Promiscuidade na premiação do Sirius

FAS (Fundo de Apoio Social) agora nas vestes de Instituto de Desenvolvimento Local, foi galardoado com o Prémio Sirius (9ª edição), categoria de Responsabilidade Social, que decorreu no dia 30 em Luanda, por via da implementação do Programa de Fortalecimento de Protecção Social, vulgo ‘Kwenda’, de acordo com argumentos do corpo de jurados, presidido por Ana Dias Lourenço, e de Belarmino Jelembi, director-geral dessa instituição. Premiação do óbvio e tida como promíscua por vários participantes.

Por Ramiro Aleixo

Eu, nunca fui com a ‘cara’ desses e de outros prémios, quer em Angola quer no estrangeiro, porque todas as vezes que recebi um convite (é mesmo esse o termo, convite e não indicação por merecimento), a condição imposta que nunca aparece em primeiro plano, foi o pagamento, antecipado, de montantes não inferiores ao equivalente a dez mil dólares ou euros, para além dos custos com bilhetes de passagem e hospedagem, quando fossem no estrangeiro, mais o acesso à gala. Declinei-os todos, e o último veio de Espanha.

O Prémio Sirius, promovido pela Deloitte será, eventualmente, a única exceção que conheço. Regra geral, a organização desses eventos, apesar do seu cariz promocional, são uma forma encapotada de exercício de actividade extra para outros bancarem o pagamento de uma acção de marketing. E por ganho extra, consolidar o seu posicionamento no mercado, porque contam com o financiamento e o comprometimento do Governo, da própria sociedade e do sector empresarial em primeira instância, que é quem paga a factura. Daí que, como se vê nesta premiação, não é por acaso que uma primeira-dama, que já foi entre vários cargos que ocupou, ministra da Economia, é integrada para presidir o corpo de jurado, tal como já foi um ministro de Estado em anos anteriores. O objectivo é, no fundo, o de passar a mensagem do envolvimento directo também da governação ao mais alto nível, numa acção privada de promoção de uma marca, que serve de certificação de qualidade, de excelência e de confiança, simbolizada num selo, como um troféu, que na verdade, vale nada em termos de certificação internacional e nem sequer para nós tem, de facto, simbolismo.

No fundo, o que acontece mesmo, é que quase todos pagam, mas apenas para que alguns façam a festa. E nesta 9ª Edição do Sirius, quem acabou mesmo por bailar e mamar que se farta e de graça, foi a governação, por supostamente fazer de forma razoável o seu trabalho ou assumir o que são seus deveres e responsabilidades sociais. Digam-nos se faz algum sentido, um departamento governamental aparecer a competir com entidades do sector privado (que não têm a mesma obrigação e acesso a recursos), no exercício do seu papel de obrigatoriedade na redução da pobreza, por via do Programa de Fortalecimento de Protecção Social, vulgo ‘Kwenda’, ou de outros, ainda que, como justificou Belarmino Jelembi, regista o “cadastramento” (vejam bem, cadastramento) de mais de um milhão de agregados familiares vulneráveis, dos quais 700 mil já beneficiaram de transferências monetárias? Mas, o dinheiro pertence a quem afinal? Saiu de que cofre ou de que reserva estratégica? Não é papel do governo, ou dessa instituição, fazer ou desempenhar bem a sua missão? Por acaso, está a fazer também um “esforço” (termo utilizado com frequência para justificar que se está a trabalhar) tão grande, fora do comum, para a redução da pobreza do seu próprio povo, o verdadeiro dono do dinheiro? O que são 700 mil agregados, num universo de cerca de 20 milhões de pobres (estimativa por baixo) de uma população que nos últimos tempos tem sido calculada em 33.097.671 habitantes, com taxa de incidência de pobreza monetária situada nos 40.6% (Inquérito de Despesas e Receitas de Angola – IDR 2018/19)?

As nossas dúvidas têm como base de sustentação também, a intervenção proferida por Ana Dias Lourenço na tal gala. Afirmou, designadamente, que “o Prémio de Responsabilidade Social foi uma das categorias com maior destaque nesta edição, por registar maior número de concorrentes, com uma ampla abrangência de empresas que actuam nas mais variadas áreas da sociedade angolana”. E o Prémio tinha logo de ser atribuído a quem não tem custos para realizar o que faz, porque o dinheiro é dos contribuintes? Não é o mesmo que pagar salário a quem “dorme à sombra da bananeira”? 

