituto está ou não bem servido de docentes e, quanto à biblioteca, reparei no atraso que leva na catalogação dos livros, tendo como consequência primeira a dificuldade na procura de qualquer título. Apesar disso, está equipada e preparada e é uma mais-valia para a terra, sobretudo para a juventude estudantil que é incentivada para o salutar hábito da leitura. A estrutura, segundo me foi dito, apoia também uma escola de música com vários instrumentos, certamente virada para a aprendizagem e descoberta de talentos. Iniciativa louvável. 

Das coisas boas observadas saliento a conservação da traça de edifícios emblemáticos com mais de oitenta anos de vida, como os Correios, a Escola Primária que foi de João de Barros nº. 39, onde estudei da 1ª. à 4ª classe, a Administração do Concelho daquele tempo (com o senão do lixo se acumular hoje nas suas traseiras), as duas igrejas e a residência do administrador. Abro um parêntesis para enfatizar que não alinho no termo palácio, porque Palácio ou Paço é um edifício sumptuoso, às vezes destinado à habitação de um chefe de Estado ou chefe de governo e que pode ser também utilizado como parlamento ou ainda como instituição eclesiástica superior, não sendo o caso da residência de um administrador municipal. Esclarecida essa parte, fecho parêntesis e acrescento que não consegui ver o hospital devido ao alto muro que o esconde dos transeuntes, mas o jardim no centro da vila e a limpeza das ruas esburacadas aqui e ali, também não fazem muito mal à vista.

Desagradou-me profundamente o estado lastimoso de algumas casas, quer na urbanidade como nos subúrbios do Mussafo, do Cassequel e da Cacula e também da estrada que conduz (ia) à vila. É uma mostra de deficiente fiscalização da obra de beneficiamento dessa via realizada há uns anos, e que naquela época encheu de alegria as populações locais. Perante o quadro desolador, pergunto-me pelas terciárias que ligam as comunas à sede do município. Como estarão elas? Penso então no absurdo da propaganda do escoamento da produção agrícola e da distribuição de viaturas para esse efeito. Não há outro jeito, sou obrigado a dizer, “assim, nesse estado, como se consegue?” Julgo ser legítimo o questionamento.

Passo a abordar outro assunto delicado. Tem a ver com as inúmeras fazendas (propriedade antiga, maioritariamente de alemães e portugueses) vendidas ou distribuídas (é o termo mais apropriado) a indivíduos que, no passado como no presente, nunca tiveram ligação com a terra nem sequer com o campo, excluindo-se arbitrariamente na distribuição, passe o exagero do termo, os homens e mulheres libolenses que, certamente, as saberiam manter e aproveitar melhor. Muitas dessas propriedades nem sequer são visitadas pelos seus actuais donos, resultando dessa falha o fatal “desaparecimento” de grandes fazendas de café, palmar e citrinos, responsáveis pelo crescimento económico da nossa região no período colonial, agora tomadas inexoravelmente por impenetráveis matagais. É uma tristeza o que se observa e, particularmente, eu penso que se deveria fazer algo no sentido da recuperação dessas roças! 

Não foi bom de ver o aspecto do velho edifício do Clube Recreativo e Desportivo do Libolo. Decadente e triste, tal como está a sua equipa de futebol (murmura-se que vai acabar por falta de dinheiro). Lamentável para quem já foi campeã nacional e razão de orgulho nosso.

A fortaleza de Calulo, ex-libris da vila, tem já há algum tempo uma enorme torre de apoio às comunicações (creio ser essa a designação) plantada no seu interior, invasão do espaço histórico que me parece de todo injustificável, apresentando também a sua extensa escadaria pintada com cores folclóricas de um estranho arco-íris, o que a transforma, do meu ponto de vista, num ridículo mamarracho. Não se deve fazer isso a um monumento classificado como património cultural nacional. Foi de muito mau gosto a decisão tomada neste caso concreto.

Os serviços públicos, de um modo geral a funcionarem em instalações não muito apropriadas, desempenham o seu trabalho a contento. Porém, o comércio local na sede e provavelmente nas comunas, força motriz do desenvolvimento, foi praticamente “assaltado” por estrangeiros e alguns nacionais de vistas curtas que foram e vão criando lojitas e lojecas de esquina a dar-nos a triste ilusão de se estar em território estranho. De esguelha, admirei entre várias peças, um cubículo com a seguinte inscrição: Barbearia do RC. Não foi apenas o nome da firma a chamar-me a atenção, mas o facto de não caber ali uma cadeira de barbeiro! Passei à porta do Minimercado JFC. Aparenta tudo menos um estabelecimento compatível com a designação. Enfim, está assim a nossa banda. 

Para trás, muito para trás fica, sem saudosismos mas ficando, a recordação das lojas do tempo colonial. Existindo, como presumo que existam, familiares ou representantes dos antigos comerciantes ou mesmo não existindo, porque não foram ou são recuperadas as suas instalações (pelo menos de algumas) para darem continuidade ao fim para que foram construídas? Existirão possivelmente fortes razões que desconheço e assim sendo, lamento apenas.

Aproveito o ensejo para dar um salto até ao Cunene e saudar a celebração dos 20 anos da PAZ, ali como em todo o país. Graças a ela e apesar de algumas províncias, entre as quais a do Kwanza-Sul, estarem muito maltratadas e aparentemente mal geridas, podemos, ainda assim, olhar com esperança o futuro (porque julgo que o actual estado de coisas terá forçosamente que mudar). Nessa óptica, destaco a inauguração do importante empreendimento ligado à transferência de águas do Rio Cunene para reservatórios adequados visando atenuar a falta de água naquela província, assolada permanentemente pela seca, causa da conhecida desgraça de pessoas e animais na região. Nem tudo está mal entre nós e é justo que se louve este feito importante, obra marcante do Executivo liderado pelo presidente João Lourenço. O povo do Cunene que o recebeu no dia da Paz, agradece e nós também. Contudo, nas vestes de presidente do MPLA e discursando na abertura da pré-campanha eleitoral, o presidente João Lourenço enviou-nos uma mensagem surpreendentemente agressiva e desfasada do clima de paz e concórdia que se celebrara solenemente momentos antes. Na minha opinião, do ponto de vista político, não aumentou nada, pelo contrário, diminuiu. 

Retorno a Calulo, agora para saudar particularmente as figuras de Higino Carneiro (investindo no Instituto, na Biblioteca, nos dois hotéis e nas propriedades agrícolas), do António Rocha, vulgo Rochita (pelo muito que desenvolve em várias áreas em prol do nosso burgo), do Mário Pacheco com a padaria e a fazenda, do Carlos Cunha, o Oka, também com uma padaria além da hospedaria/restaurante, fazenda de frutos diversos e citrinos, do Leonel Casimiro com a produção de citrinos e mangas, do Beto Queiroz com a sua pequena loja e da tia Ká virada para a suinicultura e restaurante. Haverá certamente outros merecedores dessa referência e a todos eu distingo de igual modo, pelo estoicismo e amor à nossa querida terra. Bem hajam todos! 

Com os habituais cumprimentos e sempre com a esperança de ver um dia o Kwanza-Sul e a gama das suas potencialidades a posicionar-se no lugar que lhe compete por direito, despeço-me cordialmente de todos aguardando pelos meus leitores e amigos, no próximo domingo, à hora do matabicho.

Luanda, 9 de Abril de 2022

One Comment
  1. Como se diz em castellano “me emocionó” Calulo minha terra tantas memórias vieram ao de cima com este belíssimo artigo!!!!!!!!!

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