As Línguas Maternas, a participação e o futuro (3)

Cidadania é uma ‘instituição’ que, para além da dimensão normativa, que envolve a existência, extensão e incorporação de direitos, tem uma outra dimensão, de luta social, que aponta para o ideal de uma sociedade mais justa composta de cidadãos livres.

Por Cesaltina Abreu*

Os clamores por justiça social e por democracia que vão tomando as ruas – o espaço público -, um pouco por todo o mundo, e que não encontram respostas por parte dos poderes instituídos, colocam em causa o status quo e demandam mudanças nas relações sociais e de poder. Algumas das medidas a tomar são enunciadas nas reivindicações dos grupos e movimentos sociais, nomeadamente: 

a)  abertura e diálogo entre os vários grupos sociais nos processos de tomada de decisão; 

b) dignidade e respeito pela diferença na reintegração social de grupos vulneráveis e minorias; 

c) criação de condições de segurança, de estabilidade e de progresso social numa base universal mas, acima de tudo, sustentável; 

d) melhoria dos sistemas de comunicação entre regiões e grupos sociais. 

Estas reivindicações tornam explícita a necessidade de substituição do modelo de “imposição” pela parceria, e a criação de espaços para o exercício da influência e da “força de pressão” por grupos de interesse, redes e plataformas, e movimentos sociais aos diversos níveis da organização da vida em sociedade. Isso implica que processos como a participação em decisões políticas e de escolha social sejam entendidos não apenas como “meios” mas como partes constitutivas dos “fins” a alcançar. 

Entretanto, e no tocante à “agenda ecológica” – a agenda do Futuro -, o que parece evidenciar-se nos movimentos juvenis mundo afora, é um desencanto com o “projecto da modernidade”, na perspectiva do sistema de representação política, do sistema capitalista extractivista, na exacerbação dos valores individuais que limita a acção colectiva, e na própria capacidade da ciência em evitar a cada vez mais acentuada degradação ambiental, que coloca em perigo a continuidade da vida humana na Terra. Para eles, a associação democracia liberal+conhecimento racional+economia capitalista extrativista em lugar de garantir o progresso da humanidade está a criar uma situação de impossibilidade à continuação da vida humana na Terra. 

Esta geração de jovens não tem mais a perspectiva que o futuro seja melhor do que o passado, como nos habituamos a pensar, e como o próprio sentido da palavra “progresso” indica. Contestam a autoridade dos adultos porque ela se mostra desinteressada, ou mesmo incapaz, de tomar as decisões necessárias para evitar a continuação da degradação do ambiente, a perda da biodiversidade, o aumento da poluição, o surgimento cada vez mais frequente e com efeitos mais devastadores de pandemias provocadas pelos desequilíbrios em consequência da acção humana.

Reivindicam formas inclusivas de organização dos interesses presentes nas sociedades, mas acima de tudo, o seu direito a serem agentes do seu Futuro, considerando a aparente ‘cegueira’ que os adultos parecem demonstrar, apesar dos sinais cada vez mais frequentes e alarmantes da natureza, indicando que algo vai mal. Eles querem ser considerados e incluídos nos debates públicos dos processos de tomada de decisão sobre a Agenda Pública. Mas uma Agenda pública que incorpore as suas preocupações em relação ao futuro no qual, hoje, não acreditam como “possível” porque, na verdade, consideram que os adultos “falharam” e não têm condições para reverter a situação que eles próprios criaram, porque não desenvolveram capacidades criativas e inovadoras para buscar outros caminhos. E isso, não apenas devido ao regime de conhecimento racional, mas também devido à incapacidade de pensar para além de si, de sentir e demonstrar empatia. 

Estes jovens não lutam mais por uma cidadania atribuída, passiva e estática, do modelo republicano, racional e liberal. Percebem-se três sentidos para a Cidadania que reivindicam para si no século XXI: 

. Passar da condição estática, passiva, de conteúdo atribuído, definitivo, constitucional, para uma cidadania políticamente activa, em constante construção de conteúdos e estratégias de reforço e de afirmação; 

2º. “Pular” do conceito teórico da ciência política para as dimensões relacionadas com a extensão interdisciplinar e holística dos direitos humanos e civis; 

3º. Mudar da percepção individual para construções colectivas e plurais de grupos, associações e movimentos sociais, do direito à participação nos processos de tomada de decisão, de serem ouvidos, de serem parte, operacionalizando os chamados direitos de 3ª geração (autodeterminação, paz, ambiente saudável, ou seja, os direitos cujos titulares são colectividades), e os de 4ª geração – inclusão digital e bioética – que dizem respeito a todos, à humanidade em geral, mas que precisam ancorar-se em acções / opções / posições individuais. 

Estas reivindicações obrigam a repensar a cidadania não apenas na óptica normativa, em resultado da luta de indivíduos ou grupos excluídos, pela extensão dos direitos existentes ou por incorporação de novos direitos, mas, sobretudo, na perspectiva de que, se existe esse sentimento de exclusão, é sinal que o conteúdo de cidadania ainda não foi esgotado e que existe um ideal de cidadania nas mentes dos indivíduos e grupos sociais, pelo qual eles acham que vale a pena lutar. Isto significa que cidadania é uma ‘instituição’ que, para além da dimensão normativa, que envolve a existência, extensão e incorporação de direitos, tem uma outra dimensão, de luta social, que aponta para o ideal de uma sociedade mais justa composta de cidadãos livres. 

Os caminhos que conduzem a esse ideal estão em cada um de nós, no nosso entorno, no nosso grupo, na nossa comunidade. A passagem do plano das ideias para o das acções exige que o debate seja aberto na sociedade, cabendo também aos intelectuais e aos ‘espaços’ nos quais se encontram, trabalham e vivem, o papel muito especial de ‘promover’ o processo sem pretender conduzi-lo. As universidades devem proteger a liberdade de expressão, e têm o dever moral de não guardar silêncio em relação aos discursos não respeitáveis, denunciando-os e fomentando uma discussão intelectual rigorosa, franca, aberta e intensa, dentro e fora das aulas. As sociedades e comunidades multiculturais que representem a liberdade e a igualdade de todos deverão assentar no respeito mútuo pelas diferenças intelectuais, políticas e culturais. 

01 Março 2023 (Continua…)

*Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e o Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.

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