Aprender a envelhecer

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Jacques Arlindo dos Santos

Envelhecer é um processo natural no qual perdemos o medo da vida. 

Beatriz Mello

Não tendo premeditado, veio-me à lembrança a abordagem deste tema na minha crónica de hoje. A arte de envelhecer é estudada há séculos. Desde os tempos bíblicos de Cícero, orador e filósofo romano, que se tenta discutir e explicar o prazer e as virtudes em cada fase da vida das pessoas.Segundo o filósofo, nem a força, nem a agilidade física conquistam as grandes façanhas, ao contrário, são outras qualidades das quais a velhice não está privada, como a sabedoria e o discernimento.

Fica evidente que envelhecer bem – envelhecer bem significa viver o resto da vida com dignidade – é uma situação a que está ligada uma certa qualidade de vida. Essa qualidade não está ao alcance, nem de ser proporcionada por qualquer país, nem beneficiada por qualquer cidadão. Ela é possível em países desenvolvidos, onde os cidadãos dispõem de leis e sistemas de saúde abrangentes e ainda outros complementos de segurança social que garantem uma real protecção à velhice, ou ainda quando o cidadão tem proventos que lhe garantam a subscrição de apólices de seguro com todas as garantias de apoio a cuidados de saúde e de sobrevivência tranquila em tempo de velhice. 

Nós, angolanos, com todo o nosso passado atormentado por inúmeras carências, deveríamos, por óbvias razões, debruçar-nos um pouco mais sobre essa matéria e questionar o nosso envelhecimento. Dada a nossa forma atípica de viver, deveríamos fazê-lo por maioria de razão. Partindo do pressuposto que esse estranho modo de vida vivida por uma ampla maioria da população, nos foi imposto por uma guerra tão estranha quanto estúpida, admito que uma velhice tranquila, vista e analisada sob um ângulo sério e objectivo de uma sociedade desenvolvida, só poderia ser atingida em ambiente normal, democrático (sonho quase impossível actualmente), credível e tranquilo, baseado em valores sociais elevados onde se observasse o respeito, e onde a sabedoria e o discernimento prevalecessem. Por tudo quanto fica dito e influenciado pela idade que me faz avisos frequentes, penso que faz todo o sentido a abordagem hoje deste tema que enfatiza a afirmação de que só se pode envelhecer bem em país onde os cidadãos se respeitem uns aos outros e onde, necessariamente, governados e governantes, tenham a noção exacta dos seus direitos e das suas obrigações. E tenham igualmente consciência do que representa o espaço nacional no seu todo, com as suas populações a conviverem na diversidade dos seus usos e costumes. Uma convivência que se desejaria sadia, de altos valores, sinónimo de uma sociedade em harmonioso funcionamento assente num Estado democrático e de direito (o tal sonho difícil). Só nesse cenário ideal, curiosamente contemplado nos projectos políticos de todos os partidos angolanos, ambientes amplamente explorados nos seus ideários mas nunca concretizadas na prática, se poderia pensar numa vida de presente digno e fim respeitável para os que vêm terminar a sua passagem pelo mundo. Abro um parêntesis para honestamente afirmar que essa dádiva da vida apresenta-se extremamente difícil, para não dizer impossível, de ser alcançada pelos angolanos nos tempos mais próximos. Fecho o parêntesis.  

Com o pensamento na minha e nas gerações anteriores à minha, designadas garantes das futuras, aproveito este espaço para afirmar a minha persistência na denúncia de situações que colocam em causa a maioria das promessas eleitoralistas feitas (visando a área da saúde e da segurança das populações) pelos partidos políticos, em momentos como o que estamos a viver já com alguma intensidade. Não fosse a fraqueza de quem pretende ser poder e a irredutibilidade de quem manda e pode; não faltasse a essa entidade bom senso e vontade necessária para gestos patrióticos, poderíamos, estou em crer, ver alterado, neste domínio específico e noutros de igual importância, o estado das coisas correntes, a bem da Nação angolana. Bastaria que estivéssemos mais atentos ao que se passa em torno de nós, preocupando-nos em verificar através das políticas em curso, a conformidade das posturas ou o comportamento de concidadãos com responsabilidades na imposição da ordem que a sociedade deve ter.

Não laboro no erro de apontar culpas exclusivas a uma certa juventude, parte dela viciada na prática e validação de erros crassos de conduta. Lamentavelmente não escapam ao inventário de maus costumes, cidadãos próximos da minha faixa etária, levados levianamente e por vários interesses, pelos mesmos erros dos mais novos. Preocupo-me com eles por serem os intérpretes da passagem dos testemunhos aos mais novos, afinal, os responsáveis pelo espírito de tolerância e sã convivência que prevaleça e contribua para o alcance do ambiente susceptível de um bom viver, próprio de sociedades organizadas, exactamente o que buscamos para o tal país que a propaganda apregoa há décadas. Um país onde seja possível viver bem o tempo de vida útil, envelhecer melhor com poucas dificuldades e, quando chegar a hora, morrer com alguma dignidade. 

