“Angola vai mexer, nos tempos próximos, que estão para vir, Angola vai mexer”. Ruy Duarte de Carvalho falava assim para alguém em Junho ou Julho de 2001 na baixa de Lisboa. As palavras serviram de abertura de “Actas da Maianga… dizer das guerras em Angola”, livro seu editado em 2003 pela Caxinde em Angola e pela Cotovia em Portugal.
À hora que for lida esta crónica (mais extensa por exigência da nossa data), o grupo restrito de compatriotas onde me integrei (se é que doze é número restrito), já só se lembra do que fizemos, comemos, bebemos, rimos, sonhamos e perspectivamos ontem, 11 de Novembro, dia da Dipanda. Festejado com esses ingredientes e com a alegria de estarmos vivos, com sorrisos nos lábios e olhos brilhantes de esperança, assinalamos a data maravilhosa, encaixando também na comemoração uma panóplia de frustrações.
Foram lamentadas as recentes mortes do professor doutor José Teixeira Martins, de Luís Araújo da SOS Habitat, e do poeta Fernando Kafukeno, pessoas que tinham Angola no coração. Que descansem em paz! O almoço teve lugar em Lisboa em casa de um velho amigo, daqueles que vale a pena ter como patrício. Ainda nos aperitivos, anotamos que não tínhamos alcançado o cenário idealizado por Ruy Duarte. Pelo que sabemos, Angola ainda não mexeu, disse um dos convivas. Nem parece que venha a mexer nos tempos mais próximos, rematou um segundo. Apesar dos ventos soprados, nada de bom se agitou para o lado da grande maioria de deserdados da nação angolana. Unanimidade, quanto a isso.
Passamos às entradas. Kitaba, bombó assado, choco frito, menha ndungo, essas coisas gostosas de acompanhar um copo. O ambiente estava propício a se falar de tudo e mais alguma coisa. Principalmente dos ventos que correm de feição a certos conterrâneos. Os que têm a vida a assistir-lhes em permanência, a mexer esplendidamente nesse particular. À custa de outros a quem a vida não acena, pouco mexe e chega a virar as costas, alguém lembrou e concordamos todos. A conversa animou quando atacamos o primeiro prato e demos vida ao repositório de imagens da nossa longa e árdua caminhada. Observamos tudo e o todo. Os angolanos habituaram-se a fazê-lo há muito e sempre que se encontram, em qualquer sítio que seja. É já hábito adquirido. Quer na Banda como no Ultramar, há muito essa planta enxertada em amor pegou de estaca, como as roseiras. Seja qual for o pensamento de cada um, qualquer que seja a sua inclinação política, a planta floresce em chão angolano. As tendências mostram-na, cada vez mais robusta, a crescer na via a seguir, a que, contra todas as correntes, vai ganhando vantagem. A que conduz ao patriotismo, à decência, à inclusão, à democracia e ao progresso.
O gindungo colocado na ementa fez soltar momento de autocrítica. Já havia saudades. Com os prazeres do prato forte, vieram à baila hábitos e manias nossas. Criticáveis, todavia. Só falamos no regabofe, à volta de muzongués e calulús, boas pomadas e birras a estalar, alguém, numa bravata, levantou a lebre, dizendo, estas conversas deveriam ser vis-à-vis, face to face, na cara dos camaradas que julgamos. Respeitamos. Era a opinião do mais velho do grupo. Mais velho do que eu, mas bem rijo. Fazemo-lo sempre com alguma cobardia, decidi-me a falar e mais disse, embora reconheça que não nos falta de todo a coragem, uma vez que a malta sabe que eles sabem o que sabemos deles, rematei. Por sua vez, o mais kota do conjunto ainda comentou, com facilidade incrível pomos hoje a boca no trombone e deitamos cá para fora todas as nossas mágoas. Não é por aí que anda o mal, não senhor, não é por falta de coragem nem de conhecimento das partes.
