“A justiça em Angola não é independente”

Grande Entrevista, é uma rubrica nova do site Kesongo, que trás como convidado neste primeiro exercício, o advogado Sérgio Raimundo, um dos juristas de maior protagonismo na defesa de constituintes que estiveram ligados ao período de gestão do ex-Presidente José Eduardo dos Santos, neste novo contexto de combate às más práticas na gestão do erário. Para além de questões de fórum político, foi pelo estado actual do sector da justiça que iniciamos essa interação que, por motivos de agenda deste renomado causídico, efectuamos de forma não presencial o que, como é evidente, condiciona a abordagem com a profundidade desejada. Mas, ainda assim, valeu a pena. Aliás, sempre vale a pena o diálogo, mínimo que seja, sobre a nossa realidade política, que tem condicionado o desempenho de todos os demais sectores de funcionamento do Estado e da sociedade. Esse Estado que se tem como “pessoa de bem”, mas se apresenta diante de todos nós como “pessoa má”. Mas vamos à entrevista:

RAMIRO ALEIXO

Nos últimos dias e por via das redes sociais, ‘chove’ informação substancial que atribuem ao juiz presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, a chefia de um grupo, integrado por familiares, promotor de tentativas de extorsão de algumas figuras da antiga governação condenadas por desvio, utilização indevida ou descaminho de fundos públicos. É para si surpresa, ou já era do seu domínio essa postura de agentes do Sistema de Justiça?

O que posso dizer a este respeito, é que sempre se falou de corrupção na nossa justiça, mas nunca se levou isto a sério. Penso que esta é uma oportunidade ímpar, para em conjunto, todos os operadores da justiça em Angola e não só, reflectirmos sobre a qualidade da nossa justiça, que não é das melhores, repensando todo o sistema actualmente vigente, através de uma verdadeira e profunda reforma do Estado, devidamente programada e com a participação de todas as forças vivas da nação. E dentro desta (reforma do Estado), tratarmos também da reforma da justiça, como uma componente da reforma do Estado.

Entendo que o combate a corrupção, em geral, só será eficaz, se começarmos por uma revisão ampla e profunda da Constituição, principalmente, no capítulo do sistema de governo, forma de eleição do Presidente da República, poderes e papel do Presidente da República e sua relação com os demais poderes soberanos do Estado, pois, tudo começa aqui. Quando o único gestor do dinheiro público não é eleito pelo dono deste mesmo dinheiro, nem presta contas da gestão deste dinheiro de forma directa e clara ao dono do dinheiro, através dos seus representantes, estão criadas as condições para todo o tipo de desvios, sem qualquer responsabilização, que em outra palavra significa impunidade.

E não digo isto, porque é o Presidente João Lourenço que está no poder, mas porque qualquer ser humano naquelas condições, com todos aqueles poderes e sem mecanismos de controlo eficaz, faria igual ou pior. Porque se antes dizia-se que esta Constituição era um fato feito a medida do Presidente José Eduardo dos Santos, agora que ele saiu do poder e até já partiu para o além, por que razão não a alteramos? Afinal, é um fato a medida de todos os que exercerem o cargo de Presidente da República.    

Mas há também o caso da juíza que presidiu o Tribunal de Contas que, entre várias acusações, consta que terá tentado extorquir cerca de 2,5 milhões de dólares, para caucionar a aprovação de projectos do próprio Governo, destinados a acudir necessidades do desenvolvimento económico e social. Quer num caso quer noutro, embora a responsabilidade seja pessoal, são escolhas do Presidente da República…

Sem dúvidas, que a responsabilidade também é de quem escolhe as pessoas para o exercício dessas funções e, como corolário, belisca também a imagem de todas as instituições do Estado angolano, em geral, e do Presidente da República, em especial. E isto reduz a confiança dos cidadãos nas instituições, que já não é muita.

Estamos perante uma sentença absolutória, em relação ao juiz Joel Leonardo

Não é reconhecimento de culpa, mesmo no quadro da observância do princípio de “presunção de inocência” ou de direito ao silêncio, o facto de nenhuma dessas figuras ter vindo a público fazer um desmentido, ou que os Serviços de Investigação Criminal, como tem sido regra, em tempo célere, não tenham encontrado a fonte de divulgação dessa informação, para eventual responsabilização?

