Eleições gerais. João Lourenço não tem legitimidade para governar

Comentário Jurídico (10)

Lazarino Poulson*

“A legitimidade de um Governo depende da aceitação da maioria da população e não dos veredictos formais  de instituições públicas e estaduais. Tem legitimidade o Presidente da República “Reeleito”, João Lourenço para governar Angola nos próximos cinco anos”?

Esta é, desde logo, a pergunta mais cara de responder no momento – talvez seja a tal pergunta “de um milhão de dólares americanos”.

Vamos, hic et nunc, escalpelizar, telegraficamente, traços essenciais das teorias à volta do termo “legitimidade” para, no fim, darmos resposta à inquietação apresentada. 

1. Conceito 

Legitimidade é uma palavra usada em Teoria Geral do Direito, em Ciência Política e em Filosofia Política,que define a qualidade de uma norma (Teoria Geral do Direito) ou de um governo (Teoria Geral do Estado) ser conforme a um mandato legal, à  Justiça, à Razão  ou a qualquer outro mandato ético-legal. No fundo, a legitimidade é o critério utilizado para se verificar se determinada norma se ajusta ao sistema jurídico ao qual se alega que esta faz parte. 

Em Ciência Política é a ideia com a qual se julga a capacidade de um determinado poder para conseguir obediência sem necessidade de recorrem à coerção, que se supõe a ameaça da força, de tal forma que um governo é legítimo se existe um consenso entre os membros da comunidade política para aceitar a autoridade vigente. 

2. Diferença entre Legitimidade e Legalidade 

Em Teoria do Direito, especialmente em sua linguagem, existe certa confusão entre os termos legitimidade e legalidade. Ambos são utilizados para determinar a conformidade de determinadas actividades com normas vigentes do ordenamento jurídico. Pese embora isso, pode-se diferenciá-los na medida em que o primeiro se relaciona com o critério que possibilita ao executivo  afirmar que está conforme a lei, e, portanto, poder criar aquela obrigação aos outros. Neste sentido, a legalidade torna-se pressuposto da legitimidade, uma vez que é necessário que o executivo esteja a realizar as actividades conforme a lei para que se possa verificar a existência da legitimidade.

A ideia de legitimidade teve destaque  nos estudos do célebre sociólogo alemão Max Weber. 

O trabalho de Weber para analisar legitimidade, deve ser tomado como a procura para responder a clássica questão de “qual a última razão pela qual, em toda a sociedade estável e organizada, há governantes e governados; e a relação entre uns e outros se estabelece como uma relação entre o direito, por parte dos primeiros, de comandar, e o dever, por partes dos segundos de obedecer”.

A ideia de legitimidade de Weber teria o objectivo  de diferenciar os tipos puros de dominação. Sob esta lógica, este concebe tal termo como “a probabilidade de uma dominação ser tratada praticamente como tal e mantida em proporção importante”.

3. Tipos de Legitimidade

De acordo com a teoria Weberiana, haveria três possíveis fundamentos para a legitimidade da dominação política: crença na tradição, fundamento carismático e fundamento racional baseado na legalidade. O último seria o que justificaria a dominação do direito nos estados modernos.

Na perspectiva da dominação pelo direito positivo, seria a crença na legalidade – esta, por sua vez, vinculada ao procedimento de produção e modificação do direito – que justificaria esta dominação. Nas palavras de Cella (…) Portanto, em última análise, a pedra fundamental da legitimidade do edifício jurídico moderno, no pensamento weberiano, passa a ser a crença em um determinado procedimento que permita a identificação do direito”.

Assim, Weber justifica o direito como área autônoma, devido ao fatcto de que é o próprio quem estabelece as regras que justificam a sua existência e dominação.

A ideia de Weber foi adopta, em certa  medida, por diversos autores que o sucederam. De forma exemplificativa de duas ideias distintas de legitimidade, é possível apresentar o entendimento de Hans Kelsen e Jurgen Habermas.

Kelsen define o princípio da legitimidade como o “… princípio de que a norma de uma ordem jurídica é válida até a sua validade terminar por um modo determinado através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela validade de uma outra norma desta ordem jurídica…”

Neste sentido, Kelsen se distancia de Weber na medida em que legitimidade e legalidade se confundem.Todas as normas que cumprirem o procedimento determinado pelo ordenamento jurídico são legais e legítimas.

Confrontado com o problema da revolução e de entender o fundamento da norma fundamental, Kelsen acrescenta um novo elemento que limita a legitimidade, a efectividade. Não bastaria, portanto que a legalidade/legitimidade estivesse presente. Seria também necessária a efectividade  do governo.

