RIR PARA NÃO CHORAR (3-último)

 ENREDOS DA CULTURA NACIONAL 

A cultura está acima da diferença da condição social.

Confúcio

Pensador e filósofo chinês

Somos filhos de um país de cerca de 40 milhões de habitantes, entre estes 4 milhões de crianças fora do sistema escolar. É um país que, está provado, não dá importância à escola, portanto, é avesso à cultura. Um país, onde um orçamento anual ridículo, que não evolui, é prova substantiva do que se afirma. Por isso é justo que se diga que há muita aldrabice nos discursos quando se fala da cultura angolana.

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

A verdade está à vista de quem a queira ver. Para não fugir à regra, os labirintos da cultura angolana mostram casos que nos fazem rir. Por razões que me levam a trazer à cena o tema e os casos, na terceira e última narrativa da epígrafe “Rir para não chorar”. Há muito verifico anomalias. O esquisito intromete-se perigosamente, tal como nos demais sectores da vida da nossa Angola querida. Ela também, a cada dia que passa, mais estranha, surpreendente e muito mais negativa. 

Não me vou perder em casos banais ou com pretensos artistas e mestres em assuntos culturais. Vou ater-me, por isso e primeiramente, ao que dizem os merecedores de crédito, os entendidos na matéria. Afirmam que, cultura representa o património social de um grupo, duma sociedade. Cultura é a soma que essa sociedade faz de padrões dos comportamentos humanos que envolvem conhecimentos, experiências, atitudes, valores, crenças, religião, língua, conceitos de universo, entre outros. 

Entende-se pois, ser imperioso para os governantes com boa ideia da cultura, pensarem melhor nesse património de valor inestimável. Com duas coisas fundamentais a imporem-se. Gerir convenientemente e proteger essa riqueza. Depois, beneficiar as comunidades. Para que do escrutínio do seu trabalho possam resultar aplausos da população. 

Pensa-se igual em Angola. Pelo menos faz-se alarde disso. Mas é apenas nos papéis. Nas leis que se promulgam, nos discursos que se proferem em momentos solenes, nas conferências e simpósios que se realizam dentro e fora do país, nos livros que se escrevem e estudam. A realidade é diferente. Está no lado contrário do que se defende oficialmente. Há acontecimentos graves no sector da cultura de Angola, prejudiciais à causa e ao próprio país. Com casos cabeludos a passarem sob o olhar silencioso de quem manda e de quem tem obrigação de fiscalizar. Descrimina-se, apadrinha-se, valoriza-se o que é fútil e afasta-se quem pensa diferente do grupo dominante. Promove-se gente medíocre por interesses políticos, corporativos e individuais. Práticas básicas e mesquinhas, utilização de argumentos ridículos, de tal modo que me obrigam a rir para não desatar a chorar. 

A história é a base da cultura dos países. Considerada a memória dos povos, espaço onde, desde tempos remotos, a tradição oral aparece com destaque. No nosso caso, uma memória com lapsos do passado a banalizar o presente, com um desinteresse aflitivo no futuro da cultura e das artes angolanas. Uma memória preocupante pelo facto de não se vislumbrarem políticas públicas que permitam pensar numa melhoria da situação. 

A nossa história vetusta tem sido contada como repositório de cenários de miséria e de barbárie. Lembro, curiosamente, tempos bons, com bons dirigentes e melhores políticas que já tivemos. Mas aflige-me a sensação de os males que magoam hoje serem os mesmos dos tempos velhíssimos. Na história em si, e nas estórias que dela se contam, apanham-se amiúde, vestígios. Não caberia neste espaço a exposição de todos os factos que atingem transversalmente a sociedade angolana. Nos episódios, constatam-se casos astuciosos, embustes com que se enganam os cidadãos. Há, no meio das falas, mentiras que nos fazem até rir, de tão descaradas que são. 

Mas, afinal de contas, o que nos leva a falar assim da nossa cultura? Será o facto de vermos apenas coisas más? Claro que não, porque existem também coisas boas. Seria desonesto não as mencionar. O Prémio Nacional de Cultura e Artes, por exemplo. Mas será suficiente agarrarmo-nos ao Prémio, à “Cearte” e ao “Top dos mais queridos”, às feiras do livro infantil e realizações do género? À existência de Associações e das várias “Uniões”, de Artistas e Compositores, de Escritores e até de uma Academia de Letras? Essa exiguidade será o suficiente para as fantásticas capacidades e necessidades de Angola no domínio cultural? 