Não entendo isto como reconhecimento de culpa das pessoas denunciadas pela prática de eventuais ilícitos penais, porque elas são livres de escolher a melhor estratégia para a suas defesas, e o silêncio é uma das hipóteses a ter em conta.

Agora, penso que é mais preocupante o silêncio de algumas instituições competentes para tratar destes assuntos, que quando lhes interessa, vêm logo a público com comunicados em forma de sentença, condenando já as pessoas em hasta pública, violando princípios e direitos fundamentais, consagrados na Constituição da República de Angola, e quando não lhes interessa, as vezes vêm com comunicados cheios de nada, para, apenas, tentar apagar o fogo e distrair as pessoas.

Outrossim, os conselheiros do Presidente da República devem ter o cuidado de lhe dizer que não é sua competência mandar investigar, mandar instruir processos, muito menos realizar julgamentos antecipados na praça pública, pois, esta é a prova inequívoca da sua interferência na administração da justiça. Porque quando o Presidente vem publicamente dizer já, que em relação a um dos denunciados não há provas, estará, em sentido contrário, a dizer que já há provas em relação a outra pessoa. Logo, no actual sistema de justiça vigente em Angola, não estou a ver um Tribunal a decidir no sentido contrário a afirmação pública do Presidente da República, porque no mínimo, estaria a dizer que o Presidente mentiu a sociedade. Por isso, entendo que estamos aqui perante uma sentença condenatória antecipada, em relação a senhora Exalgina Gambôa, em flagrante violação de princípios e direitos fundamentais consagrados na Constituição, v.g., o princípio da presunção da inocência, do contraditório e dos direitos de defesa, a julgamento justo e conforme a lei, entre outros, por um lado. E, por outro lado, estamos perante uma sentença absolutória, em relação ao senhor juiz Joel Leonardo, que afirmou perante os seus pares que têm o voto de confiança do Presidente da República para continuar no cargo.

O comunicado da Associação dos Juízes de Angola (AJA) em que se pede aos órgãos do Estado para apurarem a veracidade das acusações de corrupção e de peculato que envolvem o presidente do Tribunal Supremo (TS), Joel Leonardo, não constitui por si só razão que atesta falta de confiança nessa figura e condição para que se demita?

Num verdadeiro Estado democrático e de direito, o normal, quando estamos perante denúncias desta natureza, a pessoa visada, demite-se imediatamente, o que não pressupõe assunção da culpa, mas, essencialmente, para proteger o bom nome e a credibilidade ou idoneidade da instituição que representa. Mas, infelizmente, nós em Angola, não temos esta cultura. A demissão depende da vontade do Presidente da República, que convida ou não a deixar o cargo, como assistimos nos casos da presidente do Tribunal de Contas e do presidente do Tribunal Supremo. No primeiro caso, convidou a colocar o lugar a disposição e, no segundo, disse publicamente, que não existiam provas e não deviam agir apenas com base nas notícias das redes sociais, quando, quer o primeiro como o segundo caso, começaram com denúncias nas redes sociais. Todo este cenário transfere a factura deste quadro dramático e lamentável do mau funcionamento das instituições angolanas, para a esfera jurídico-político-patrimonial do Presidente da República. 

O mais triste ainda, é assistirmos este filme triste e de falta de seriedade das nossas instituições, quando, a pessoa visada continua em funções e a presidir as reuniões do Conselho Superior da Magistratura Judicial, órgão competente para inquerir a situação para se apurar a veracidade ou não das denúncias. Então o visado nas denúncias é que vai mandar-se inquerir? Claro que isto põe em causa a seriedade, transparência e imparcialidade das investigações, porque nenhum ser humano nestas condições e no perfeito gozo das suas faculdades mentais vai nomear uma Comissão de inquerido, integrada por pessoas neutras, mas sim, vai indicar pessoas amigas, que no final, virão dizer que nada se provou e o assunto é simplesmente arquivado.