Por altura dos digestivos falamos de tudo. Sobretudo de assuntos chatos. Daqueles que na opinião dos que comandam o barco, são absurdos. Coisas que para a maioria de nós são úteis e fazem sentido serem exploradas. Indo-se corajosamente em sua direcção. Com boa vontade política, claro. Sim, a que anda arredia da nossa prática. Por essa altura fomos arrastados por falas que nos conduziram ao campo das interrogações. Para quê, se não produzem nenhum impacto nas cabeças dos que mandam e podem? Questionou-se. E vieram abordagens acerca de questões raramente comentadas e que embora elucidativas, nem sequer se toca nelas. Fomos indo e ouvimos então. Porque será que as opiniões e os conselhos de gente que sabe dos assuntos não colhem entre os governantes? Primeira questão a dar lugar à resposta expressa na seguinte constatação. Dezenas, senão centenas de experientes cidadãos bem-intencionados não se cansam de, nos vários domínios, sugerir atitudes, modos de enfrentar a crise e sair-se airosamente dela. Debalde. Ninguém lhes dá qualquer atenção. Entretanto, estoira-se dinheiro à brava, fala-se de democracia participativa.
Levantou-se uma voz feminina para dizer de sua justiça. Optou por outro caso inexplicável. Está no domínio da assistência social, começou ela. Carentes que somos nessa área que afecta milhões de cidadãos, afastamo-nos de soluções práticas para atenuar a crise. É o caso da política pública dos jogos desportivos e das lotarias. Fundamental em muitos países, Angola teve boas experiências no período colonial. Com resultados positivos. Bem visto, é verdade! Concordamos. E outra voz de mulher lembrou que a antiga empresa de lotarias cedeu o seu lugar a casinos e casas do género das jogatinas. Para benefício de quem? Interrogou a camarada, dizendo depois, para fechar. Independentemente da ideia que se tenha do jogo em si, não se podem esquecer os bons resultados de ontem e, por isso, existe uma certa lógica na pergunta. Porque não continuar? Deu a seguir a palavra ao mais velho de todos. Idêntica questão se coloca em relação às empresas públicas, comprovadamente rentáveis em exercícios seguidos de muitos anos. Porque as colocam na linha da frente para serem privatizadas? Com que objectivo? Coisas que não se entendem! Disse para mim mesmo.
E estendi-me na minha reflexão interior. Não se entendem muitas coisas nestes 48 anos passados depois de conquistada a Independência Nacional. É incompreensível, por exemplo, que num país onde os escritores, os poetas e os livros que escreveram foram fundamentais para a alcançarmos, sejam olvidados por quem deveria ter a obrigação de não esquecer nunca; é falta de consideração que não se estimulem figuras destacadas da nossa literatura em momentos em que são reconhecidos os seus méritos e por tal facto, homenageadas noutras paragens que não as nossas. Não se entende, disse eu em voz alta enquanto sorvia um gole de vinho tinto. Deu-me ânimo, entrava numa área que não me era de todo estranha.
Para colmatar o enorme vazio vão-se atirando pedradas no charco e volta e meia lançam-se expectativas sobre trabalhos que nada têm a ver com literatura e educação, uns mais controversos que outros. Memórias, Biografias, algumas narrativas proféticas e intriga política que baste, vão ganhando primazia. Aparato publicitário e inusitado para uns, nenhuma importância para outros. Neste levar de vida dificilmente se impõem obras e autores como “Estamos aqui, Twina vava, Nous voici”, de Branca Clara das Neves. Um livro bem preenchido. Belas ilustrações, uma geografia ficcional a acompanhar o percurso das personagens. Tudo inscrito num título grafado em três línguas: português, kikongo e francês. Escrita escorreita, não é leitura fácil, vou avisando. Difícil, mas de muito valor. Por essa razão a trago à minha página. Os amigos e os meus leitores ficam a saber que a autora é angolana nascida no Moxico e praticamente desconhecida do público, mas nome a ter em conta. Escreve lindamente. De uma forma e com uma técnica pouco vulgar, colocou no processo criativo da obra que lançou recentemente enorme talento. Em qualquer outro país que não o nosso, seria notada facilmente. Não o é entre nós, porque na nossa terra, volvido quase meio século sobre a data da nossa independência, não se promove o livro nem os autores nacionais. Vale apenas quem tem. Nem sempre o talento. Dificultam ao máximo, longe de políticas de promoção, quer do livro quer da leitura. Já tinha dado uma imagem deste panorama na crónica onde destaquei o Encontro de Escritores Angolanos realizado no Lubango em 2004, no qual se deram pistas da rota a seguir em relação a esse objecto fundamental da educação dos cidadãos, que é o livro. Não tendo sido acatadas, os resultados são os que se conhecem. Assim, como caminhamos, dificilmente serão conhecidos novos livros e bons autores que vão surgindo em paralelo com as obras dos consagrados.
