O NACIONAL NA ROTA DO CAXINDE (2)

O texto abaixo, é, como se recordarão os habituais leitores desta coluna, a transcrição da parte final da intervenção do antropólogo, cineasta, escritor e poeta angolano RUY DUARTE DE CARVALHO, cuja primeira parte foi divulgada na semana passada. 

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Cumprindo o prometido, relembro que a Chá de Caxinde iniciava então o ciclo Conheça Angola, e essa primeira sessão realizada na Livegul (Liga da Velha Guarda de Luanda), era dedicada ao Kwanza-Sul e ao município do Libolo. Chamo novamente à atenção para a beleza e rigor da sua escrita.

“…De tal forma que muita coisa afinal se decidiu ali. A consolidação de uma certa postura cívica e política, a percepção clara e definitiva de uma certa e quase instintiva ordem de opções que eu sabia já serem as minhas, a maturação de um certo tipo de sensibilidade que haveria de conduzir-me ao exercício da escrita, a emergência continuada de um certo tipo de curiosidade e de incomodidade ética que acabaria por trazer-me à antropologia, circunstâncias todas, ao fim e ao cabo, que haveriam de determinar a minha presença hoje aqui.

Não é muito do meu agrado, porém, a não ser em privado, especular sobre as minhas experiências pessoais. Talvez então a alternativa pudesse situar-se em aludir, aquilo que, constituindo embora a experiência dos outros, acabou por determinar a minha. Falar, por exemplo, daquela configuração de ordem social com a colónia alemã de um lado, a sua distância e a sua estratificação interna; com a colónia portuguesa por outro, mercantil, sibilina e congenitamente amedrontada, igual a si mesma e visceralmente hostil a quem o não fosse; com uma administração policial, auto-suficiente e auto-promovida. De como essa configuração social acabaria por expulsar-me de Calulo, de onde saí, se não humilhado, porque estava sereno e a entender o destino, acossado, sem dúvida, isso sim, como quem parte banido e de escassa trouxa às costas. Para uns o meu crime tinha sido não fazer coro com o discurso abjecto que então se praticava, para outros, subverter o seu negócio porque a mim, nas suas lojas e até darem conta, me vendiam as botas mais baratas, por ser branco, e eu estava afinal a encobrir compras para pretos, para outros porque ao recusar executar as funções de fiscal que a minha função de funcionário exigia, desmentia e aviltava o poder. Para todos, enfim, porque mantinha relações escusas e suspeitas com aqueles que, precisamente, tinham sido os únicos a vir despedir-se de mim, quase às escondidas: amigas e amigos do Cassequel, mulatos do Mussafo, um padre da Missão, agricultores das banzas. Santa ignorância. Em nada o meu papel acrescentava o perigo que os visava.

Nunca mais voltei a Calulo depois disso. Mas é nessas alturas que a gente jura voltar. E estou aqui, agora, também para combinar convosco como é que isso há-de ser. Ali me nasceu a minha filha Eva e ali digeri a morte intempestiva do meu pai, e perdoam certamente que aluda a questões tão pessoais, mas é destas coisas que se estabelece, tece, consolida e mineraliza a nossa ligação à terra. E se era fácil separarem-me de um lugar, não era assim tão fácil arredarem-no de mim. Os anos sessenta, continuo a entende-los como um percurso de iniciação pessoal, que passa necessariamente pelo Calulo e pelo Kwanza-Sul, e o bom e o mau que ali vivi são coisas minhas que ninguém roubou.

Estou a lembrar-me que poderia ter sido a pensar em Calulo, e no fundo talvez fosse, que há tempos traduzi parte de um poema, de um poeta maldito, aliás Ezra Pound, que diz assim e eu vou ler certo de que vão desculpar este devaneio de poeta que não sabe dizer poesia:

  “O que amares com força ficará

O resto é escória.

O que amares com força não te arrancarão.

A quem pertence o mundo? A mim? A eles?

A ninguém?”

Por esta altura eu ainda não escrevia, quero dizer, nem sequer me tinha ocorrido que o exercício da palavra escrita havia de vir a ocupar um lugar relevante na minha maneira de estar vivo. Mas andava muito de jipe. Conhecias as picadas todas para as banzas todas, e havia sítios onde  tinha encontros, e provava marufos, devorava churrascos, partilhava kisakas, curtia marimbas, gritava sozinho e depois voltava à vila e encharcava-me em cerveja e urdia projectos de vingança e redenção e no dia seguinte fugia outra vez de jipe para algum lugar distante onde ainda assim houvesse alguma lavra de café para sossegar-me a culpa de não servir para aquilo, para o que o estado queria que eu servisse. Dessa tensão, estou certo, haveria mais tarde de surgir também a escrita, quando, após a saída, me achei depois sozinho no deserto, a salvo do cerco em que então me via. Não da minha experiência, mas da experiência dos outros, daqueles com que então privava quando fugia da vila, resultou numa das minhas escassas tentativas de prosador literário que de facto não sou. Está neste livro e é uma estória que se chama “Como se o Mundo não tivesse Leste”. A sua acção situa-se na Cabuta, e eu tenho muito gosto em oferecer daqui a pouco, um exemplar especialmente autografado a um membro da Associação Chá de Caxinde que seja também do Libolo. É uma peça originalmente dedicada a duas amigas minhas, que eu nunca mais vi, e esta é uma forma de reiterar a modesta homenagem que aí lhes quis fazer.