Achei estranho também, que o Plenário do Tribunal Supremo pediu a PGR que a situação seja inquerida, mas os membros do Conselho Superior da Magistratura Judicial, que deveriam agir neste sentido e de imediato, até aqui não reuniu de emergência para analisar a situação, que é preocupante, porque põe em causa a credibilidade da justiça em Angola. Reuniu de emergência para analisar se as diligências realizadas pela PGR no Tribunal Supremo e no próprio Conselho para se esclarecer a situação, observaram ou não as formalidades legais. Penso que se as formalidades legais não foram observadas, devem impugnar as acções do Ministério Público junto do Tribunal Competente e não perderem tempo com reuniões que nada vão esclarecer e para analisar uma questão, que não é da sua competência, ainda por cima presidida pelo visado.    

Luta entre quem comeu mais e quem comeu menos

O Presidente João Lourenço elegeu a corrupção, antes mesmo do início do seu primeiro mandato, como a sua principal bandeira, para acabar com o descaminho de recursos públicos, com a má gestão, o compadrio, o ‘cabritismo’ e protecionismo de uma casta do poder. Na verdade, já vai no segundo mandato, a corrupção tornou-se sim, mais refinada’, com uma grande dose de cinismo e hipocrisia, e mesmo as figuras de maior destaque, continuam na boa, enquanto outras, em processos com desfecho difícil de digerir, foram condenadas. Que modelo está a seguir afinal a nosso Sistema Judicial? 

Já disse, em tempos, numa entrevista que dei ao semanário Expansão, e aqui repito, que não há em Angola, um verdadeiro combate a corrupção, mas sim, o que assistimos, é uma luta dentro do próprio MPLA, entre dois grupos de militantes. Isto é uma luta entre o grupo de militantes que chegaram “agora” ao poder e que acham que comeram menos, contra o grupo de militantes que estavam ontem no poder, e que os primeiros acham que comeram mais. E os primeiros (que acham que comeram menos) utilizam as instituições do Estado, principalmente, a justiça, para retirarem e transferirem da esfera jurídico-patrimonial dos segundos para a esfera jurídico-patrimonial dos primeiros, os bens na posse daqueles. E desta feita, legitimarem as suas novas aquisições através dos chamados processos de reprivatizações pouco transparentes.

A corrupção só será combatida quando atacarmos as verdadeiras causas que são visíveis e conhecidas por todos, através de uma estratégia e processo inclusivo, isto é, com a participação de todas as forças vivas da nação, embora sob a liderança de quem governa. Enquanto se pensar que o combate a corrupção é uma tarefa exclusiva de quem governa, não haverá sucesso. Assim foi no tempo do Presidente José Eduardo dos Santos, quando declarou tolerância zero a corrupção e no final do seu mandato, os níveis eram mais altos do que antes. Neste preciso momento, a história se repete, o que demonstra claramente, que o sucesso do combate a corrupção só será possível com a participação de todos, porque não depende apenas da vontade de quem lidera o país. 

No meio de tudo isso, como considera o papel desempenhado pelo Presidente João Lourenço? É na verdade ele, ou colaboradores do seu círculo restrito, como se diz, quem de facto dita as sentenças? Há testemunhos de telefonemas e mensagens que os juízes recebem durante as sessões de audiência, negação de provas documentais e testemunhos presenciais, silêncio de tribunais de recurso nos procedimentos seguidos pelas defesas, ao abrigo da lei… afinal que Sistema de Justiça existe?

Infelizmente, só não vê o que se está a passar na justiça do país, quem não quer ver, porque tudo acontece a céu aberto. Quando o próprio Presidente Emérito do MPLA, partido que sustenta o governo actual e liderado pelo Presidente João Lourenço – pessoa que foi forjada politicamente por José Eduardo dos Santos, já que quem conhece o sistema político angolano, tal como se apresenta ainda hoje, ninguém chega a Presidente da República, se não for líder de um partido, ou se não for indicado pelo líder do seu partido -, foi e ainda é destratado em sentenças e acórdãos judiciais, sem nunca ter sido ouvido em qualquer um dos processos, e nem lhe permitiram defender-se, mesmo solicitando por escrito, o que espera o cidadão comum desta justiça? Qual é o juiz, muitos deles nomeados até por José Eduardo dos Santos, que teria a coragem de negar a audição de um Presidente Emérito do Partido que sustenta o governo, sem o patrocínio ou anuência de quem manda em tudo?

