O que têm em comum o Cafu, a NDA e a auto suficiência alimentar?

O entusiasmo à volta dos Plana´s está ancorado nos milhões acenados pelo Executivo para financiá-los. Como disse, o dinheiro é necessário mas não é suficiente. Foi anunciado agora que começarão a ser feitos estudos para a implementação do Planagrão, estudos que deveriam ter precedido a sua aprovação. O que faz pensar que o próximo ano agrícola já estará comprometido e logicamente o alcance da presumível meta adiado por um ano. É apenas o primeiro percalço.

Fernando Pacheco

O modo como a comunicação social trata assuntos da maior importância para a vida dos angolanos é revoltante e preocupante. Nas últimas semanas deixou-se a cargo das redes sociais, tratou-se mal ou simplesmente foram ignoradas várias questões que deveriam merecer melhor atenção pelo claro interesse público. Procurarei aqui tratar algumas delas, forçosamente de modo breve dada a limitação do espaço.

A propósito do recente Fórum da Indústria e do Comércio falou-se muito da possibilidade de Angola atingir a auto-suficiência alimentar num horizonte de três a cinco anos, “através” dos Planagrão, Planapecuária e Planapesca. Apesar de algumas melhorias nas abordagens, trata-se de um caminho já percorrido com programas e projectos anteriores que resultaram em fracasso. Várias críticas foram feitas por diferentes analistas, sem que a grande mídea as tivesse em conta. Pelo contrário, ampliou-se a propaganda em volta de mais uma ideia iluminada e insiste-se no absurdo da priorização do Leste. Importa, pois, tentar baixar as expectativas à volta da auto-suficiência alimentar pretendida para os próximos anos.

Pelo menos dois ministros da Agricultura fizeram promessas, nos anos dourados do petróleo em alta, de alcançar essa auto-suficiência num horizonte temporal muito curto. Falharam pelas mesmas razões que agora se vai falhar, pois para o sucesso de tal empreitada é necessário muito mais do que voluntarismo e dinheiro. É verdade que o sector agrícola tem crescido nos últimos quatro anos a uma média de 5-6% e que hoje já estamos auto-suficientes em mandioca, batata doce e banana, três produtos fundamentais para a alimentação dos angolanos, por exemplo. Mas em relação aos quatro produtos do Planagrão apenas no caso do milho, e talvez no da soja, podemos sonhar com auto-suficiência num horizonte de cinco a dez anos, e muito menos pensar em exportação, como alguns órgãos de comunicação social fizeram antever. Passar de três milhões de toneladas de milho para as seis previstas do plano em três anos é muito difícil, mas com muito esforço e sabedoria, sabedoria que tanto tem faltado por se insistir em medidas sem suporte na ciência, na experiência e na técnica, talvez, sublinho talvez, seja possível. Ainda assim, longe das necessidades actuais, que rondam as oito milhões de toneladas e que devem, logicamente, crescer. 

Veja-se agora o descaso do arroz, produto também hoje fundamental na dieta dos angolanos. A produção oficial actual é de 10,5 mil toneladas, e nunca se diz se é de arroz em casca, como sai do campo, ou descascado. Admitindo que seja descascado, isso representa pouco mais de 2% do arroz importado nos últimos anos (cerca de 488 mil toneladas). Quantos anos se passarão até se conseguir a auto-suficiência? É justo esconder isso do público com a propaganda sobre o Planagrão? 

Agora pensemos na carne de cabrito, que também tem peso na nossa dieta alimentar. O Planapecuária prevê que se atinjam mais de 300 mil toneladas anuais em 2025, contra perto de 150 mil actuais, número já de si absurdo por representar o abate anual de 15 milhões de cabritos quando as existências de animais são inferiores a cinco milhões. Nas nossas condições, não é possível obter as três crias por cabra e por ano que teoricamente podem acontecer, dadas as precárias condições de maneio por parte das famílias camponesas que detêm quase 100% dos efectivos. Se o ponto de partida está errado, a meta do plano não faz o menor sentido. 