Uma das funções que então me cabiam era precisamente a de dar assistência à pequena agricultura que então se dizia indígena. Confesso que sendo ainda assim regente agrícola, nunca foi o meu forte. Nesses domínios profissionais sempre preferi a pecuária e era por isso que às vezes para os lados do Quissongo me mandava. Mas, no exercício do cargo, passei muitos dias em lavras perdidas nas dobras mais remotas das matas libolas. E aí, o que me prendia, não era a agricultura em si. Era mais estar a viver do outro lado, nos terrenos do “outro”, não como me era exigido, isto é, enquanto autoridade, mas cada vez mais interlocutor pacificamente interessado pelo seu discurso. Julgo que a experiência de tal sentimento e de tal gosto constitui em última instância o pivot da experiência etnográfica legítima. Digamos que me repugnava impor razões aos agricultores sem procurar ir tão longe quanto pudesse na apreensão das suas próprias razões. Perguntava, pois, procurava saber. E tomei-lhe o gosto…acabei por fazer-me antropólogo para saber por dentro. Para informar-me e para informar do pouco que aprendi. Ora, foi em Calulo que tudo começou e nunca me esqueci disso. Ainda hoje utilizo métodos de pesquisa que inventei ali. E quando lá voltar hei-de inquirir de novo.

Não disponho, evidentemente, de nenhum trabalho meu sobre Calulo, mas como hoje estou em dia de ofertas, vou entregar também daqui a pouco ao representante de Calulo um exemplar deste livro, na expectativa, quem sabe, de poder um dia vir a fazer coisa semelhante naquelas bandas. E já agora há uma terceira oferta. Não há duas sem três. Trata-se de uma coisa muito privada, muito secreta, e que só mesmo entre amigos. Eu nessa altura dava-me a umas veleidades de plástico (ainda não me tinham dado as de poeta…), e foi essa talvez a única experiência da minha vida que terminou logo aí, àparte umas escassas ousadias em que depois pequei. Eu nessa altura desenhava muito. Sendo a fase que era, e vivendo então o auge da minha emoção de revolta, eram sobretudo desenhos de vocação denunciatória, expressão provocatória, propiciatórias propostas. Lembrei-me, hoje de manhã, de ir à procura do que resta disso. E decidi trazer também este presente para oferecer à Associação Chá de Caxinde.

Não quero ser mais longo. Acerca de Calulo eu tenho mais que ouvir de que tenho para dizer e é muita a honra de estar aqui convosco. Mas tinha uma proposta para fazer. Se for feita uma excursão para lá ir, eu gostava também de acompanhar. Então o que eu propunha era o seguinte: que se preparasse lá e desde agora, um viveiro de café. Assim, quando a excursão lá fosse, cada um plantava um cafeeiro numa fazenda nossa, quero dizer, de um dos sócios. E dessa forma garantiríamos aqui para além da nossa idade, o que é bonito, um testemunho do nosso encontro. A proposta fica feita, agradeço a vossa atenção e a gentileza de me terem chamado, e vou passar ao acto das ofertas.”

Ao fechar esta página, cumpre-me expressar aqui a satisfação e orgulho de ter convivido de perto com gente da qualidade do Ruy Duarte. Também de ter sido o primeiro Presidente da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde. 

Nas próximas semanas voltarei a recordar realizações de trinta anos atrás. Irei lembrar sítios, e o que eles nos disseram e representaram; falarei de pessoas, e do que elas pensaram e realizaram. Nestes tempos de esquecimento impróprio que vivemos, julgo ser de todo o interesse lembrar essas coisas boas que vivemos e o convívio estabelecido com gente que nos soube transmitir conhecimento e esta vontade de viver que é muito nossa. E ainda, a forma de amar como amamos a nossa querida Angola. Despeço-me de todos, amigos, camaradas e leitores, prometendo estar de volta, no domingo próximo, à hora do matabicho.

Lisboa, 1 de Outubro de 2023

One Comment
  1. Caro Sr. Jacques,
    Acabo de ler: “O nacional na rota do Caxinde 2”. Não poderia deixar de lhe informar que “minha alma voltou ao Libolo”; voltei no tempo a uma “excursão” em julho deste 2023; ainda lá estou, “presa” àquele dia memorável. Mas, que trecho de sua sensível pena me permitiu – escrevo em “português brasileiro, logo, prefiro a próclise (kkk) – voltar ao Libolo?
    Caríssimo Sr. Jacques, hoje o senhor me permitiu “saber”, por meio de sua sensibilidade artística, acerca de uma petição, diria “profética”, de Ruy de Carvalho. Teria o senhor levado aquela petição do ilustre calulense Ruy de Carvalho ao mais velho HC, nosso estimado General Higino, que nos honrou com um dia inesquecível? (Mas, isso não precisa ser respondido). O que quero expressar é que, em julho deste ano de 2023, nós dissemos “sim” à proposta de Ruy Duarte de Carvalho relatada pelo senhor!
    Digamos, portanto, à memória de Ruy Duarte de Carvalho, presente no Universo: “Fizemos, “sim senhore”, uma memorável excursão ao Libolo! Estivemos juntos em uma fazenda dentre as mais representativas das terras do Libolo. Plantamos mudas de café. E … deixamos nossos nomes naquelas mudas plantadas. Com certeza, sua memória esteve conosco, Ilmo Ruy Duarte de Carvalho, naquele dia de julho de 2023.”
    Que memorável, sr. Jacques, ter tido um exemplo vivo por meio de sua crônica de que os “tempos” estão unidos: passado-presente-futuro.
    Grande abraço.

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