Penso que não precisamos ser inteligentes para concluir que a justiça em Angola sempre foi politizada e agora está pior. Como eu penso com a minha própria cabeça e não com a dos outros, como patriota que sou, não tenho receio de dizer que a justiça em Angola não é independente.

Filomeno dos Santos, Zenu, numa entrevista concedida recentemente ao Novo Jornal, afirmou que foi julgado, condenado e está a passar por privações (foi impedido de deslocar-se à Barcelona para estar com o seu finado pai), por ser filho do ex-presidente José Eduardo dos Santos. Nas entrelinhas, disse que se está a fazer caça à sua família. Há nesse caso, também no de suas irmãs, pessoalização no exercício da Justiça?

Por se tratar de casos sobre o meu patrocínio, não devo pronunciar-me publicamente, até porque as decisões judiciais sobre eles (casos) ainda não transitaram em julgado.

Num caso em que está em causa a liberdade de um cidadão, um juíz votou duas vezes numa decisão de sentença. Podemos considerar essa atitude, como sentença encomendada e trabalho de coveiro mal-feito? 

Pelas razões expostas na resposta a questão anterior, não devo pronunciar-me publicamente sobre o assunto em pauta. 

No caso de Isabel dos Santos, o entendimento a que se pode chegar – tendo em conta que os anteriores gestores da Sonangol, responsáveis pela quase falência dessa empresa, não foram sequer verbalmente responsabilizados – também é de perseguição ou é mesmo de defesa de interesses do Estado que foram lesados em benefício dessa empresária filha do ex-presidente da República José Eduardo dos Santos?

Pelas mesmas razões retro mencionadas, não devo pronunciar-me publicamente sobre o assunto.

Justificou-se a forma como se entregou ao Governo português, de bandeja, como se diz na gíria, importantes activos da empresária, quando nem cá nem lá há qualquer condenação, que a acontecer, resulta de provas que atestem o benefício indevido de financiamentos do Estado angolano? Por outro lado, ainda que provados, por pertencerem a uma cidadã nacional, não tem o Estado angolano a obrigatoriedade de protegê-los?

Infelizmente, também não devo pronunciar-me sobre o assunto, pelas mesmas razões atrás citadas.

A África precisa de instituições fortes e não de homens fortes

Já quase no fim do seu primeiro mandato, o Presidente João Lourenço propôs (e foram aprovadas pela AN) algumas alterações pontuais à CRA. Impunham-se? No que é fundamental para o funcionamento do Estado Democrático e de Direito, há sectores da sociedade que defendem que o Presidente continua a vestir o mesmo fato constitucional feito para acomodar o ex-presidente José Eduardo dos Santos. Que análise faz agora, já que também defende(ia) a alteração profunda da CRA?

Como já referi, defendo uma revisão profunda e ampla da actual Constituição, para corrigirmos algumas situações estruturantes que impedem o desenvolvimento e consolidação das instituições democráticas do país, pois, devemos ser mais ousados na análise e escolha do modelo ou sistema de governo, porque o actual já demonstrou ser ineficaz para a realização do interesse público e satisfação das necessidades mais elementares dos cidadãos deste país. O sistema ou modelo de eleição do Presidente da República, os poderes do PR, a forma de eleição e nomeação dos presidentes dos Tribunais Superiores, que me parece, ser aqui onde começa a falta de independência da nossa justiça. Defendo que, embora continue a ser o Presidente da República a nomear formalmente os juízes presidentes dos tribunais superiores, aquele, deve nomear o mais votado entre pares para presidente e o segundo mais votado para vice-presidente, e acabar com o sistema de ser o PR a escolher entre os três mais votado, porque aqui há claramente uma interferência do poder político no poder judicial, porque o Presidente, como qualquer ser humano, tem sentimentos e paixões. Logo, vai escolher a pessoa que mais lhe convém. E isto põe em causa a vontade dos integrantes de um poder também soberano.   

O estilo de governação do Presidente João Lourenço, não faz supor que dentro de 4 anos e meio deixará a Presidência, por imposição constitucional. Há mesmo quem defenda que voltará a propor nova alteração à CRA, antes do fim do seu mandato ou que isso não passa de uma jogada para se medir a pulsação da sociedade. Mas, a acontecer, acha que será para aumentar ou reduzir os poderes de um novo presidente da República, ou para assegurar mesmo que possa concorrer para um terceiro mandato?

