Em momento de policrise, em vez de reforçarmos capacidades, processos e sistemas que conformam instituições inclusivas – e não as extractivistas que sugam as divisas, como antessugaram o património empresarial –, aumentamos o culto de personalidade do chefe e tentamos convencer, sei lá quem, que é no chefe que reside a solução para “os problemas do povo”.
Nada indicava que o dia 25 de Abril de 1974 haveria de marcar a vida dos angolanos como nenhum outro desde os heróicos 4 de Fevereiro e 15 de Março de 1961. Na minha rotina, regressei das aulas da Chianga, onde frequentava o último ano do curso de Agronomia, e já na cidade da então Nova Lisboa fomos para casa depois do almoço no velhinho Hotel Coelho. Encontrámos à porta a colega Lizete do Valle eufórica com a notícia: havia um golpe de Estado em Portugal. Precipitamo-nos para o rádio de ondas curtas que usávamos para ouvir as emissoras proibidas, e depois de muita procura confirmámos o sucedido. A partir desse momento, tudo passou a ser diferente.
O 25 de Abril começou por ser um golpe de Estado militar que evoluiu para uma revolução popular. Não tivesse acontecido tal revolução, a transição para a independência teria sido ainda mais morosa e dolorosa. Mas acabaria por acontecer, pois era um desfecho inevitável que só a mentalidade retrógrada do regime de Salazar e Caetano não permitia perceber. A independência, descolonização no léxico português, começou de facto com o acto de revolta e com a guerra que provocou a tomada de consciência dos militares portugueses de que uma vitória militar não seria possível. Além disso, havia nas cidades e vilas angolanas um movimento inorgânico de resistência e apoio à luta de libertação que haveria de ser determinante para a supremacia do MPLA em muitos centros urbanos.
Os movimentos de libertação, todos eles, estavam em crise política e militar, como resultado da estratégia portuguesa de privilegiar a defesa da sua jóia da coroa, dadas as dificuldades militares enfrentadas na Guiné e em Moçambique.
No caso do MPLA, a operação ALCORA contra a sua guerrilha, levada a cabo no Leste com forte apoio sul africano e rodesiano, havia provocado enorme revés militar a partir do início da década de 70, que facilitou a emergência de crises políticas responsáveis também pela fragilização do movimento. A FNLA, por sua vez, não estava refeita dos efeitos do massacre de Kinkuzu, perpetrado com ajuda do exército de Mobutu, que se seguiu à rebelião de um grupo de comandantes militares de elite contra a direcção de Holden Roberto em 1972, facto confirmado recentemente pelo então dirigente do movimento e ex-deputado Makuta Nkondo. Quanto à UNITA, as suas dificuldades militares e logísticas tinham-na obrigado a estabelecer, igualmente no início dos anos 70, um acordo de colaboração com as forças portuguesas já suficientemente comprovado. Estes dados são incontornáveis para se perceber muito do que aconteceu nos longos meses que se seguiram ao 25 de Abril até à independência.
Enquanto em Portugal o povo rejubilava nas ruas com a queda do fascismo e saboreava a liberdade (só quem viveu sob ditadura entende o seu valor), em Angola o 25 de Abril entrou tarde, devagar e mal. O aparelho repressivo colonial não foi desmantelado, os presos do Tarrafal só saíram no dia 1 de Maio e os de S. Nicolau (onde se encontravam famílias inteiras de Bula Atumba presas sem processo, num total de cerca de 500 pessoas, incluindo mulheres e crianças, desde o final da década de 60, apenas pelo facto de terem familiares na guerrilha) uma semana depois. O reconhecimento do direito das colónias à independência só viria a ter lugar a 27 de Julho, depois dos acontecimentos que tiveram lugar em Luanda a partir de 11 de Julho, que provocaram mais mortes por acção das forças repressivas colonialistas. Isso permitiu, em Outubro, as assinaturas em momentos separados, de cessar-fogo entre a FNLA e o MPLA, por um lado, e o exército português por outro (a UNITA já havia assinado em Junho), e mais tarde o Acordo de Alvor para a independência a 11 de Novembro de 1975. De permeio, o início da guerra civil, a partir de Julho de 1975. Acho importante dar a conhecer aos mais jovens essa cadência dos acontecimentos.
O 25 de Abril proporcionou aos portugueses um período de vida democrática e de desenvolvimento como antes nunca tinha acontecido. A democratização do acesso à educação e o Serviço Nacional de Saúde (de que directa ou indirectamente vêm beneficiando muitos cidadãos angolanos, para nossa vergonha, e que leva muitos compatriotas a emigrarem para Portugal ou a tentarem a dupla nacionalidade) são apenas duas das muitas conquistas proporcionadas pelo Estado Social, que agora, por razões que não cabe aqui explicitar, está a ser posto em causa por gente sem escrúpulos.
Por muito que significativos segmentos de jovens se mostrem desencantados com a situação do país, o bem mais precioso que o 25 de Abril – não só, mas também – proporcionou aos angolanos foi a independência. Ainda que muitos deles, da classe média-alta, verberem contra os males que nos afligem, jamais eles teriam o nível de vida que usufruem ou as oportunidades que têm tido se, por absurdo, Angola não fosse um país independente. Estarem os angolanos contra a independência e fazerem louvores à “ordem” existente no tempo colonial é paradoxalmente comparável aos portugueses estarem contra a democracia e o Estado Social.
Angola alcançou a independência em circunstâncias trágicas. As debilidades e contradições dos movimentos de libertação, o desconhecimento pelos seus líderes das transformações pós 1961, a sabotagem económica por parte de colonos ressabiados com e temerosos pela independência, a guerra civil, a inexistência de empresários angolanos fosse de que dimensão fosse, o analfabetismo, a falta de quadros com experiência de administração e a conjuntura internacional da época, tudo isso e mais algo constituiu uma panóplia de complexidades, a que se juntaram opções políticas mal pensadas, voluntaristas e muitas vezes tomadas por influência, ou mesmo imposição, de grupos de pressão política internos e externos.
O desaire da Educação tem sido apontado como estando na origem do descalabro em que nos encontramos. Só é verdade em parte. A situação da Educação é fruto de um mal maior que a sociedade no seu todo enfrenta, e que é comum à maioria dos países africanos. Em vez de apostarmos nas instituições, optamos por depositar a nossa fé e esperança nas lideranças, como vemos aqui nos últimos tempos. Em momento de policrise, em vez de reforçarmos capacidades, processos e sistemas que conformam instituições inclusivas – e não as extractivistas que sugam as divisas, como antessugaram o património empresarial –, aumentamos o culto de personalidade do chefe e tentamos convencer, sei lá quem, que é no chefe que reside a solução para “os problemas do povo”. É nessa linha que vemos a comunicação social estrangulada, não já pelo partido no poder, mas pelo aparelho securitário alargado. A espalhafatosa encenação dos visitantes diaspóricos que viram um país de que nós, os residentes, nunca nos apercebemos, para mais num período em que as estradas do país estavam literalmente em coma “através das chuvas”, foi simplesmente patética.
Novo Jornal, 19/4/24
PS – Totalmente fantasiosa a manchete de capa do jornal O País de 17/4/24 de que a “população do centro e sul quer autarquias gradualmente”, como uma conclusão de um estudo da ADRA. Fantasia só explicável pela obstinação dos jornalistas dos media públicos em mostrar serviço. Uma questão que até já está ultrapassada. Uma tristeza!