Prefiro recordar pessoas desse género do que imaginar o convívio com tipos que utilizam linguagem maldosa, própria de batoteiros, que afasta para longe de nós qualquer tentativa de estímulo à amizade e a solidariedade. Que não querem a felicidade para todos, apenas a querem para eles.
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1 – Um dia depois da Páscoa, morreu o Papa Francisco. A sua morte deixa meio mundo consternado. Perdeu-se, provavelmente, o melhor Papa da História moderna. Humilde, inteligente, lúcido e preocupado com os pobres, deixa saudades numa imensidão de pessoas. Paz à sua alma!
2 – Cinquenta e um anos depois, assinalou-se o 25 de Abril de 1974, o dia da liberdade para os portugueses. Um dia importante para a liberdade de Angola que, não sei porquê, continua a dar pouca ou nenhuma importância à histórica. Em Lisboa, a extrema-direita manifestou-se e houve confrontos com a polícia. Confusão e pancadaria na baixa da capital portuguesa. Uma tristeza!
3 – Estou cansado. As notícias que me chegam de Angola preocupam-me. Os figurantes da cena política no nosso país, dão tratamento estranho às questões mais importantes para o nosso futuro. Isso inquieta-me.
Perante a constante falta de respeito pela terra e pelos cidadãos, prefiro falar hoje de coisas triviais, que me façam bem ao espírito. Nestas circunstâncias, lembrei-me do Sarrista, homem bom, um grande amigo.
Acho que devíamos ser todos como o Sarrista. Desconheço de onde veio o nome desse meu amigo. Nunca lhe perguntei a origem. De tão incomum só podia vir de alcunha. Era um tipo raro, negro baixo e gordinho, de olhos gordos, meio adormecidos, andar de câmara lenta. Tranquilo e educado, foi sempre um moço cativante, acredito que ainda seja o mesmo indivíduo diferente, como sempre o conheci. Daqueles que são só eles mesmos.
No tempo da nossa convivência era singular nos seus modos, na forma como tratava o outro, até no modo como sinalizava a sua presença nos encontros com a namorada do momento. Vivia-se aquele tempo em que namorar era uma arte. Em que ofender ou bater a pessoa amada não era comum, era impossível de admitir.
A uma cuidadosa distância da casa – nesse tempo não era qualquer um que namorava moça residente em casa com jardim – Sarrista lançava o toque de chegada através de um assobio fino, no estilo do som de flautim, elegante, apurado, entoando acordes maravilhosos de “Maria Helena”. Não foi por acaso que ficou famoso, entre nós, o assobio do Sarrista.
Não era decalque da melodia cantada por Nelson Gonçalves, um bolero tornado preferência musical de moças casadoiras que pensavam no futuro. Aquelas meninas-damas que se entusiasmavam e se agarravam a músicas de constituir família.
Essa outra “Maria Helena”, a preferida do Sarrista, era cantada por Waldik Soriano, o brasileiro que puxava dos seus galões de cantor romântico quando a interpretava. Definia com muita mestria, o amor e as suas consequências. Esta versão de “Maria Helena”, no assobio bonito do Sarrista, foi-nos transmitida quase que diariamente. Nós éramos os seus amigos e companheiros, todos nós hóspedes da Pensão Familiar do senhor Víctor (para nós o Buítor, causa da pronúncia abesugada do dito cujo), casa de pasto instalada naquela rua meio escondida do Bairro da Caop. Caminhávamos pelos finais da década de sessenta.
Cumplicidades antigas autorizavam que eu, o Churchill, o Eduardo e o Rui, tentássemos imitar o Sarrista. Desconseguíamos, porque era difícil imitar aquele som genial, só conseguido por tipos que, não sendo cantores, eram dotados para a música de sopro. Já convivíamos estreitamente há dois ou três anos, cada um com o seu trabalho, cada qual com os seus problemas. Uns que se dividiam, outros para se guardarem como segredo pessoal.
O Sarrista – nunca ninguém o tratou por outro nome – foi dos tipos mais castiços e tranquilos que conheci na minha vida. Não toques na onça quando está deitada, costumava dizer, alertando o Eduardo para os perigos que corria ao atrever-se em investidas à empregada que fazia o serviço de arrumação aos quartos, uma moça gordinha e bem-disposta, divertida como são quase sempre as pessoas desse estilo fofinho.