Espero que isto não aconteça em Angola, alterar a Constituição só para permitir um terceiro mandato do actual Presidente da República. Temos que abandonar a ideia da necessidade do homem forte, porque o que a África precisa mesmo é de instituições democráticas fortes. Alias, Barack Obama, já dizia que, a África precisa de instituições fortes e não de homens fortes. Quando se pensa que um país só avança com certa pessoa na liderança, estamos a defender a tese da necessidade de termos um homem forte para triunfarmos como nação. Isto é desastroso para o país. No passado, muitos dos actuais dirigentes do país, que ontem estavam com o Presidente José Eduardo dos Santos, dentre eles, o próprio Presidente João Lourenço, diziam, e aplaudiam de manhã, a tarde e a noite, que o Presidente José Eduardo dos Santos era um líder clarividente e incontestável. Mas quando o senhor deixou o poder, foram os primeiros que passaram a dizer que país andou a saque, que não tinha norte. O que eu pergunto é: quando o Presidente João Lourenço terminar os seus mandatos, dois ou três, se assim entenderem, não vão tratar-lhe da mesma forma ou pior? Temos que pensar nisso.

Entendo também que a questão do alargamento do número de mandatos de dois para três, deve ser objecto de um referendo, para que seja o próprio povo a dizer o que quer, e não ser tratada esta questão apenas por uma elite de políticos. 

Eleições: A questão que não se quer calar é, onde então a CNE foi buscar aqueles resultados?

Tal como no período de gestão de José Eduardo dos Santos, vemos um MPLA submetido à sua actual liderança. Não se conhece sequer uma segunda figura. Será bom? Será mau no futuro, quando os resultados demonstram que, gradualmente, está a perder influência em grandes praças, como foram os casos de Luanda, entre outros, e a própria sucessão de João Lourenço pode não ser uma questão pacífica, por que há uma corrente que defende a abertura para a disputa da liderança entre vários candidatos?

O MPLA tem que aproveitar o resultado eleitoral negativo na principal praça eleitoral do país, e até aqui, o seu principal bastião, para uma profunda reflexão e mudanças internas, através de um processo de democratização no seio do próprio partido.

Se olharmos para os então três movimentos de libertação nacional, o MPLA é o único que ainda não realizou um congresso eletivo com vários candidatos a sua liderança. Isto diz alguma coisa: que algo vai mal e é preciso mudar, porque senão vai ficar ultrapassado, mais cedo ou mais tarde.

É preciso uma maior abertura democrática no próprio MPLA, para que outras vozes sejam ouvidas sob pena de se transformar num barril de pólvora, que poderá fazer explodir o país também, já que a história do MPLA pós independência se confunde com a história de Angola independente, e esta situação não deve ser apenas do exclusivo interesse dos seus militantes, mas de toda a sociedade angolana.  

Como viu as últimas eleições, os resultados da oposição e essa estratégia de formação da Frente, uma nova experiência no nosso jogo democrático?

As últimas eleições gerais foram interessantes e marcaram a história de democracia angolana, quer pelo positiva, quer pela negativa. Positiva pela experiência política nova de uma Frente integrada por várias forças políticas da oposição e membros da sociedade civil, cujos resultados, bastante contestados, mereceriam um outro tratamento por parte do Tribunal Constitucional, nas vestes de Tribunal Eleitoral, como nota negativa.

A decisão do Tribunal Constitucional nas vestes de Tribunal Eleitoral, caberia ainda recurso para o Tribunal Constitucional, em matéria de natureza constitucional, o que foi negado indevidamente por aquela instância judicial, o que demonstra que o actual sistema de justiça eleitoral deve ser alterado, para dar lugar ao surgimento de um Tribunal Eleitoral independente do Tribunal Constitucional. Porque senão, quando for interposto e admitido um recurso sobre uma decisão proferida pelo Tribunal Constitucional, nas vestes de Tribunal Eleitoral, quem vai reapreciar a sua decisão é o mesmo Tribunal, embora, formalmente, com outra denominação e função. Ora, isto não é positivo para uma democracia nascente e latente, pois, dada a fragilidade das nossas instituições, não empresta confiança no sistema de justiça eleitoral. Foi isto que assistimos e engorda o pecúlio negativo do nosso processo eleitoral. Aliás, o acordão proferido pelo Tribunal Constitucional nas vestes de Tribunal Eleitoral, é contraditório, quando diz, a dado paço, que a UNITA não apresentou provas bastantes para sustentar o seu pedido, mas, mais adiante, diz que a UNITA até obteve menos lugares no parlamento do que aqueles que a CNE lhe atribui. Ora, a questão que não se quer calar é, onde então a CNE foi buscar aqueles resultados? Não estaria a dar razão a UNITA, que os resultados divulgados não retratavam a realidade eleitoral, e que por maioria de razão, deveriam as instituições de direito ordenarem a recontagem dos votos, ou pelo menos, a confrontação dos dados apresentados pela UNITA e os divulgados pela CNE, para bem da nossa democracia? 

