É urgente Angola pensar a Dança como construção intelectual e transformação social
Angola precisa de decidir se quer ser uma mera espectadora da sua própria decadência cultural ou se quer abraçar a responsabilidade de ser protagonista de uma nova história de conhecimento, valorização, criação e excelência artística.

O Dia Mundial da Dança, celebrado a 29 de Abril em homenagem ao coreógrafo francês Jean-Georges Noverre (1727–1810), deveria ser, para Angola, uma ocasião de orgulho e reflexão sobre o papel transformador da dança enquanto património cultural, social e intelectual, sobre a qualidade dos seus artistas e sobre a força da actividade criativa. Contudo, o cenário actual impõe uma reflexão mais amarga. A falta de escolas especializadas competentes, a ausência de políticas públicas de apoio à criação artística e a inexistência de estudos consistentes sobre o acervo patrimonial deixam perceber a negligência com que a dança profissional é tratada pelas instituições estatais.
A dança é muito mais do que movimento: é memória colectiva, narrativa histórica, construção de pensamento crítico e expressão profunda da identidade de um povo. A prática profissional não exige apenas talento, mas também formação técnica rigorosa, investigação e espaço para a criação inovadora. O défice de um sistema de ensino artístico sólido impede a formação de artistas completos, deixando jovens talentosos à deriva, sem uma estrutura que lhes permita transformar o potencial artístico em excelência profissional, saindo para o mercado de trabalho cheios de lacunas ou sendo obrigados a procurar reconhecimento e formação fora do país.
O desmazelo em relação à dança compromete, igualmente, a formação cultural da sociedade. Quando se reduz a arte ao mero entretenimento, abdica-se do seu poder educativo, interveniente e emancipador. O entretenimento, por si só, não gera pensamento crítico, não resgata tradições e não estimula inovação; entorpece.
Neste vazio de apoio e valorização, a Companhia de Dança Contemporânea de Angola (CDC Angola), a companhia mais antiga e a única profissional do país, permanece resistindo heroicamente. Apesar das precárias condições de trabalho e dos obstáculos permanentes, tem projectado Angola para um patamar de destaque em África e no mundo. Com qualidade reconhecida internacionalmente, o seu trabalho é uma demonstração viva de que a arte pode florescer. Mas esta realidade não pode depender do sacrifício individual: a CDC Angola deveria ser apoiada, celebrada e transformada em referência para o crescimento de todo o ecossistema artístico nacional. Sem reconhecimento e financiamento adequado, corre-se o risco de que esta conquista ceda ao desgaste inevitável.
E quem fala da CDC Angola, fala do Ballet Tradicional Kilandukilu, do Grupo Yaka e dos Bismas das Acácias, igualmente desamparados, devendo estes quatro colectivos ser protegidos enquanto veteranos da dança em Angola, dado o seu tempo de existência, a persistência do seu trabalho cénico e o serviço prestado ao país.
O desenvolvimento artístico e cultural exige políticas públicas estruturantes: programas de financiamento consistentes, formação especializada, circuitos de apresentação, valorização efectiva das carreiras artísticas e documentação do património imaterial que corre o risco de desaparecer ou ser deformado pela globalização sem critérios.
Infelizmente, em Angola, discursos estéreis e gestões desinformadas continuam a determinar o rumo das artes, tratando a dança com superficialidade destacando-a apenas enquanto produto descartável de diversão. Ao contrário, ela deve imperativamente ser olhada na sua essência de linguagem de transmissão de conhecimento, de formação de novas consciências e de instrumento estratégico de educação, consciencialização e coesão social.
Celebrar o 29 de Abril, neste contexto desolador, deverá ser mais do que a hipocrisia de comemorar ou produzir eventos de calendário e infrutíferos: deverá ser denunciar e protestar. Denunciar a ausência de estratégias consistentes, denunciar a falta de compromisso com a juventude artística e protestar contra a cegueira diante do papel estruturante da dança no desenvolvimento social e intelectual.
O futuro da dança em Angola depende de uma mudança profunda de mentalidade e da intervenção de especialistas com autoridade profissional: é urgente sistematizar, formar, investir e valorizar as artes como direito fundamental e motor de transformação.
Sem este compromisso, Angola continuará a desperdiçar talentos e a perder o seu lugar no cenário artístico mundial. Mas o exemplo da nossa resiliente Companhia de Dança Contemporânea de Angola prova que os caminhos do profissionalismo, da inovação, da qualidade e da competência técnica e artística são possíveis e que a dança pode acontecer livre em todas as suas expressões. Resta saber se haverá vontade para reconhecer a dança profissional como uma necessidade vital para a construção de uma nação forte, criativa e respeitada.
Angola precisa de decidir se quer ser uma mera espectadora da sua própria decadência cultural ou se quer abraçar a responsabilidade de ser protagonista de uma nova história de conhecimento, valorização, criação e excelência artística.
Luanda, 29 de Abril de 2025
*Bailarina, Professora, Coreógrafa e Investigadora
FOTOS de Rui Tavares