O Sarrista foi, de certo modo, responsável pelo gosto que ganhei pelo cinema. Fez com que se tornasse indispensável, cada vez mais profundo. Era ele que se encarregava da compra dos bilhetes para as matinées de sábado, promoções da época do Festival de Êxitos do Miramar e do Império. Proporcionavam ver filmes de qualidade, confirmando o papel que o cinema desempenhava na cultura do pessoal.
Eram tempos incríveis em que para ir ao cinema vestíamos, os nossos “João Orlando”, uns pullovers sem mangas que entusiasmavam a vaidade da juventude do nosso tempo.
Porquê João Orlando, perguntar-se-á.
É mais um facto que me transporta a outros tempos e me fazem suspirar de saudade. T empos em que só ouvimos falar de batota quando o Almirante Américo Tomaz foi eleito Presidente de Portugal. Primeiro em 1958, depois, sete anos mais tarde e depois ainda, mais sete anos. Foi em Calulo, tinha que ser, que começamos a entender melhor a batota, afinal não era apenas a que era vício adquirido em alguns salões escuros de Calulo onde a panza batoteira era sinónimo de desgraça para certos lares.
Seguir bons hábitos era aconselhável. Nós, os de Calulo, seguimos a moda dos tais pullovers, um bom hábito introduzido pelo João Orlando, conterra do Libolo, filho do fazendeiro José Eduardo dos Santos, um tipo com estilo de galã de cinema, dos indivíduos mais inteligentes nascidos na nossa terra, extraordinariamente parecido com o actor de Holywood, Paul Newman. Até nos olhos azuis.
Abro mais um parêntesis para reforçar que nós, os do Libolo, sempre fomos especiais. Solidário com o gosto do meu conterra, não me contentei com um, comprei três “João Orlando’s”. Um verde, um amarelo e outro azul clarinho que exibia nas tais festas na Vila Alice, em que se dançavam músicas para constituir família.
O tempo passou. O João Orlando partiu desta vida, descontente. Agarramo-nos a outras vidas. Voltei a encontrar-me com o Sarrista na baixa de Luanda, já tinham passado uns bons anos sobre o 11 de Novembro de 1975. Reconhecemo-nos, sorrimos um para o outro e abraçamo-nos. Continuava gordinho, o olhar não tinha perdido o estilo sonolento, e o sorriso desenhava-se igual, até na sensação sempre transmitida de querer iniciar o sopro de um assobio. Enquanto recordávamos com tristeza e saudade a partida do Churchill, lamentamos não ter notícias do Rui e do Eduardo. O que teria sido feito deles? Voltei a olhar para ele e lembrei-me da “Maria Helena”, da canção e do assobio, enquanto lhe perguntava o que fazia. Sou jornalista, respondeu-me.
Como nunca fixei o seu nome verdadeiro, fiquei, até hoje, na dúvida se alguma vez o terei lido nos jornais. Duvido que se tenha envolvido em cenas de batota. Desconheço o que pensou de mim, disse-me apenas que ia lendo o que eu escrevia. Saber que eu estava vivo era para ele, motivo de satisfação.
Repito o que disse no início. Deviam existir no mundo mais pessoas como o Sarrista. Tipos que não enganam, não fazem batota com a vida. A bondade está-lhe estampada no rosto e nos olhos. Prefiro recordar pessoas desse género do que imaginar o convívio com tipos que utilizam linguagem maldosa, própria de batoteiros, que afasta para longe de nós qualquer tentativa de estímulo à amizade e a solidariedade. Que não querem a felicidade para todos, apenas a querem para eles.
Esperando que apesar das contrariedades da vida e de todos os motivos tristes da semana, tenham passado esta quadra pascal com saúde, desejo a todos os melhores votos de saúde e esperança no futuro. Despeço-me dos meus leitores, parentes e amigos. Beijos e abraços e até ao próximo domingo, à hora do matabicho.
Lisboa, 27 de Abril de 2025