Passado meio século de independência, as verdadeiras escolas superiores de dança, teatro, cinema e outras artes, ficam para quando? Para quando boas salas de espectáculo? Continuará a adiar-se eternamente, a par da amaldiçoada educação, o emergir do sonhado movimento cultural que se pretende permanente, constante, abrangente, prestigiante e funcional? Fica, como resposta, não um quadro de risonhas perspectivas, mas o desenho de um anunciado e trágico futuro sem ideias que valham, representado por imagens de aproveitamentos, de pura maldade, umas, folclóricas e bizarras, outras. Enfim, estamos perante a consolidação de um quotidiano feio, pouco prestigiante, marcado por vícios e práticas merecedoras de repúdio e denúncia pública. 

Trago para exemplo, o pouco aproveitamento e o encerramento de antigas salas de cinema espalhadas pelo país. Sendo certo que o cinema no mundo foi absorvido pelos grandes centros comerciais onde se instalam hoje várias salas de projecção de filmes, a verdade é que nós vivemos um outro mundo, queiram ou não admitir o facto. Nem em Luanda, muito menos nas povoações do interior, existem shoppings espalhados nos bairros para as pessoas verem facilmente cinema. Pergunta-se então, porque não se recuperaram as salas antigas, de enorme utilidade no passado? Um erro tremendo nos primórdios da independência, mas um erro que poderia ter sido corrigido. Num país tão carente de cultura e saber, como desperdiçar a oportunidade de voltar a fazer do cinema uma escola de virtudes como sempre foi? Claro que não aproveitada por toda a população mas por parte dela (um quadro que poderia ser perfeitamente revertido).

Achem ou não absurdo, pergunto com legitimidade. Porque nunca se pensou entretanto na realização de ciclos de cinema com interesse cultural? A resposta é brutal. As salas de cinema foram todas kafrikadas nas negociatas e o povo mais necessitado não tem acesso a shoppings.

Uma foto que circulou recentemente nas redes sociais, tirada em Benguela, mostra um monumento classificado, a casa onde se realizou a primeira transmissão radiofónica em Angola. Suscitou comentários pouco abonatórios dos cidadãos. A velha casa apresenta-se num estado de degradação lamentável. Na antiga e rica região de Cambambe, Dondo e Massangano, onde se agrupam monumentos e sítios classificados verifica-se igual fenómeno. É lamentável o estado de quase desaparecimento, da famosa “varanda dos Bentes”, uma peça importante da parte histórica da velhinha cidade do Dondo. 

A pouca ou nenhuma atenção dedicada a essas relíquias culturais, faz com que os cidadãos interessados temam pela sua degradação. Outros monumentos e sítios espalhados por Angola viverão os mesmos dramas. Com as coisas a evoluírem desse modo, é natural que se reflicta sobre a matéria. Há razões de sobra para se estar preocupado, porque não se vêm indícios de serem lançadas novas bases da governança cultural e sair-se do marasmo que constitui a mesmice habitual. 

Alegações na base da falta de recursos já não colhem. Os recursos são utilizados sem regra e apenas mostram o carácter da governação que temos. Focados apenas nos seus grandes umbigos, nos seus interesses particulares. Seria de maior crédito e honestidade falar-se da falta de pessoal capaz para gerir áreas e organismos culturais. Nunca utilizar argumentos apoiados em atitudes deploráveis e de valor facial muito fraco. Assim, só estaremos a deixar cada vez mais, uma imagem de marca negativa do nosso governo, o que já não admira. 

Sustentamos, pois, a afirmação na realidade da nossa vida. Somos filhos de um país de cerca de 40 milhões de habitantes, entre estes 4 milhões de crianças fora do sistema escolar. É um país que, está provado, não dá importância à escola, portanto, é avesso à cultura. Um país, onde um orçamento anual ridículo, que não evolui, é prova substantiva do que se afirma. Por isso é justo que se diga que há muita aldrabice nos discursos quando se fala da cultura angolana.

Penso, para terminar, que já é hora de se combater, seja de que modo for, este explícito ataque ao modelo de convivência de qualquer Estado social e democrático de direito que se preze (não é o nosso caso, infelizmente). Porque sentimos que se ataca a cultura em gestos que constituem pouco menos que crime de ódio. Na verdade, tudo se ajusta para que se caia na tentação de se institucionalizar o embuste na estrutura dos organismos que fazem (des) funcionar a nossa cultura. 

Pronto, esgotei o vocabulário. Despeço-me dos estimados leitores e amigo. Voltarei no próximo domingo, à hora do matabicho.

Lisboa, 4 de Junho de 2023 

P.S.– A partir do próximo domingo, já num clima de aclamação a Viriato da Cruz, a minha coluna acolherá a prévia apresentação do meu último trabalho literário. Uma aventura mais, uma inédita fábula com nota introdutória de Luzia Moniz e ilustrações de Luísa Fresta a que a Kesongo dará tratamento editorial. Espero que vos venha a agradar.

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