Temos de ser conscientes e responsáveis e assumir que, nem sabemos se as Forças Armadas Angolanas, estariam em condições neste preciso momento, para combater um exército invasor forte.
Acordamos hoje sobressaltados, com a notícia e imagens que dão conta da entrada dos rebeldes do M23 na cidade de Goma, na República Democrática do Condo (RDC), que faz fronteira com o pequeno Ruanda. O regime ruandês é acusado de apoiar os rebeldes do M23, pelo Presidente daquele país vizinho, Félix Tschisekedi.
Segundo o Presidente Tschisekedi, o Ruanda teria provavelmente interesse em explorar recursos minerais da RDC e quiçá, anexar algumas terras férteis a esse país. A RDC é o segundo país mais extenso em África depois da Argélia, (Angola é sétimo). A RDC é também considerado o país mais rico do mundo em termos de potencialidade de recursos mineiros e a sua destabilização, afecta Angola, país vizinho. Por isso, recordei-me do Arquiteto da Paz, o Presidente José Eduardo dos Santos (JES), que tanto lutou pela manutenção da paz regional, reconciliando não apenas internamente os irmãos angolanos, mas também os vizinhos a norte, sul e a leste de Angola.
O M23, (23 de Março, ou Movimento Revolucionário Congolês), é constituído por um grupo militar rebelde de etnia tutsi, que opera principalmente nas áreas de Kivu do Norte, encobertos pela densa floresta. O M23 esteve sem actuar durante vários anos e ressurgiu em 2021, a pretexto de defender os interesses dos tutsis beleza, nascidos em território da RDC.
Diante destes acontecimentos, tristes para toda a África e para nós particularmente, voltei a fazer uma viagem ao passado, onde, inevitavelmente, o Presidente José Eduardo dos Santos, é grande referência. Quer queiramos ou não, foi indiscutivelmente um diplomata nato, de trato fino, um humanista, um estratega, o arquiteto da paz efectiva, comprovada pela comunidade internacional. Com a sua discrição, suportou pressões externas e internas no interior do seu partido e a nível do seu lar, para manter a paz, não apenas para Angola, mas para toda África Austral e Central.
Quer o Conselho de Segurança da ONU, que interrompeu a sua sessão para o homenagear com um minuto de silêncio, a data da sua morte, quer a Administração Americana, quer os restantes países do G5 que comandam o mundo e não só, o reconheceram nas suas mensagens oficiais de condolências.
Nem as acusações de corrupção encomendadas pelos seus próprios camaradas de partido, que enquanto governou o bajulavam e convidaram membros da sua família para trabalhar, visando obter o seu apoio político, foram provadas. Até à presente data, ninguém provou que JES roubou. Há sim, a única certeza: que os seus então colegas no Bureau Político, aprovaram o seu próprio empoderamento, assim como de outros peões escolhidos da sua confiança pessoal e de alguns elementos da oposição. Copiaram o modelo “black empowerment”, do governo de Nelson Mandela, na África do Sul, e, assim nasceu a denominada Lei do Fomento Empresarial.
Se algum dos seus camaradas de partido, ex subordinado, ou empresário tem algo escondido que prova ser dele, ou tem em seu poder algo que lhe pertencia, estão trata-se gente duplamente ladra e muito mais perigosa do que se pensa.
Recordo-me com clareza de todas as críticas directas que JES sofreu, quando o acordo de Bagdolite, em 1989, fracassou e ainda por cima foi para lá sem dar conhecimento. Na Assembleia Nacional, onde também estavam como convidados vários militares, alguns dos mais jovens insurgiram-se conta ele, falaram em tom de voz alterado e ninguém foi preso por isso. Um deles, foi o meu amigo, comandante Gaspar de Almeida (eu estava lá a acompanhá-lo). Só quem participou na missão sabia ( nem o tradutor sabia ao que ia). A pessoa, que está viva, pensado que eu também sabia, descaiu-se e por isso, na noite anterior a partida, antes do jantar, pedi-lhe que não fosse, mas ele foi. Nem dizendo-lhe que Savimbi era um psicopata assassino, e lembrando-lhe que Mobutu perseguiu os militantes do MPLA, que tiveram que fugir desse país (os que ficaram não eram activos no MPLA, ou eram da FNLA, não obstante apregoem o contrário).
Honra e glória aos nossos militares tombados pela pátria, para conseguir e consolidar essa paz além fronteiras, que grassou no nosso país durante cerca de 28 anos. O Presidente Neto foi quem criou o slogan “No Zimbábue, na Namíbia e na África do Sul está a continuação da nossa luta”, mas ele só governou escassos 3 anos e 10 meses e permitiu uma chacina na sequência do “27 de Maio” de 1977, que só o Presidente José Eduardo estancou. Ele aguentou todas as críticas dos seus colegas do partido, por ter enquadrado no Executivo vários presos políticos acusados de terem participado nessa intentona.
Aos mais jovens e as gerações vindouras, não se deve fazer esquecer, que o Presidente José Eduardo dos Santos governou com guerra os restantes 24 anos, e que durante esse período, era impossível realizar eleições. Porém, hoje, ingratos há no seu próprio partido, que o acusa de ter ficado no poder tantos anos, porque era agarrado ao poder. O Presidente da Região Autônoma da Ilha da Madeira, João Jardim, governou exactamente 37 anos e nesse arquipélago europeu que faz parte do território de Portugal, nunca houve guerra.
