EELP. LITERATURA, DEMOCRACIA E MUNICIPALISMO

(11º. Encontro de Escritores de Língua Portuguesa)

Praia-Cabo Verde

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Ao revisitar esta bela cidade da Praia, capital da República de Cabo Verde, sinto a meio de muitas emoções, enorme satisfação e a boa sensação de poder conviver por uns dias com gente com a qual, sinto, o entendimento vai ser perfeito. É gratificante constatar como a utilização da língua comum se torna no acto responsável do estado de alma que propicia o entendimento e nos conduz necessariamente a um melhor debate de ideias, objectivo que buscamos aqui. 

Estamos reunidos para participar neste 11º. Encontro que promove o sempre precioso contacto com as literaturas e com os autores de Língua Portuguesa. Um Encontro que vai privilegiar, estou certo, a elevação da cultura e do conhecimento de todos nós. Por essa razão, cumpre-me antes de tudo, agradecer à UCCLA a honra do convite que me foi dirigido. Aceite com prazer, e usando uma expressão do inesquecível antropólogo, cineasta, escritor e poeta angolano Ruy Duarte de Carvalho, direi que todas as honras exigem ser bem honradas.

Tentarei, pois, fazê-lo, servindo-me, devo sublinhar, de alguma coragem. Não apenas a que me levou a aceitar o desafio, mas também aquela que, por inerência, me dá a incumbência de abordar um tema tão delicado como é este que me coube. Delicado, pelo cuidado com que deve ser analisado, e não apenas porque se coloca na mesa das discussões uma questão bastante séria que implica a Literatura, sempre uma questão espinhosa, mas essencialmente porque ela é intrometida no caminho da Democracia e do Municipalismo, dois elementos fundamentais de outro caso particularmente sério, que é o da Ciência Política. 

Fazemos parte de uma comunidade que tem a língua portuguesa como elemento fundamental da nossa convivência. Não restando dúvidas a nenhum de nós quanto à importância do diálogo cultural que estabelecemos há longos anos na língua de Camões, nunca será demais referir que Encontros desta natureza constituem um incentivo à consolidação das nossas relações, sejam elas políticas, sociais, culturais, económicas ou outras, mas também à permanente melhoria e conservação da estrutura do edifício da sociedade civil que, em determinada época ou momento, nos dispusemos a erguer nos nossos respectivos países. Um edifício onde cabe por direito a dignidade e a elevação da cultura criativa, um bem que agrega o crescimento, a todos os níveis, das pessoas que a constituem. Um edifício ao qual, com a argamassa dos temas que aqui iremos discutir, daremos uma outra solidez e maior credibilidade. Um edifício, enfim e infelizmente, ainda de construção precária ou em fase de acabamento em alguns dos nossos países.

Com Pires Laranjeira e Rui Lourido da, UCCLA

Ilustres participantes, caros escritores,

Passarei a falar, como é óbvio, da realidade que conheço, do caso onde me insiro. Pelo conhecimento mínimo que cada um de nós tem da situação dos países que conformam a chamada Lusofonia, creio que não deixarão de estar de acordo comigo, que não é, não pode ser fácil a um angolano, seja ele escritor como eu, catedrático, cientista ou um cidadão comum, na sua importância, douta sabedoria ou mesmo na santa ignorância dos seus direitos, falar sem reticências, sem hesitar, da Democracia e, por arrasto, do fenómeno que objectiva a autonomia administrativa, financeira e política dos municípios face a instâncias da cúpula do poder, no caso o que está estabelecido em Angola. 

Enfatizo assim a circunstância de ser para mim arriscado falar de Democracia e Municipalidades, enquanto elementos fundamentais da construção da sociedade civil que ainda não compareceram, de facto, na  realidade política angolana. Apesar de ambas as questões serem permanentemente abordadas, embandeiradas até, nos mais diversos momentos e fóruns de discussão política, rotuladas de princípios relevantes para o desenvolvimento do país e para a felicidade dos seus cidadãos.

Quais as razões da ausência da Democracia e das Municipalidades em Angola? Pergunta semelhante fez há tempos Mia Couto, ao questionar a realidade moçambicana: “Há talento e cultura, e capacidade e competência, e solidariedade e inteligência nesta geração?” Sim, disse Mia Couto. Também digo eu que há sim senhor, há e sempre houve talento e bons e muitos exemplos de capacidade e competência. Na verdade, o que tem faltado para que a Democracia e as Municipalidades traduzidas em poder local, se concretize em Angola, não é mais do que vontade política.

Na verdade, se o reinício da guerra em 1992 não foi justificação suficiente para impedir que as instituições saídas das eleições desse ano fossem criadas, é difícil aceitar que, alcançada a paz há mais de 20 anos, continuemos a viver com tão grande défice de funcionamento democrático nessas mesmas instituições e, mais grave, que a sociedade permaneça amordaçada do ponto de vista da livre expressão, tão necessária para o florescimento de ideias e para o progresso em geral. Na realidade, depois das esperanças depositadas na transição da chefia do Estado em 2017, a sociedade angolana mergulhou num clima ainda mais agreste relativamente à ausência de pluralismo e até mesmo de falta de profissionalismo na área da comunicação social pública, afinal a de maior abrangência territorial.

