Línguas Maternas, participação (no feminino) e futuro (4)

“A participação é um dos princípios fundamentais da democracia ao lado do Pluralismo, da Representação, da Alternância, da Separação dos Poderes e das Eleições (…)” Para o Padre Raul Tati, a participação é “um direito natural” dos cidadãos, considerando que “sem participação popular não há democracia”1. 

Cesaltina Abreu*

Segundo algumas crenças africanas, Deus criou as mulheres como Guardiãs do Fogo, da Água e da Terra, reservando para si próprio a guarda do Ar. A custódia do Fogo indica a responsabilidade de disponibilizar a energia; a custódia da Água sugere a sobrevivência, a pureza e a limpeza; a custódia da Terra simboliza a dupla fertilidade: a Mulher assegura a sobrevivência das gerações actuais ao assumir o principal papel na agricultura e na preservação da fertilidade do solo, ao mesmo tempo é o garante das futuras gerações, pelo seu papel de Mãe2.

Estas responsabilidades têm marcado a vida das mulheres em África e continuam em foco numa altura em que se procuram saídas para mais uma crise mundial, a Ambiental. A doutrina da tripla custódia tem vindo a ser assumida pelas mulheres de forma isolada. O futuro do continente, em geral, e do nosso País em particular, depende de um novo equacionamento dos papéis de homens e mulheres num novo mundo global, e envolvendo a componente cultural nos processos de reinventar o futuro, para não agravar as condições das mulheres e a sua marginalização na tomada de decisões. A tripla custódia assumida pelas mulheres africanas, precisa de encontrar equivalentes modernos no processo produtivo. 

Nos países africanos, especialmente no meio rural, as mulheres desempenham uma multiplicidade de papéis: maternidade, cuidado e educação das crianças, produção de bens e serviços, cuidado da saúde da família, trabalhos domésticos, enfim, tarefas todas elas não remuneradas, logo não contabilizadas nos rendimentos das famílias, nem valorizadas na perspectiva de terem evitado uma despesa. Em consequência, qualquer agravamento da situação económica da família reflecte-se num aumento da violência doméstica contra a mulher, devido aos conflitos resultantes da distribuição dos rendimentos familiares pelas múltiplas necessidades da casa. O facto de as mulheres terem de complementar o rendimento familiar, aumenta ainda mais as pressões a que estão submetidas. 

Na África subsaariana, as mulheres produzem, beneficiam e transformam entre 60 a 80% dos alimentos básicos consumidos. Apesar de apenas cerca de 30% serem consideradas ‘produtivas’, a maioria delas tem, efectivamente um duplo dia de trabalho: no campo ou noutro local de trabalho, e nas tarefas domésticas. O “seu dia” não acaba, de facto: são mais de 15 horas/dia trabalhando dentro e fora de casa, cerca de 20 horas/semana acartando água e lenha, percorrendo longas distâncias com pesadas cargas à cabeça. As meninas ajudam as mães, em vez de irem à escola, reproduzindo o ciclo da dependência e da pobreza. 

Para alcançar os objectivos do desenvolvimento sustentável, é fundamental considerar as implicações do ‘género’ na formulação de políticas e programas, sendo para tanto necessária uma ampla compreensão da estrutura das relações mulher/homem, dos caminhos estruturalmente distintos através dos quais participam nas actividades políticas, económicas e sociais, e dos efeitos, igualmente diferenciados, dessas políticas e programas de desenvolvimento na vida real das famílias e das Mulheres. 

Sendo a democracia um modo de governação a que está subjacente a representatividade do povo, e sendo a população composta de homens e mulheres, a participação representativa deveria implicar um engajamento numericamente equilibrado e constante de mulheres e homens dessa sociedade. Mas, para isso, é preciso ‘libertar’ os períodos de tempo que as Mulheres e as Meninas dedicam a actividades domésticas, que podem, e devem, ser realizadas através de uma outra maneira de pensar e de implementar a criação e a prestação de serviços básicos à população, numa base universal e numa perspectiva de Direitos. 

Vários são os obstáculos à participação activa e equitativa das mulheres nos processos de tomada de decisão, devido acima de tudo, aos papéis sociais do género, à fraca socialização das meninas e das mulheres na vida pública (o que começa dentro de casa), a assimetria na distribuição de papéis e funções de mulheres e homens no trabalho produtivo e reprodutivo, na dificuldade de obtenção de tempos livres para as mulheres e meninas em resultado desses papéis, mas também devido ao modelo masculino da organização político-partidária, do que resulta uma diminuta mobilização de mulheres para filiação nos partidos, pouco apoio, pelos próprios partidos e pela sociedade em geral, às mulheres eleitas para cargos públicos, em resultado da prevalência da cultura machista do modelo patriarcal dominante. 

Quando se fala em igualdade de género, está a mobilizar-se um princípio democrático, ou seja, a ideia de que todos os seres humanos são livres para desenvolver as suas capacidades pessoais e fazer as suas escolhas sem limitações estabelecidas pelos papéis do género socialmente estereotipados. Para além disso, as necessidades sociais criadas/introduzidas pelos processos de modernização e de democratização na nossa sociedade, nomeadamente o surgimento de novos modelos familiares (p. ex., as famílias monoparentais), a crescente participação da mulher no mercado de trabalho (ainda que predominantemente no sector informal), e a constatação da sub-representação das mulheres nas estruturas do poder e nos processos de tomada de decisão em todos os níveis e nos diversos poderes (executivo, legislativo e judicial), colocam em causa o exercício pleno da cidadania pelas presentes e futuras gerações porque ignoram os problemas, as visões, as opiniões e contribuições de mais de metade da sua população. Acima de tudo, apontam para a necessidade urgente de renovação e inovação da organização social. 

As distintas instâncias da socialização entre homens e mulheres em que estas dimensões se reflectem – família, escola, local de trabalho, estruturas comunitárias e associativas, constituem desafios para a sociedade angolana, sendo de destacar os seguintes: 

– como enfrentar as estruturas patriarcais predominantes na família em Angola?
– como desconstruir as desigualdades de oportunidades das meninas em todos os domínios, incluindo no lazer?
– como acabar com todas as formas de opressão e de violência nos agregados?
– como reverter a situação dominante dos papéis de usuárias para as mulheres e de gestores para os homens?
– como alterar as formas de representação nas estruturas políticas formais dos distintos níveis de poder? 

Nascer menina e crescer mulher ainda constitui motivo para exclusão e marginalização numa altura em que a expectativa era a de uma sociedade justa que a luta anticolonial e a guerra após a independência pretendiam tornar possível. Apesar dos ganhos sociais do fim da guerra-civil, a prevalência de uma economia “extractivista” e a ausência de políticas ‘públicas’, que o sejam, de facto, que promovam confiança e tolerância, que criem oportunidades para a participação, aos mais diversos níveis, nos processos de tomada de decisão sobre questões de interesse público e de bem-comum, e que restituam a autoestima ao povo, tem como resultado mais visível um défice de cidadania com um acentuado viés de género em resultado de distorções históricas que retiraram da mulher o exercício da cidadania e o desenvolvimento das suas potencialidades pela simples razão de terem nascido Mulheres.

1 “Crise Africana e Processo de Democratização em África”, Pe Raúl Tati, pp 205-211
2 MAZRUI, Ali A. A mulher na economia africana. Finanças & Desenvolvimento, junho 1992. 

02 Março 2023 (Continua…) 

*Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e o Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.

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