Precisamos de uma reconciliação genuína que passa pelo perdão mútuo

Num cenário em que o MPLA perca as eleições (não esteve longe agora), qual será o futuro desse partido? 

Receio pelo seu desaparecimento, porque hoje o MPLA tem mais militantes de ocasião, pelo facto de ser visto apenas por muitos destes militantes, como um meio para atingirem cargos de direcção e chefia, quer na administração pública directa como indirecta.

É uma situação que deve preocupar todos os angolanos, porque o MPLA já não é só património apenas dos seus militantes, mas de todos os angolanos, porque a sua história pós-independência, como disse, se confunde com a história da Angola independente, porque foi e é, o único partido que governa Angola desde a proclamação da sua independência, e o seu desaparecimento pode apagar algumas das páginas douradas da história da construção da nação angolana.

Regressemos ao fim do mandato do Presidente da República. Face ao estilo de governação, profundamente marcado por ego, regressão em vários domínios, aumento da repressão, exercício de justiça selectiva, repetir-se-á o filme de um ex-presidente e família auto-exilados num país europeu ou nos Estados Unidos da América?

Espero que isto não aconteça e devemos lutar para que o país não trilhe mais este caminho. Precisamos de uma reconciliação genuína que passa pelo perdão mútuo, a tolerância para preservarmos os bens de maior valor para todos angolanos, como a paz, a liberdade, o bem estar, entre outros, no sentido de que todas as filhas e filhos desta terra martirizada possam coabitar no mesmo espaço geográfico sem receio de qualquer tipo de perseguição e represálias.

O país não deve continuar a andar para frente e para atrás. Isto não trás desenvolvimento para o país, muito menos promove o bem-estar social de todos os angolanos, que deve ser o principal objectivo de todos aqueles que se sentem verdadeiros patriotas.

E de caça de alguns auxiliares do actual Titular do Poder Executivo?

Não sou apologista destas práticas, devemos ser tolerantes, como já referi. 

Esteve no Brasil e em Portugal, certamente também tem emprestado os seus serviços de advocacia à empresários estrangeiros tal como faz com nacionais. Esse ambiente de negócios que se vive, mas também de falta de confiança nas instituições, ajuda os esforços para captação de investimento estrangeiro e estimula o desempenho de quem já está cá?

Claro que não! Mas as vezes fico com a sensação de que não vivemos no mesmo país, não vejo um bom ambiente de negócio em Angola, como defendem os nossos governantes. Angola só se vai desenvolver quando deixarmos de governar o país com mentiras e aceitarmos a nossa realidade. Só assim seremos capazes de transformar esta mesma realidade para o melhor. Aliás, a mim me parece que os colaboradores do Presidente da República passam a vida a vender-lhe gato por lebre, ou então o Presidente não quer aceitar a realidade do país, porque nós já ouvimos vários discursos sobre o estado da nação, com dados que não retratavam a realidade do país, como por exemplo, de estradas reabilitadas, mas que não estavam, da mediateca inaugurada no Kuito, mas que não estava. E depois o Presidente teve que ir ao Kuito inaugurar, e não aconteceu nada, isto é, ninguém foi responsabilizado pela incomoda situação que colocaram o PR. Pelo menos eu não ouvi nada sobre isso. O que ouvi mais tarde, foi o então ministro das Obras Públicas a dizer na TPA, que não foram eles que forneceram aqueles dados. E mesmo assim, nada aconteceu como se de uma situação normal se tratasse.