Infelizmente, Angola ainda é um país onde, ao invés do manifesto desejo da maioria, se evidencia a cada instante da vida uma lacuna gigantesca e aflitiva no que respeita à defesa dos direitos mais elementares dos cidadãos. E, cada vez mais, obrigam a que as pessoas se interroguem sobre os motivos que levam muitos dos nossos compatriotas, enquanto pessoas singulares ou em representação de partidos políticos ou ainda de órgãos e entidades estaduais republicanas, a enveredarem por comportamentos condenáveis, distanciados das necessidades da população, responsáveis pelos estados depressivos e retrógrados das gentes, de permanente e acumulado ódio e intolerância, levando-os a viverem e a fazerem que os seus semelhantes vivam vidas sem sentido, sem réstia de esperança e compreensão, sonhando diariamente com cenários de vingança, impossíveis de se enquadrar no país bom que desde sempre pretendemos construir. E tudo isso, fruto da maldade adquirida, da intriga estudada, da mentira de influenciadores com muito, pouco ou algum poder, às vezes ou quase sempre apegados ao status adquirido através de uma vida fácil e privilegiada, ou eventualmente por golpes miseráveis de alguns punhados de dólares. Não vai ser fácil derrotar esse perigo latente que tomou conta das pessoas e enevoa ainda as mentes beligerantes do tempo da refrega generalizada, embora saibamos todos, eles e nós, que mais cedo ou mais tarde estamos condenados a nos entender, não há como evitar isso. 

É claro que não é fácil para gente que nunca entendeu uma ideologia como doutrina, assumir o papel de democratas, incapazes de entender a igualdade e a democracia, essa coisa esquisita. Fica difícil adoptar essa prática aos que nunca defenderam valores que permitem o esquecimento de dores e queixas passadas. Acreditando sempre num futuro onde esses males possam ser relativizados e encarados como elemento importante do único e possível processo de envelhecimento de que ainda dispomos, teremos, se quisermos, a hipótese de um final de vida muito mais tranquilo e digno. 

No que a mim diz respeito, defendo que, apesar de todas as vicissitudes dos idosos, andar pelos territórios limítrofes da idade velha não constitui grande problema, chego até a dizer que é bom, já lhe sinto o gosto, principalmente quando se chega, nas condições em que eu chego, às proximidades da estação onde se faz a ultrapassagem dos oitenta anos. Na verdade, não deixa de ser lindo. E magnífico é ainda mais quanto se atinge essa meta com a consciência de, não obstante os erros cometidos e as dores sofridas, termos feito o percurso quase perfeito, de termos conseguido desviar-nos o máximo possível dos caminhos ínvios, com elegância e sem maldade nas palavras que proferimos ou nos actos que praticamos, utilizando sempre a verdade como bandeira. É bom sentirmos essa saudável sensação de termos conseguido fugir do caminho das pedras, daquela estrada que magoa quando nela encontramos calhaus e outros obstáculos onde tropeçamos e caímos na lama da vergonha que a povoa, ficando difícil levantarmo-nos do seu lodo e lixo. É bom chegar à linha do bem com razoável saúde física e sobretudo mental. Conseguir dormir sem fantasmas a perturbar os nossos sonhos, e impedir que esses nos levem às profundezas dos abismos. E, felicidade suprema é saborear a constatação de que ainda somos parte de um exército razoável, constituído pelos que escolheram esta forma saudável de envelhecer. Sublinho que alguns dos “generais” dessa etapa derradeira estão na casa dos noventa e andam direitos que nem carris. Qual o segredo afinal? Não é apenas o consumo do carapau que põe as pessoas rijas e direitas, como diria o inesquecível Agenor Oliveira. Mais do que aproveitar os benefícios vindos do peixe, o saber estar na vida vem também e muito da tranquilidade da nossa consciência. 

Interiorizo todos os dias que devemos, tal como defendia Galileu Galilei, valorizar o tempo que nos resta e não ficarmos lamentando o tempo que já passou. E se seguirmos o seu conselho inteligente, pensar que o tempo que nos resta pode ser, ainda, muito bem aproveitado.

Não posso terminar sem dizer em jeito de recado que, um “mais velho” aceitar olimpicamente como bom o que é nitidamente imprestável, é prenúncio de estar a caminhar estupidamente para uma velhice dolorosa. Como apoiar actos indignos contra um povo impreparado ou outros lesivos do carácter das pessoas indefesas, leva inevitavelmente ao mesmo caminho.

E por hoje é tudo. Deixando aqui o meu habitual cumprimento, despeço-me com um forte dos meus leitores, amigos e companheiros de luta. Espero por todos no domingo próximo, à hora do matabicho.

Luanda, 18 de Junho de 2022 

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