Nada para JES foi fácil, desde que disse num discurso pronunciado na Praça da Independência, no dia 1 de Maio de 1980, que os membros do partido que estavam no Governo não tinham os conhecimentos necessários, que deveriam ser todos transferidos para o partido, e que para o Governo deveriam ser nomeados quem tivesse capacidade técnica para tal, fossem ou não militantes do MPLA. E assim o fez.
Esse posicionamento despertou sobre si uma fúria dos seus colegas do partido e dos ex colegas das FAPLA. O “Grupo dos Catetes” liderado por Mendes de Carvalho, encomendou um discurso ao comandante Paiva da Silva, (herói do 4 de Fevereiro), que disse que, “O Presidente José Eduardo dos Santos não pode tirar nem uma vírgula, ao que o Presidente Neto disse”. Um grupo de comandantes das FAPLA, tendo como porta-voz o comandante Zacarias José Pinto (Bolingó), depois de uns “copos”, pediu-me para eu dar o recado a JES, que ele e o comandante Pedro de Castro Van-Dúnem (Loy) formaram-se (licenciatura), porque vieram de Luanda como meninos de Liceu e foram mandados estudar, mas foi a eles (iliterados) que Agostinho Neto mandou lutar.
Recordo-me muito bem, quando a 23 de Agosto de 1981, estávamos na Coreia, provenientes da ex URSS, JES recebeu a comunicação de que os sul-africanos tinham irrompido pela nossa fronteira (Operação Proteia), trazendo consigo tropas da UNITA, supostamente para ocupar e administrar a província do Cunene, e destruir as linhas de apoio logístico da SWAPO, que estavam nessa região. Eu entrei em pânico e ele, como sempre, mantendo o tom sereno de voz que nunca alterava, disse-me: – “Temos de ter coragem e determinação, para acabar com essa maldita guerra, mas só com a libertação dos nossos vizinhos e irmãos”.
Segundo fontes militares sul-africanas, a invasão de 1981, denominada de “Operação Proteia”, foi delineada por Washington e Pretória e estendeu-se até ao mês de Março de 1988, (período em que o exército sul-africano ocupou uma área de 34.320 km2 do Cunene, numa profundidade de 88 km, entre a fronteira sul e o Môngua. (Ivair Santos, 23 de Agosto de 2023, portalafro.com.br.).
José Eduardo lamentava o facto, de alguns dos Chefes de Estado dos Países da Linha da Frente e dos PALOP contradizerem-se, nalgumas acções práticas. No caso de Moçambique, por exemplo, vendiam parte do combustível que recebiam de Angola ao país vizinho, ainda durante o regime do Apartheid. Cabo Verde, abastecia aviões desse país, com o combustível fornecido por Angola. No caso dos Presidentes da Linha da Frente, prefiro limitar-me a referir, que JES regressava no mesmo dia, quando participasse em reuniões. No dia do acidente de aviação que matou o Presente Samora Machel, ele regressou a casa cedo e durante o jantar disse, que era muito estanho, ver a mesa do Presidente da Zâmbia servida só com vinhos “Made in South Africa” em período de embargo a esse país, quando essas reuniões eram precisamente, para encontrar estratégias para lutar contra a África do Sul.
Estamos todos recordados das críticas de que JES foi alvo (eu incluída), quando tomou a decisão de enviar militares angolanos para a RDC, (perdi lá um primo na flor da idade), para rechaçar exactamente os grupos rebeldes naquele país, que segundo Kate Hairsine da DW, de 22/02/2024, tem cerca de 14 grupos armados estrangeiros e 250 grupos armados locais, que se dedicam essencialmente ao garimpo.
Porém, o problema hoje é que, não obstante os Órgãos de Defesa e Segurança sejam privilegiados com uma boa fatia do OGE, em termos práticos, quer os militares quer os paramilitares que tratam da segurança e da ordem pública, andam um pouco à deriva, possivelmente por falta de organização e descentralização de verbas, ou por necessidade de melhores chefias. Quer grande parte dos militares, quer a maioria dos efectivos da Polícia Nacional, andam com fardas gastas, magros, alguns quase esqueléticos, os policiais chegam a apanhar tareia dos cidadãos, inclusivé das zungueiras, aplaudidos pela população faminta, num total desrespeito à autoridade. Já tive a oportunidade de conversar com vários militares e policiais, que confidenciaram, que nem treino militar de manutenção têm tido. Alguns têm formatura uma vez por semana. Seriam esses desgraçados, com salários miseráveis, que muitas vezes reclamam que se atrasam, que iriam ajudar a defender os nossos vizinhos?
Temos de ser conscientes e responsáveis e assumir que, nem sabemos se as Forças Armadas Angolanas, estariam em condições neste preciso momento, para combater um exército invasor forte. Nem que fosse com as “60” toneladas de explosivos, referidos recentemente pelos órgãos oficiais de comunicação social.
Não só em África, José Eduardo dos Santos será para todo o sempre o Arquitecto da Paz, por isso a maioria da população deste país nunca o esquecerá como “O Patriota”, como queria ser lembrado. Foi ele que não teve medo de “arregaçar as mangas” e reconstruir um país a partir dos escombros, numa altura em que só a China nos estendeu a mão, transformando-o num canteiro de obras, que continuam a ser reinauguradas. Por favor, algum sulano corrija-me este frase, que não sei escrever, mas sei pronunciar. “Ndissumbili a me ndukulu” (Respeitem-me. Sou mais velha).
28.01.2024