Os nossos governantes não conhecem a nossa realidade. Somos governados com mentiras

Anda pelo país, fala com cidadãos de todos os níveis, contacta várias instituições particularmente tribunais. Esta é Angola que espera deixar um dia para os seus filhos e netos?

Nunca foi por esta Angola que nós lutamos. Eu, pessoalmente, entrei nas matas com 12 anos e sei que nunca foi por esta Angola de hoje que lutamos, muito menos é esta Angola que sonhamos para nós, para os nossos filhos e netos, porque lutamos por uma Angola melhor do que aquela que nascemos e vivemos um pouco no tempo colonial.

Por isso é que um velho na aldeia, uma vez perguntou ao seu filho que já vivia na cidade de onde regressava, o seguinte: “meu filho, quando é que esta independência vai acabar?” E o filho respondeu com outra pergunta: “o pai quer que a independência acabe porquê, se este é o maior bem que conquistamos com a vida, sangue e sacrifícios dos melhores filhos de Angola?” E o pai respondeu: “porque esta independência desde que chegou o nosso sofrimento só aumenta.” Parece anedota, mas é a opinião de muitos angolanos que nasceram e viveram no tempo colonial e comparam o ontem com o hoje, lamentavelmente, desta forma.  

Quase meio século de independência, vagas de jovens angolanos deixam Angola em busca de dignidade, de conforto e até de segurança física e intelectual na nação colonizadora. Desilusão, cansaço, falta de crença, de perspectiva na governação de quem lutou para proclamar a independência?

O que me deixa hoje intrigado, é que lutamos pela independência de Angola de Portugal, mas, actualmente, quase todos os nossos governantes e dirigentes partidários têm nacionalidade portuguesa adquirida e outros lutam para obtê-la. Isto é um mau exemplo, e não estimula o amor por Angola. Antes pelo contrário, afasta o sentimento patriótico, de orgulho pela Pátria onde nascemos.

A falta de condições de vida, e mais do que isso, a falta mesmo de esperança por dias melhores, está na base de toda esta situação que vivemos e assistimos diariamente.

Muitos dos nossos governantes não têm Angola como país de futuro para eles, como é que se vai comportar o cidadão comum. A prova do que afirmo é que muitos dos nossos governantes e dirigentes, para não dizer, quase todos, até da oposição, não põem os seus filhos a estudar nas escolas angolanas, principalmente públicas, quando o fazem é nas privadas e de preferência estrangeiras. Em regra, os seus filhos estudam todos no estrangeiro, porque não confiam no próprio sistema de educação que criaram e sustentam. Quando estão doentes vão se tratar no estrangeiro, as suas fortunas estão domiciliadas no estrangeiro, por isso é que as leis aprovadas para o combate a corrupção falam todas de repatriamento, porque sabem que o dinheiro não está em Angola. Dizia Karl Marx: “queres saber qual é a pátria do homem rico? Pergunte a ele onde guarda o seu dinheiro. Lá onde ele guarda o seu dinheiro, é a sua verdadeira pátria”.

Enquanto os governantes e dirigentes do país, começando pelo Presidente da República, não colocarem os seus filhos e netos a estudarem nas escolas públicas e a se tratarem nos hospitais públicos, os sistemas de educação e de saúde do nosso país não vão conhecer melhoria em termos de qualidade. Podem atingir a quantidade, o que não pressupõe qualidade. Porque eles não vivem esta realidade. Logo, não podem melhorar uma realidade que não conhecem. Isto chama-se também governar com mentiras. 

Que contribuição pode dar a sua classe profissional para que haja dignificação das instituições e por forma a que o cidadão possa ter confiança nelas?

A Ordem dos Advogados de Angola tem que exercer, com mais vigor e sem receio de nada, o seu papel de advogado da sociedade civil, denunciando as arbitrariedades e as violações constantes dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, demarcando-se das práticas menos boas, através de posicionamentos públicos, como assistimos noutros quadrantes do planeta terra.

A Ordem dos Advogados de Angola, pode e deve dissuadir os titulares dos vários órgãos do Estado a desrespeitarem a Constituição e as Leis do país. 

