Em busca de inspirações para um Pacto de Compromisso com o Futuro (1)

Na procura dos caminhos, desejavelmente novos, para a construção de um Futuro para todos nós, que não deixe ninguém de fora nem para trás, inspiro-me em líderes africanos como Amílcar Cabral (2), Nelson Mandela (3) e Thomas Sankara (4), pela coragem em enfrentar o status quo e propor novas formas de pensar, estar e ser, em África e, a partir da África, na e com a Humanidade, e no Ubuntu (5). 

Por Cesaltina Abreu* 

Um Pacto de Compromisso com o Futuro, como o que temos vindo a defender como necessário para Angola, pode entender-se como um processo de amplos debates centrados na construção social e inclusiva da Nação e com orientações, estratégicos e compromissos imediatos, constituindo-se numa carta de referência para todos os angolanos e seus parceiros. Concebido e implementado, em geral, numa lógica de ‘geometria variável’, visaria alcançar entendimentos e acordos, os mais amplos possível, e a coordenação de esforços para o desenvolvimento sustentável de Angola. 

Reconhecendo humildemente as suas raízes africanas, Angola poderia começar por virar-se para si, para dentro, e para o continente. Deveria recordar-se que, em 2020 – 13 anos após a sua adopção -, ractificou a Carta Africana da Democracia, das Eleições e da Governação, adoptada em Addis Abeba, Etiópia, em 30 de Janeiro de 2007 (6). Esta Carta, inspirada nos princípios da UA, sobretudo no que se refere à governação, à participação popular e aos direitos humanos (arts. 3 e 4), afirma o compromisso dos Chefes de Estado africanos com a democracia, o estado de direito, a paz, a segurança e o desenvolvimento, bem como com a transparência, a responsabilização e a democracia participativa. 

Esta Carta constitui um marco histórico – em potencial – porque, pela primeira vez após mais de quatro décadas de independência, os Chefes dos Estados Africanos subscreveram um documento que afirma o quão crucial é a democracia participativa para a (boa) governação e a cidadania. E isto é tão mais importante quanto, no âmbito do Sistema Africano de Direitos Humanos, os regimes democráticos não haviam sido, até então, mencionados como pré-condição para os direitos humanos, a cidadania e o estado de direito. A longa ausência de referências explícitas à importância da democracia não ajudou as lutas contra as persistentes violações dos direitos humanos em termos de vida privada e familiar, de marginalização, de exclusão, de segregação, de pobreza, de perseguições políticas e de falta de liberdade. E de falta de participação. 

Contudo, o alcance real e a potencial contribuição desta Carta são, até agora, bastante limitados. Um sinal óbvio da incapacidade da Carta para promover mudanças estruturais é o número de assinaturas ractificadas (7)

O baixo nível de engajamento na Carta Africana sobre Democracia, Eleições e Governanção não pode obscurecer o dinamismo das demandas de baixo para cima e as estratégias organizadas para abrir novos espaços de participação popular em que as forças civis, e actores políticos não-formais, assumem a liderança. Em África, essas comissões geralmente assumem o formato de Conferências Nacionais que reúnem / congregam forças cívicas em grandes coalisões.

Estas conferências são inspiradas por orgãos e práticas africanas de deliberação pública. A prática de reunir tantas pessoas de tão diferentes regiões, grupos étnicos, estratos sociais, está intimamente associada aos princípios da filosofia africana, nomeadamente o Ubuntu, considerado por Kizerbo como um “tesouro inestimável (…) o dom mais precioso que a África tem para oferecer ao mundo, um dom que pode ser convertido em capital” (8)

As conferências também representam alternativas aos típicos arranjos institucionais de cima para baixo (top-down), para lidar com problemas arraigados, tais como a intolerância, a corrupção, a injustiça, a impunidade, entre outros. Nessa perspectiva, através das Conferências Nacionais, a sociedade civil tem-se empenhado em diálogos para superar a dinâmica de conflito introduzida pelo colonialismo e reproduzida em muitas sociedades pós-coloniais. De alguma maneira, elas recuperam e actualizam os desafios que inspiraram as lutas anticoloniais. As suas contribuições são igualmente fundamentais uma vez que complementam os procedimentos democráticos formais, tais como as revisões constitucionais e as eleições, para o reforço da vida democrática (9)

As Conferências Nacionais apresentam um muito necessário espírito de inclusão, de colaboração e de reconciliação, lançando as bases para a construção da nação – uma promessa que não foi alcançada pela maioria dos estados africanos e que continua sendo um dos maiores desafios em termos de paz e de progresso social. Vale lembrar que os princípios e os valores organizadores (e mobilizadores) das lutas de libertação, eram: liberdade, humanização e universalidade. Em que momento, se perdeu essa ideia da universalidade que orientou as lutas de libertação contra a dominação ccolonial? Porque essa ideia de universalidade criava as bases, juntamente com os princípios de liberdade e de humanização, para corrigir distorções produzidas pela dominação colonial, pelo esclavagismo e pelo apartheid (embora não oficial em Angola), criando as condições e as oportunidades para sociedades inclusivas, igualitárias e socialmente justas (10)

Pode relacionar-se a ideia de unir o maior número possível de pessoas, das diferentes regiões, etnias, religiões, estratos sociais e outros tipos de pertença, ao humanismo africano, o Ubuntu, considerado por Kizerbo (11) como um “Tesouro inestimável (…) o presente mais precioso que a África tem para oferecer ao mundo, um presente que pode ser convertido em capital”. 

