A continuada exclusão de quem não se sente pessoa de verdade

Há cerca de duas décadas ouvi de um camponês amargurado da Caála uma frase que resumia a minha percepção sobre os processos de exclusão de uma classe social que já havia sofrido a exploração colonial de modo mais evidente, mas também contribuído significativamente para a independência: se para as pessoas de verdade, lá na cidade… 

Por Fernando Pacheco

Analisemos como este processo de exclusão tem evoluído ao longo dos tempos. Abolida a escravatura, a partir da Conferência de Berlim de 1884- 1885, o Estado colonial português acelerou a conquista do território angolano, a sua ocupação administrativa e a desestruturação do poder dos antigos reinos. Utilizando a retórica do respeito pelos seus usos e costumes, excluiu a população sob o controlo das chefias residuais – que representava na altura da independência pelo menos 85% de todos os angolanos – do acesso a serviços públicos, remetendo-a à situação de não cidadãos por oposição aos que tinham direitos, isto é, aos “civilizados”, mesmo após a abolição do Estatuto dos Indígenas em 1961. Nessa época viriam a registar- se algumas excepções quando a prestação de serviços se mostrava útil aos interesses portugueses, como foi a criação das “sanzalas da paz”, onde o fornecimento de água e energia eléctrica, bem como escolas e postos de saúde precários aguardavam as populações subtraídas ao controlo das forças de guerrilha. Outra excepção, já nos últimos anos do colonialismo, foi uma certa difusão do ensino e dos cuidados de saúde nas áreas rurais, sempre em situação de precariedade. A essa população estava reservado, principalmente, o papel de fornecedora de força de trabalho e de produtos agrícolas e pecuários a um comércio extremamente injusto. 

Ao longo dos 47 anos de independência, o Estado angolano não fez, objectivamente, muito melhor em matéria de acesso a serviços sociais e económicos por parte das populações rurais. Os dados do Recenseamento Agro-Pecuário e Pescas de 2019-2020 (Novo Jornal, 17/2/23) e o número de angolanos sem certidão de nascimento nem Bilhete de Identidade evidenciam o continuum de efectiva exclusão que vem do passado, explicada agora pelo preconceito de classe das elites governantes em relação aos camponeses e aos pobres, em geral. O êxodo de populações das comunidades rurais para as sedes dos respectivos municípios, trampolim para a fuga para as cidades, explica a razão dessas localidades, as antigas vivas, serem vítimas do mesmo processo de exclusão, pois a população predominante passa a ser sociologicamente semelhante à das aldeias, e logo merecedora de igual tratamento. 

Esta exclusão radica no esquecimento a que foram votadas as povoações, enquanto unidades administrativas subordinadas às comunas, previstas constitucionalmente desde os primórdios da independência e jamais dotadas de serviços e de instituições, quer do Estado, quer do enquadramento do poder tradicional – o que em boa verdade quase não aconteceu também nas comunas, salvo a existência de administradores sem o mínimo de condições humanas e de equipamento. 

As vilas, que na maioria dos casos eram sede dos antigos concelhos hoje designados por municípios, tiveram um papel importante nas últimas décadas do colonialismo no crescimento económico das respectivas regiões e na mobilidade social e desenvolvimento profissional da população camponesa, ainda que com muitas limitações. A guerra destruiu a vida económica e social das vilas, mas, alcançada a paz, outro mal impediu a sua recuperação: a doença holandesa que desvirtuou o crescimento económico do País, pelo aumento da produção de petróleo e do seu preço nos primeiros anos da chamada reconstrução nacional. Os proveitos do petróleo e dos empréstimos da linha chinesa passaram ao largo dos municípios e das suas populações. 

A degradação das condições de vida nos municípios explica o abandono sempre crescente dos poucos quadros e a resistência de outros à sua transferência para essas localidades, assim como a falta de quadros significa ausência de serviços públicos e de progresso económico – principalmente da agricultura estagnada tecnologicamente -, o que, por sua vez, tem consequências negativas na atractividade de quadros. Estamos em presença de um ciclo vicioso que o Executivo não consegue transformar em ciclo virtuoso. Por manifesta falta de vontade política, se tivermos em conta as disponibilidades financeiras desde o alcance da paz. Explicada pelo preconceito de classe dos líderes políticos e dos governantes, traduzido em exclusão. 

Esta análise permite concluir que a institucionalização das autarquias, a par das outras formas de poder local previstas na Constituição angolana – as instituições do poder tradicional e outras modalidades específicas de participação dos cidadãos – é um imperativo e não pode continuar a ser adiada com argumentos pouco convincentes e muito indicativos de ausência de vontade política e de um interesse partidário que se sobrepõe ao interesse nacional. O poder local, com maior ou menor dificuldade, permitiria não apenas a aproximação de alguns serviços à população, mas também um maior envolvimento dos cidadãos nos processos de decisão e o fortalecimento da sua cidadania, já que o Estado, no seu formato actual, não o conseguiu ao fim de quase 50 anos, deixando-se o mesmo cuidar de outras tarefas com incidência local, como, por exemplo, a Polícia e os Tribunais. 

Um estudo da Direcção Nacional da Administração do Estado de 2015 concluiu que a maioria das Administrações Municipais tinham menos de 40% do seu quadro de pessoal preenchido, que era notável a falta de técnicos superiores nas áreas económica e produtiva pública, que eram notórias as más práticas administrativas, que na generalidade não havia condições de vida dignas para os quadros transferidos e suas famílias. Ninguém acredita que, nos anos de recessão económica e pandemia, a situação tenha melhorado. Por outro lado, a nível local, manifestam-se, ainda que em escala menor, práticas de corrupção e de impunidade idênticas às da Administração Pública, em geral, e ainda não se notam os efeitos da Reforma do Estado e do Projecto Simplifica, nem a mudança de mentalidade que eles exigem. 

Por tudo isso, é absolutamente incompreensível a ideia de se impor ao País uma Nova Divisão Político-Administrativa (DPA), seja qual for o ângulo por que se queira ver, incluindo o da putativa aproximação dos serviços aos cidadãos, que não pode acontecer por artes mágicas, mas só com uma enorme vontade política que não se viu desde o final da guerra. Uma DPA que vai aumentar o número de funcionários de cerca de 136 mil actuais para aproximadamente 300 mil e os custos anuais com salários de cerca de 250 biliões (não mil milhões) de kwanzas para aproximadamente 567 biliões. Para além dos custos com investimentos e viaturas, evidentemente. Um completo absurdo! Indiferentes aos níveis de fome e de pobreza de pessoas que continuam a se sentir como se não fossem pessoas de verdade. 

Publicado no Novo Jornal edição 777

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