José Eduardo dos Santos merecia melhor tratamento

A morte é incontornável. Como viu a do ex-Presidente José Eduardo dos Santos, a revolta das duas filhas particularmente, a forma como foi transladado para Luanda e as honras de Estado que lhe foram prestadas?

Toda a pessoa séria, sabe que o senhor depois de sair voluntariamente do poder, em vida, não foi bem tratado. Quem não te trata bem em vida, não pode te tratar bem na morte. Todos nós erramos, partindo de um princípio de que o homem é um ser imperfeito, logo, devemos avaliar as pessoas pela proporção dos seus feitos positivos e negativos. Quando há mais de positivo, é porque era uma boa pessoa, quando há mais acções negativas, é porque não foi uma boa pessoa. Mas também devemos olhar para o contexto em que as pessoas actuaram. Porque o que era válido ontem, pode não ser válido hoje e o que hoje é válido, pode não ser válido amanhã. Por isso, o que tenho a dizer é que o senhor merecia um tratamento melhor.

Então, quando o senhor estava vivo só se diziam coisas negativas sobre o mesmo. Regressou a Angola, e não era um facto noticioso relevante para a linha editorial da Televisão Pública, mas quando estava a beira da morte, tornou-se um facto noticioso relevante para a TPA, que até gastou o nosso dinheiro para pôr um repórter a tempo inteiro à porta da clínica onde o senhor se encontrava internado para que, em primeira mão, noticiassem a sua morte, como uma grande vitória, e a partir daí todo o mundo já podia falar bem do senhor, que era um grande patriota, o arquiteto da paz e outras coisas mais. A TPA ficou horas e horas, dias e dias, a falar da vida e obra de José Eduardo dos Santos, o Presidente “Emérito” do MPLA. Isto não tem outro nome: é hipocrisia. Não me revejo neste estilo de vida, porque sou um homem de princípios, porque o meu pai me educou que “o homem só vira na cama e não vira na língua”. Não devemos dizer uma coisa hoje, e amanhã, sem qualquer justificação, dizer outra. Devemos ser coerentes para com os ideais e princípios que defendemos. Só isto nos torna pessoas sérias, respeitáveis e respeitadas.  

Regressemos a 2018/19. Por essa altura, o caso mais badalado foi a detenção do director-geral da Quantum Global, Jean-Claude Bastos de Morais, libertado a 22 de Março de 2019. Foi necessária essa medida de coação para defesa dos interesses do Estado angolano?

Não havia razões para tal, até porque ficou provado no Tribunal Inglês, que deu razão aos visados, que o Estado angolano agiu de má-fé e foi condenado por isso. Mas como não interessa esta verdade, os noticiários dos órgãos públicos de comunicação social em Angola, nunca falaram do assunto, nem promoveram debates sobre o tema, muito menos abriu noticiários.

A verdade pode demorar, mas vem sempre ao de cima pois, Deus escreve direito por linhas tortas.  

13 de Agosto de 2021. O juíz presidente do Tribunal Constitucional Manuel Aragão “demarcou-se”, em voto vencido, “da maioria das decisões” constantes no acórdão que aprovou a revisão constitucional, alertando para o “suicídio do Estado democrático de direito” ao admitir-se hierarquia entre tribunais superiores. “No Estado de direito”, disse, “esta estrutura e organização é determinada a fim de garantir a concretização e efectivação dos demais princípios, como o princípio do direito à tutela jurisdicional efectiva”. Foi uma decisão assertiva?

Ele foi e é um grande patriota, marcou a diferença. Seria bom se muitos outros seguissem o seu exemplo, para não virem amanhã dizer cobras e lagartos sobre a liderança do Presidente João Lourenço, quando ele já não estiver no poder, como fizeram com o Presidente josé Eduardo dos Santos.

Pediu a sua jubilação, mas a sua decisão acabou por ser entendida e aceite pelo Presidente da República como pedido de demissão do cargo. É a mesma coisa ou o objectivo foi a humilhação dessa figura?

Não é a mesma coisa, mas este episodio só veio demonstrar que tudo aquilo que eu disse é verdade. E só não vê que as coisas vão de mal a pior, quem não quer ver com os olhos de ver e porque não é patriota.

“Quo Vadis Angola”! Tem também essa percepção?

Lamentavelmente, temos que admitir que a nossa querida Mãe Angola, não goza de boa saúde.

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