Nesta perspectiva de sempre ser possível construir e actualizar o quadro de referências da vida em sociedade, importa lembrar que, como alternativa ao ‘fim da história’ (12), António Negri defende a modernidade do poder constituinte, a qual nenhuma dinâmica de acumulação conseguirá aprisionar, e destaca o papel da multidão em fazer história (res gestae). O poder constituinte é, em sua opinião, um dispositivo genealógico geral das determinações sociopolíticas que formam o horizonte da história do ser humano, com o poder de instaurar um novo ordenamento jurídico e, com isso, regular as relações jurídicas no seio de uma nova comunidade. O poder constituinte é omnipotente e expansivo, e o seu carácter é, simultaneamente, espacial e ilimitado temporalmente. A ideia contida no conceito de poder constituinte é a de que o passado não explica mais o presente, apenas o futuro o fará (13)

A preocupação de Negri reside na dificuldade em compatibilizar poder constituinte e constituição de maneira a não retirar o potencial emancipatório do primeiro. Por isso, e no que respeita aos problemas jurídicos que decorrem da transformação de poder constituinte em poder constituído, ele considera que a questão é descobrir como controlar a irredutibilidade do facto constituinte, dos seus efeitos e dos valores que exprime; ou seja, como “encerrar” o poder constituinte num sistema jurídico. Mas também é preciso considerar a importância do conceito de representação, porque este conceito coloca a possibilidade de existência de um outro lado na crise actual do conceito de poder constituinte, que não se manifesta apenas no difícil relacionamento entre poder constituinte e soberania nas escolas jurídica e constitucionalista, mas também na sua relação com o conceito de representação: é aqui que se opera a primeira desnaturalização, retirando a potência do poder constituinte. Por isso, Negri defende, como ponto de partida, a aceitação do conceito de poder constituinte como um procedimento absoluto, omnipotente e expansivo, ilimitado e inconcluso. Em seu entender, é fundamental manter em aberto o que o pensamento jurídico tenta fechar, para que o conceito se constitua na matriz do pensamento e da práxis democrática (14)

Esta perspectiva de ‘poder constituinte em processo’ permite estabelecer uma articulação com o Ubuntu, a “Humanidade”, um processo igualmente em aberto, em constante desenvolvimento – que se contrapõe ao “Humanismo”, enquanto condição de finalidade, da racionalidade ocidental -, onde a tensão dialéctica entre o “eu” e o “nós” constitui o cerne, o motor da transformação da sociedade. Nesta ideia de Humanidade em construção, em actividade constante, assentaria a construção de intersubjectividades colectivas em sociedades multinacionais/culturais, reduzindo tensões e conflitualidades e permitindo o alcance de amplos compromissos colectivos. 

Ubuntu enquanto Filosofia, Ética Social e Modo de Vida baseado no Respeito pelo Outro, representa um dos principais deslocamentos teóricos e práticos da racionalidade do continente africano em relação ao olhar ocidental hegemónico. “Com o Ubuntu operou-se a mudança da concepção da identidade a partir do ‘eu sou porque tu não és’ (concepção excludente) para o ‘eu sou porque nós somos, e dado que somos então eu sou’ (concepção includente)” (15). Por outro lado, conforme afirma o teólogo congolês e doutor em Sociologia Bas’Ilele Malomalo “Ubuntu e felicidade são conceitos que andam juntos: na África, a felicidade é concebida como aquilo que faz bem a toda coletividade ou ao outro” (16)

Os seus três postulados ontológicos são:

  1. Todas as pessoas são valiosas em si mesmas, pelo que ninguém pode ser considerado inútil, ou descartável, na sociedade;
  2. Se todas as pessoas são valiosas em si mesmas, todas são sujeitos, ou seja, agentes na sociedade em que vivem;
  3. No Ubuntu, os sujeitos são ‘sujeitos’ pela relação intrínseca e fundamental que têm uns com os outros, que produz uma intersubjectividade inerente e constitutiva das pessoas. 

Por isso, o Ubuntu pode contribuir para Reinventar a Política, Organizar a Economia, e Recriar a Vida em Sociedade, orientando: 

➢    a Política participativa pela União e o Bem-Público;

➢ a Economia Solidária pela cooperação;

➢ a Sociedade inclusiva pelo Bem-Comum e a Solidariedade;

➢ a Liderança Colectiva em todos os domínios da vida. 