Habermas, por outro lado, apresenta uma visão diferente de qual seria o critério para se assegurar a legitimidade de uma norma. Primeiramente, ele rejeita a relação intensa entre legalidade e legitimidadeexposta por Kelsen e Weber afirmando que “a fé na legalidade só pode criar legitimidade se se supõe de antemão a legitimidade da ordem jurídica que determina o que é legal”.

Assim, Habermas busca outro fundamento para tal legitimidade e afirma que este fundamento seria a existência de uma moral convencional que, por determinar normas prévias, gerais e vinculantes para todos, possibilitam o surgimento de um poder político que possa justificar a sua autoridade coercitiva. Assim, a fundamentação da autoridade do direito se daria devido a este entrelaçamento entre Direito e Moral. Nas palavras do autor “… aquele momento de incondicionalidade que inclusive no Direito moderno constitui um contrapeso à instrumentalização política do meio que é o Direito, deve-se ao entrelaçamento da política e do Direito com a Moral”.

4. Legitimidade  e Legalidade da “ Reeleição” de João Lourenço 

A Comissão Nacional Eleitoral (adiante CNE) divulgou os resultados definitivos, prontamente contestados por algumas forças políticas da Oposição e, acto continuo, os demandaram junto do Tribunal Constitucional (adiante TC), nas  vestes de Tribunal Eleitoral, que os caucionou, sem aditamentos, correções ou imposições de recontagem, autorizando, assim, a CNE a publicá-los em Diário  da República, com os respectivos mandatos do Presidente da República, Vice-Presidente da República e dos Deputados à Assembleia Nacional, procedimento já cumprido, ficando apenas a posse dos mesmos ser feita nos próximos dias.

Estes formalismos e procedimentos seguidos pelos órgãos competentes, constitui a chamada legitimidade legal. Ou dito de outro modo: os dois órgãos de soberania “eleitos” nas eleições de 24 de Agosto último,gozam da chamada legitimidade jurídico-formal ou, como diz Weber, “com fundamento racional baseado na legalidade”.

Diversa é a sua legitimidade substantiva que se funda na manifestação do voto popular, segundo o Artigo 3 da Constituição da República de Angola, que não veio a ser provada. 

Como tem sido amplamente discutida na sociedade angolana, os resultados eleitorais não são consensuais, havendo grande parte dos concorrentes e da sociedade civil (representando uma parte considerável da sociedade angolana) que reivindicam, segundo contagens paralelas, outros números.

A questão, nesta sede, é a de saber se estas reivindicações são suficientes para colocarem em causa a legitimidade formalmente reconhecida pelas instituições competentes (CNE e TC ). 

5. Concluindo 

A resposta pode ser dada na perspectiva de Habermas, que assegura que o fundamento da legitimidade seria a existência de uma “moral convencional” e acrescentaríamos, “a existência da verdade eleitoral”. 

Como é de conhecimento público, tanto o CNE como o TC apresentaram-nos apenas “verdades formais”.Escondendo, a verdade material (verdade eleitoral), com a recusa do pedido de confrontação entre as actas-sínteses em posse da CNE com as entregues aos partidos da Oposição, não se processou o entrelaçar entre o Direito e a Moral para evitar a instrumentalização  política das instituições públicas e estaduais (e das normas vigentes), como nos diria Habermas. 

Neste sentido, o Presidente da República “Reeleito” não tem legitimidade. E a legitimidade material, substantiva ou moral é a mais relevante pois assenta na verdade democrática e na justiça popular. 

As consequências jurídicas e políticas da ilegitimidade material ou substantiva  e moral do Presidente da República “Reeleito” e do seu Executivo, será matéria que desenvolveremos  no próximo “Comentário Jurídico”. Até lá, alea jact est…

•O Comentário Jurídico (10) é estritamente versado em matéria de Ciência Política que anda paredes-meia com o Direito Constitucional— um dos nossos campos de investigação. 

• Jurisconsulto (Especialista em Direito Público- Político) e Docente Universitário

Bibliografia Consultada 

1. Habermas, jurgen, Direito e Democracia— entre a felicidade e a validade, Editora Tempo Brasil, Rio de Janeiro, 1997. 

2. Habermas, Jurgen, Teoría de la accíon comunicativa, Taurus, Madrid, 1987. 

3. Kelsen, Hans, A Teoria Pura do Direito, 8 edição, Almedina, 2019

4. Lamego, José, Filosofia do Direito —Conceito de Direito do Positivismo Jurídico, Reimpressão, Almedina, 2022. 

5. Weber, Max, Economia e Sociedade, Almedina, 2022.

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