Juntar instituições do Estado – e o FAS, transformado em Instituto de Desenvolvimento Local é um departamento do Executivo – de acordo com fontes por nós auscultadas, não deveria ocorrer num prémio dessa natureza. Foi promíscuo, até porque, as instituições privadas envolvem-se nas acções de “responsabilidade social” com recursos próprios e como forma de solidariedade, quer para com as populações carenciadas, quer porque sentem necessidade de auxiliar a governação que demostra não ter capacidade para intervir em todos os casos de pobreza. Isso sim, é que deve ser exaltado.

Esses prémios não deveriam ser atribuídos à órgãos governamentais, até porque a falta de transparência nas informações sobre os diversos indicadores sociais é assustadora. De acordo com fonte que contactamos, outro estudo do Instituto Nacional de Estatística (INE) que foi lançado em 2019, o IPM-M, ou seja, o Índice de Pobreza Multidimensional por município, indica que 65 dos 164 municípios apresentam uma incidência de pobreza acima de 90%. Ou seja: pelo menos 9 em cada 10 pessoas nestes municípios são multidimensionalmente pobres. Esse quadro jamais será revertido com essa marcha lenta e acomodada do desempenho do governo, que ainda por cima se autopromove em detrimento dos seus parceiros sociais e tem dificuldade de apresentar contas. De acordo com as nossas fontes, até ao momento, o Ministério das Finanças não fornece informação sobre o Fundo Nacional de Desenvolvimento, que deveria receber anualmente 5% das receitas petrolíferas e 2% dos diamantes. Quanto disponibilizou no ano passado, considerando o aumento das receitas esperadas do petróleo? 

A nossa fonte refere que, “sendo Angola membro da Iniciativa de Transparência nas Indústrias Extrativas (ITIE), cujo objectivo é o de permitir o uso adequado e monitorável dessas receitas, para que possam contribuir para a estabilidade económica e política dos países com indústrias extractivas, esses dados são do foro público”. E isso não ocorre em Angola. Logo, não há razão para premiar quem apenas “cadastrou” mais de um milhão de agregados familiares vulneráveis, dos quais 700 mil já beneficiaram de transferências monetárias, mas não presta todas as contas. E o que faz, representa uma gota de água quando é possível fazer mais e melhor. 

Ainda sobre o Sirius, também não consegui perceber por que razão o governador do Banco Nacional de Angola, José de Lima Massano, foi distinguido, como “Gestor do Ano”. 

Ana Dias Lourenço, a presidente do júri, justificou que foi pelo seu “empenho e compromisso na condução da missão do Banco Nacional de Angola, no domínio da prossecução da estabilidade de preços na economia, bem como no âmbito do asseguramento da solidez do sistema financeiro”. Sinceramente, eu não sabia que José de Lima Massano está no governo do BNA para não fazer nada, ou para não ser competente. 

Provavelmente, nem mesmo ele se revê nesse Prémio. Mas, na sua condição e no quadro do que é a nossa realidade de subordinação (ou servilismo) mesmo quando ela não se põe, entendo que é muito difícil, desconfortável até, não alinhar num arranjo como esse. Um não mancharia o brilho e o protagonismo da primeira-dama. E nesses casos, o preço que se paga é altíssimo. Mas, houvesse bom senso e menos ego, menos vaidade e menos arrogância, Ana Dias Lourenço não se envolveria nisso. Ao fazê-lo, ainda que não seja seu propósito, pode estar a engajar o Estado e quiçá, a ajudar a falsear a verdade, enquanto alguém pisca o olho à governação, como que a enviar o recado: 

“Não se esqueçam de nós para fazer consultoria”. Essa área, é outra onde os milhões que se gastam não produzem os resultados que esperamos, porque ou a assessoria é má, ou ao assessorado falta capacidade de interpretação das propostas do consultor. E andamos sempre à roda sem conseguir sair de onde nos encontramos: próximos da falência.

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