(ENTRE OS QUAIS OS SUCESSIVOS EXECUTIVOS, DESDE HÁ MUITO)
Os compromissos de Maputo e de Malabo, sobre a dotação do mínimo de 10% das despesas dos orçamentos anuais dos países africanos para assegurar o desenvolvimento agrário do continente, tiveram como resposta, em Angola, uma média abaixo de 2% ao longo de vinte anos…
CONVERSA NA MULEMBA

Não é de hoje a “inimizade” dos Executivos angolanos em relação à agricultura. Durante a guerra, manifestei com insistência a opinião segundo a qual não era totalmente verdadeiro que a agricultura não se desenvolvia por causa dessa mesma guerra. O abandono da agricultura e dos camponeses permitiu o mar onde a guerrilha passou a nadar, pois os outrora aliados da revolução deixaram de ter razões para defender um Estado que os ignorava. Como argumento para sustentar esta opinião, invocava a experiência durante a luta de libertação, quando o governo português implementou projectos de extensão rural para impedir a chegada da guerrilha ao Planalto Central, e de promoção de cooperativas no Uíge para dar corpo à sua política de promoção económica e social para conter a guerrilha a Norte. Tais projectos, apesar do contexto político colonial, representaram, na óptica dos portugueses, experiências de relativo sucesso, em termos de curto prazo, embora se soubesse que o colonialismo estava estrategicamente com os dias contados.
Terminei a conversa anterior, manifestando a opinião de que a solução do problema alimentar de Angola não pode passar, no curto prazo, e talvez mesmo no médio, por modelos semelhantes, quer ao do agronegócio brasileiro, quer ao das grandes plantações seguidos por vários países africanos. Por não termos um empresariado suficientemente numeroso e desenvolvido, nem um ambiente de negócios atractivo para o investimento estrangeiro, como o demonstra o insignificante volume de investimentos nos últimos sete anos, e de não termos instituições capazes de orientar e liderar um processo tão exigente.
A solução, na minha óptica, e por razões não apenas económicas, mas também políticas e sociais, passa pelo desenvolvimento estrutural da agricultura familiar. E o que significa isso?
Primeiro que tudo, enfrentar o grande desafio que aflige a agricultura familiar, desde que se iniciou a corrida à terra com propósitos empresariais, ampliada a partir de 1961, provocando a redução drástica da área média das suas explorações, que, de meados dos anos 60, passou de 8,9 hectares para 3,9. Esse facto, comprovado e revelado pela Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola (MIAA), provocou, por sua vez, a redução da fertilidade natural dos solos e, consequentemente, a redução da produtividade da terra e da produção, pois os pousios, isto é, as terras em repouso, diminuíram de 3 hectares para 1,2 hectares em média. Como se a injustiça fosse pouca, a MIAA mostrou que os empresários apenas utilizavam 11% das áreas concedidas. Em regiões de produção de café, essa política favoreceu o apoio dos camponeses à guerrilha.
Quando se iniciou nova corrida às terras, no início da década de 90, os camponeses angolanos perceberam que voltavam a enfrentar os desafios de outrora. O Recenseamento Agropecuário e de Pescas (RAPP), dado a conhecer em 2022, revelou uma fotografia incómoda para os Executivos angolanos. A área média das explorações familiares é agora de apenas 2,34 hectares, ou seja, diminuiu 40%. Dessa área são cultivados anualmente, sempre em média, 97%, ficando, pois, praticamente sem pousios, e, como tal, sem possibilidade de recuperação dos níveis de fertilidade anteriores. Quase sem adubos químicos e com baixos níveis de utilização de estrume, a carência de pousios condena tais explorações à falência a prazo, pois não só inviabiliza aumentos de produtividade, como, tendencialmente, provocará reduções dessa mesma produtividade. Do mesmo modo, a limitadíssima área de baldios sugere problemas acrescidos para o uso de outros recursos naturais, como a lenha e outros bens recolectáveis, fomentando uma situação propiciadora de um desastre social, que, na realidade, já começou.