É esse défice democrático que explica também o sempre e injustificado adiamento da implantação das autarquias, hoje considerada uma aspiração generalizada dos angolanos, pelo que esta pode traduzir de esperança por uma maior participação cidadã na vida pública. Previsto em todas as formulações constitucionais desde 1975, e com mais propriedade, depois da Constituição de 2010, o poder local tem vindo a ser encarado como a Virgínia Wolf de quem se tem medo, o que no final das contas tem de ser percebido como um interminável desejo de manutenção de um poder centralizado exercido pelas mesmas forças e actores políticos dos últimos quase 50 anos. Um poder político que já revelou incapacidade de resolver, por si só, os ingentes problemas do país.

Venda de artesanato na cidade da Praia

Posto isto, coloco-me confortavelmente na expectativa de ouvir as experiências dos países irmãos nestes domínios e de falar brevemente de Literatura, área onde, naturalmente, me sinto com um maior à vontade. Em Angola, apesar das divergências e insuficiências, existe, vibra e pulsa, impõe-se de algum modo a Literatura. A sua presença é fortemente marcada por textos que correram e correm mundo e obras de autores consagrados que já se projectaram para além do território e de outros que se revelam ano após ano, na esteira dos artífices da angolanidade e alimentando a esperança de termos futuramente uma Literatura diversificada que nos orgulhe. A Literatura angolana contempla ainda e também posições literárias contraditórias, próprias da sua essência intransigente, plural, e da vontade democrática que se projecta na sociedade que está voltada para o futuro. 

A Literatura em Angola como em qualquer país, não pode nem vai resolver os chamados problemas do povo, do seu desenvolvimento político e social. Não pode nem deve ser vista como simples cartilha para ser seguida. Apenas para enaltecer e fazer a apologia de figuras poderosas do passado e do presente. Quanto a mim, essa parte não cabe nos ditames do que deve ser a Literatura nesta fase histórica dos nossos povos. A Literatura deve, antes de mais, assumir o espírito crítico da sociedade, tendo em vista a construção de um mundo mais justo, deve, efabulando, mostrar a realidade da vida das comunidades, explorar bem os seus anseios e problemas. Chamando à atenção para assuntos velhos e novos como a intolerância e exclusão social, o racismo e a igualdade de género, as desigualdades sociais e a aceitação do outro diferente. A Literatura pode ser, pois, dentro desses parâmetros, um elemento fulcral para a construção de capital social e da confiança para a coesão nacional e o desenvolvimento dos países.

A Literatura pode ajudar os cidadãos na sua luta por uma sociedade melhor, inclusiva, justa, livre e solidária, onde ninguém fique para trás. A Literatura, na perspectiva que venho abordando, pode ser um contributo para a construção de uma sociedade democrática e participativa.

É reconhecida por todos nós a importância das autarquias locais e o quanto o défice democrático constitui sério contratempo para os nossos povos, na medida em que condicionam o diálogo cultural entre os poderes públicos e a sociedade, numa época em que as democracias, umas mais do que outras, se vêem mais ameaçadas do que nunca.

 “A diferença entre um obstáculo e uma oportunidade é a nossa atitude em relação a isso”, disse o pastor e teólogo australiano James Sidlow Baxter. “Se não tem coragem não adianta ter vontade”, vão dizendo outros pensadores. Em Angola também se pensa e incentiva. Todos os dias, centenas, posso arriscar, de jovens e menos jovens, mostram-se preocupados com o futuro do seu país. Cito, por exemplo, Cesaltina de Abreu e Cristina Ataíde Pinto, duas activistas que com bastante coragem e patriotismo, desenvolvem acções em prol da Democracia. Lutam diariamente para que “as nossas crianças e os jovens, todos, tenham as melhores condições e oportunidades de crescer e aprender”. Vão dizendo que “investir na alfabetização e na educação é cuidar do futuro da sociedade e transformar o mundo”. Palavras como “alimentar a esperança nossa de cada dia é correr atrás dos nossos sonhos”, ou “Espírito Público constrói-se com Dedicação, Ética, Responsabilidade, Criatividade, Persistência e Solidariedade”, estão permanentemente presentes nas suas mensagens.

Hotel Trópico – Presidente da Assembleia Municipal da Praia Clara Marques e o geógrafo José Maria Semedo

O Dia Internacional da Democracia, 15 de Setembro, foi estabelecido pela ONU, em 2007, para promover os princípios que sustentam o sistema democrático no mundo, colocando-o como um valor universal onde a população tem o poder de determinar os seus governantes e os seus sistemas económicos, culturais e sociais. Esse dia também faz alusão à Declaração Universal da Democracia (Cairo, 16 de Setembro de 1997), visando promover uma democracia pluralista e o estabelecimento de sistemas de governo representativos em todo o mundo. 

O futuro depende de nós, de como nos posicionamos em relação aos poderes instituídos, do que toleramos por medo de manifestarmos a nossa opinião, do que não denunciamos sabendo que alguns políticos estão a mentir, enfim…do que permitimos, sabendo à partida que não vai resolver nem os problemas mais básicos!

Termino dizendo que cada dia representa mais uma etapa de luta pela Democracia em Angola, e no Mundo. E acredito que todos nós vamos conseguir! Estamos juntos e juntos somos mais fortes!

Decorreu de 19 a 22 de Outubro de 2023

One Comment
  1. Jacques, gostei da comunicação. Uma proposta para uma democracia vivida pelos angolanos.

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