A ideia é buscar na tradição soluções para arranjos institucionais alternativos para a resolução pacífica de diferenças arraigadas ou para a busca de consensos, ainda que parciais, permitindo cumprir as promessas dos processos emancipatórios das lutas anticoloniais. Entre os objectivos principais, estão as revisões constitucionais formais e as eleições multipartidárias de pleno direito, buscando o fortalecimento dos processos democráticos e a construção de sociedades cívicas (Decalo, p.21) (17)

Inclusão, colaboração e espírito de conciliação lançam as bases para a construção da nação, uma promessa que também não foi alcançada pela maioria dos Estados africanos, e que continua sendo um dos seus maiores desafios – e ameaça -, à paz e ao progresso social. Isso porque o processo de (re)conciliação cria um ambiente propício ao perdão, para além de viabilizar a negociação de um passado em que todos se reconhecem, permitindo, assim, a projeção de um futuro comum, para todos18 (Abreu, 2011). 

Bibliografia de suporte

(1) Composição a partir de “Angola 2021, Constituição sem Poder Constituinte … de novo?”, Cesaltina Abreu, 2021, elaborado a partir da minha comunicação à sessão organizada pelo CLUBE DAS JURISTAS sobre o tema REVISÃO CONSTITUCIONAL E GARANTIA DA CONSTITUIÇÃO. Luanda, 31 de Março de 2021. Neste texto são usadas as seguintes abreviaturas: PR-Presidente da República, CRA 2010-Constituição da República de Angola 2010; AN – Assembleia Nacional; UA-União Africana;

(2) VOA, 22 Janeiro 2015, ‘Pensar pelas nossas cabeças é um dos grandes legados de Amílcar Cabral’, diz, Iva Cabral;

(3) Nelson Mandela Devemos promover a coragem onde há medo, promover o acordo onde existe conflito, e inspirar esperança onde há desespero. No seu aniversário de 89 anos (20) https://www.pensador.com/frase/NTcwMzA0;

(4) Thomas Sankara “Produzir em África, transformar em África e consumir em África”, discurso “Uma Frente Unida Contra a Dívida”, na 25.ª Conferência da Cimeira dos Países Membros da Organização de Unidade Africana (hoje União Africana), 29 de Julho, de 1987;

(5) Entre outros, KI-ZERBO, Joseph. About Culture. Foundation for History and Endogenous Development in Africa, Ouagadougou, 2010;

(6) A Assembleia Nacional de Angola aprovou para ractificação em 20 Novembro 2019, decisão que entrou em vigor através da Resolução No3/20 de 2 de Janeiro de 2020;

(7) Até meados de 2014, apenas 22 dos 54 países assinaram e ractificaram a Carta, entre os quais Burkina Faso, Etiópia, Ghana, Guiné, Lesotho, Mauritânia, Ruanda, Serra Leoa, África do Sul e Zâmbia;

(8) KI-ZERBO, Joseph. About Culture. Foundation for History and Endogenous Development in Africa, Ouagadougou, 2010, p.105;

(9) DECALO, Samuel (1991), The Process, Prospects and Constraints of Democratization in Africa. African Affairs, Vol. 91, No. 362, [7-35], p.21. 

(10) ABREU, Cesaltina, Sociedade Civil em Angola: da realidade à utopia. Tese de Doutoramento apresentada no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro, Brasil. 17 Março 2006. Também em Abreu, Cesaltina (2011), “Civil society and the construction of a social memory in Angola: in search of (re)organization of life in Angola”, comunicação à Conferência “THE STUDY OF ANGOLA: Towards a New Research Agenda”, organizada pelo St. Peter’s College, Oxford University, July, 1-2, 2011;

(11) KI-ZERBO, Joseph. About Culture. Foundation for History and Endogenous Development in Africa, Ouagadougou, 2010, p. 105;

(12) The End of History and the Last Man é um livro publicado em 1992 por Francis Fukuyama, expandindo o seu artigo “The End of History?”, publicado no jornal de política internacional The National Interest, Summer, 1989; 

(13) ABREU, Cesaltina. “Entre força imanente e ordem transcendente: os embates entre democracia e constitucionalismo liberal. O Poder Constituinte de Negri”. Apresentação (em páginas) para fins educativos do livro O Poder Constituinte de António Negri, entregue para publicação;

(14) Idem;

(15) KASHINDI, Jean Bosco Kakozi. Entrevista a Ricardo Machado para o Opera Mundi, 25 Novembro 2015. Disponível em http://reflexoimperativo.blogspot.com/2015/12/ubuntu- filosofia-africana-confronta.html;

(16) MALOMALO, Bas’Ilele. entrevista a Moisés Sbardelotto para o IHU On-Line, EDIÇÃO 353 | 06 DEZEMBRO 2010. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/3691- bas%E2%80%99ilele-malomalo;

(17) DECALO, Samuel (1991), “The Process, Prospects and Constraints of Democratization in Africa”. African Affairs, Vol. 91, No. 362, [7-35];

(18) ABREU, Cesaltina. “Em busca da (re)organização da vida em Angola”. Comunicação ao I Colóquio da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, Luanda, 25 e 26 de Outubro de 2011. 

Sobre a autora:

*Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.

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