O entusiasmo à volta dos Plana´s está ancorado nos milhões acenados pelo Executivo para financiá-los. Como disse atrás, o dinheiro é necessário mas não é suficiente. Foi anunciado agora que começarão a ser feitos estudos para a implementação do Planagrão, estudos que deveriam ter precedido a sua aprovação. O que faz pensar que o próximo ano agrícola já estará comprometido e logicamente o alcance da presumível meta adiado por um ano. É apenas o primeiro percalço.

Quando refiro que o voluntarismo e o dinheiro não são suficientes, estou a falar da realidade das nossas instituições e empresas e do nosso ambiente de negócios e do reflexo dessa realidade na vida e na economia dos agricultores familiares. Tal realidade, tantas vezes denunciada, surge agora inquestionável (apesar das insuficiências) com os números proporcionados pelo Recenseamento Agro-Pecuário e Pescas (RAPP) 2019-2020 recentemente divulgado, apesar de inscrito nos planos do Executivo desde 2013.

Eis alguns números extremamente preocupantes. Das 23 mil aldeias recenseadas, apenas 14% têm posto de saúde e 36% escola primária, com o funcionamento extremamente precário. O tempo médio para chegar a certos serviços é de 3:22 (três horas e vinte e dois minutos) para a saúde e educação, e de 6:07 para uma loja igualmente precária). Em 94% das aldeias há falta de equipamentos agrícolas, o que quer dizer enxadas e catanas, é o maior constrangimento da produção agrícola (há cerca de um ano o ministro da Agricultura revelou que numa aldeia no Bailundo os poucos possuidores de enxadas as alugavam àqueles que não as tinham). Nas três províncias mais importantes para a produção pecuária, 78,5% das aldeias na Huíla não têm acesso a serviços veterinários, 77,5% no Namibe e 76% no Cunene. Em Cabinda e no Bengo em 2 a 6,6% das aldeias a caça é uma das principais actividades de auto-abastecimento e de rendimentos.

Esta é parte da realidade agrícola do país, responsável por 86% dos alimentos que chegam ao mercado. Se pensarmos que as explorações agrícolas empresariais poderão colmatar as insuficiências identificadas, o RAPP não permite qualquer optimismo, pois das 5 858 existentes apenas 57% usam tractor, 63,3% usam fertilizantes, 32,9% beneficiam de assistência técnica e 3,7% têm acesso a crédito. Como pensar que esta realidade, pode protagonizar uma revolução agrícola em três ou cinco anos?

Há mais. A assistência técnica aos agricultores é da responsabilidade das Estações de Desenvolvimento Agrário (EDAs) existentes em cada município. Acontece que apenas nos municípios abrangidos por assistência externa (Banco Mundial, FIDA, BAD) existe capacidade humana, equipamentos e recursos financeiros para que a assistência técnica seja efectiva, estimando-se que beneficiam dela 300 mil famílias, o que representa apenas cerca de 15% das existentes (Segundo o RAPP são pouco mais de dois milhões e não os três que insistentemente eram divulgados). Assim sendo, como pensar criar e equipar mais de 400 EDAs resultantes da Nova Divisão Administrativa pretendida?

Questões desta natureza deveriam estar na agenda dos principais órgãos de comunicação social e exigir diferentes opiniões. Questões que deveriam preocupar o Presidente da República que, como afirmou Lula na última visita a Angola, deveria dedicar quotidiana atenção ao alívio da pobreza e à preservação do bem público. Doutro modo teremos problemas como os do desastre do Dubai Agrícola e agora com o canal do Cafu. Que não teria acontecido se os dirigentes e os técnicos tivessem tido em conta os saberes e experiências da população na convivência com a seca, e ouvido as vozes que alertavam para o facto de aquela intervenção não ter respeitado o simples facto de existir a chana e a secular dinâmica da água das chuvas e das cheias do rio.              

Novo Jornal, 17/2/23

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