Em tempo de celebração não nos esquecemos do desporto onde temos campeões em várias modalidades. Sempre nos orgulhamos dos nossos atletas. Mas agora que há muitos vencedores, felicitam-se apenas alguns. Esquisito, exclamou-se no grupo. Realçou-se a incongruência que fortalece a ideia de que isto é só mesmo para alguns. Quais afinal as modalidades merecedoras do orgulho do Bureau Político do nosso MPLA? Alguém perguntou e disse para rematar. A Vaidade e o Poder parecem, uma vez mais, afirmar-se contra o Politicamente Correcto. Talvez se tenha uma perspectiva muito antecipada do que se pretende estrategicamente para Angola. O mais jovem do grupo aventou, Integração num contexto de destino turístico mundial, com corridas de Fórmula 1 integradas? E o mais velho refilou, o início para transformar Angola numa imitação do Dubai? Oxalá dê certo. Alguém se lembrou de um acontecimento. O Aeroporto Novo foi inaugurado anteontem. Veio a pergunta em coro, Vai funcionar? Com certeza, mas como e quando vai funcionar em pleno, ainda não se sabe ao certo. Vamos admitir que sim. Mas, com vossa licença e do meu amigo Óscar, desde que vi um porco a andar de bicicleta, acredito cada vez mais em coisas inverosímeis. Lancei a última farpa.
Na nossa dilatante conversa deambulamos por vários campos e cheguei a ver-me a sonhar com o mundo do espectáculo. Inclusive com o Teatro de Revista, arte que sempre me entusiasmou. Sabem porquê? Para poder ser concretizado o sonho de transportar para palco o nosso dia-a-dia, as cenas de que hoje se falam apenas nas redes sociais. Puxaria pelo talento e criatividade dos nossos artistas. Teria finalmente oportunidade de concretizar a apresentação da peça “Orações de Mansanta” de Abdulai Sila, meu estimado amigo da Guiné-Bissau, obra não exibida em Angola por estranhas ocorrências (as razões que há pouco menos de uma década justificaram a sua não apresentação, ainda não são para mim plausíveis), dando origem ao encerramento ao público da sala do Nacional Cine-Teatro.
Foi assim, caros leitores e amigos, nesse clima de crítica espontânea mas de muitas expectativas para a Angola que desejamos. Um país respeitado, sem fome, com saúde, trabalho e escola para toda a gente. Com o Presidente a olhar com os mesmos olhos todos os angolanos, admitindo a discórdia mas defendendo interesses comuns, políticas onde caibam a tolerância e a mais sã convivência democrática, com todos os órgãos da Justiça a cumprirem a sua obrigação, todos mais dignos e fora da alçada do Governo.
Encerramos o encontro com todos na tónica do início do festejo. Infelizmente Angola não mexeu, ao contrário do que previra Ruy Duarte de Carvalho. Não mexeu como ele perspectivava, mexeu ao contrário, noutras direcções. Teremos que fazer muita força para que mexa para o lado certo, concluímos. E para que conste, escrevi esta crónica.
Cada vez mais preocupado com a escalada do conflito israelo-árabe a que ninguém fica indiferente, despeço-me de todos, movido como sempre por um sentimento de esperança pelo futuro do nosso país. Pela vida e melhor sorte do povo angolano e dos povos do mundo inteiro. Apresentando cumprimentos aos meus amigos e compatriotas, espero regressar ao vosso contacto no domingo próximo, à hora do matabicho. Viva Angola!
Lisboa, 12 de Novembro de 2023
(primeiro aniversário da partida da minha adorada filha Paula Cristina)