Angola tem um consumo de adubos per capita inferior a três quilos, o que contrasta, de acordo com a FAO, com o consumo mundial, que é de 62, e com o da África Subsaariana, que é de oito. Esta realidade poderia ser uma oportunidade para a adopção de sistemas modernos de agricultura, baseados na associação agricultura-pecuária-floresta, cada vez mais em voga em países como, por exemplo, o Brasil, onde as preocupações ambientais estão em crescimento devido às apreensões internacionais com o desenvolvimento sustentável.
Esta abordagem compagina-se com outros desafios que se colocam ao desenvolvimento estrutural da agricultura familiar. Em primeiro lugar, o dos recursos humanos. O Ministério da Agricultura reclama um défice de oito mil técnicos e o Plano 2023-2027 apenas contempla a admissão de dois mil. A maior parte dos técnicos existentes estão desmotivados, entre outras razões, por causa dos baixíssimos salários e da falta de condições de trabalho e de vida nos municípios, sendo que a maior parte dos recém-formados opta por outros empregos, principalmente como professores.
Em segundo lugar, e estreitamente ligado ao desafio anterior, o do desenvolvimento institucional inclusivo, de modo a promover a descentralização e a desconcentração dos serviços, a coordenação entre ministérios e entre instituições e serviços, o uso de métodos de trabalho alinhados com as boas práticas internacionais e o combate efectivo à corrupção e à burocracia.
Em terceiro lugar, e novamente ligado aos dois anteriores, o desafio do conhecimento, tanto científico como endógeno, ou seja, dos saberes acumulados ao longo dos tempos, quer do que se faz no mundo, em África ou em outros países comparáveis, quer sobre a realidade angolana, tanto do ponto de vista dos agricultores e das comunidades onde estes estão inseridos, como do dos sistemas agrários e pecuários praticados. Uma aposta que deveria centrar-se no reforço das capacidades dos institutos de investigação e de extensão, visando o aumento dos níveis de produtividade da terra e do trabalho.
Em quarto lugar o desafio da mecanização. Os governantes angolanos acenam demagogicamente, e em sintonia com o modelo vigente, com a tractorização da agricultura familiar. Ainda que houvesse dinheiro – e não há – não temos organização, nem logística, nem recursos humanos para essa tractorização, nem teremos nas próximas décadas. Existem alternativas a essa aposta: domésticas com recurso à tracção animal, e externas como a chamada low tech, muito usada em países asiáticos.
Em quinto lugar, os recursos financeiros. Já denunciei aqui que os compromissos de Maputo e de Malabo, sobre a dotação do mínimo de 10% das despesas dos orçamentos anuais dos países africanos para assegurar o desenvolvimento agrário do continente, tiveram como resposta, em Angola, uma média abaixo de 2% ao longo de vinte anos.
Considerando a difícil situação financeira, mesmo em termos perspectivos, este desafio terá de ser encarado com uma aposta nos recursos internos, alinhada com o enfrentamento dos desafios anteriores. Se o cenário não for alterado, esperam-nos tempos muito difíceis.
PS – O documentário “Mário” foi finalmente exibido em Luanda, com a presença do seu realizador Billy Woodberry. Na sala, nenhum dirigente do MPLA. Não será com a atribuição do nome do seu primeiro Presidente a um dos muitos “Dubais Hospitalares”, ou com a sua condecoração póstuma, que o MPLA se redimirá da vergonha, bem expressa na fita, da negação da concessão de um passaporte a Mário Pinto de Andrade, um dos obreiros da independência. Esta negação terá prejudicado os esforços para o seu tratamento médico, em Londres, tratamento esse que poderia ter permitido alongar o seu tempo de vida.
Como naquele tempo, o MPLA continua, hoje, a impedir uma verdadeira reconciliação entre os angolanos.
17 de Abril de 2025

Uma verdadeira tese. Material de estudo nas nossas escolas de formação agrícola e não só.