Ela resulta de incumprimentos sucessivos da parte do Governo, em relação a questões básicas: salários, condições de trabalho, protecção social, carreiras e pagamento de dívidas antigas.
Viver o dia-a-dia de precariedade crescente, e acompanhar a degradação das condições de vida da generalidade das pessoas que, neste país, vive do seu trabalho, e a consequente perda de oportunidades de realizar projectos de vida, individual ou colectivamente, cria um estado de permanente sobressalto, entremeado por momentos de espanto incontido pelas situações que ‘acontecem’ (melhor seria dizer, ‘são acontecidas ́ …) e as reacções (ou a falta de …) que as mesmas despertam.
Numa sociedade onde a polícia declaradamente não distribui “rebuçados e chocolates”, subentendem-se que se dedica a cumprir o seu papel republicano de zelar pela segurança e a tranquilidade públicas de todos os angolanos. Curiosamente zelosa das suas funções, até agora não se pronunciou sobre a ocorrência na residência do secretário geral do Sindicato dos Professores do Ensino Superior (SINPES) no dia 10 de Abril. É assim tão difícil averiguar as identidades por detrás do número de telefone, no caso ‘a arma do crime’?
Por outro lado, onde está a indignação dos professores e da sociedade em geral, perante não só as ameaças, acima de tudo pela evidente tentativa de atribuir a “autoria” da greve ao secretário geral do Sindicato. Como é? A greve é dele? A greve é de todos, ou pelo menos da maioria dos professores do ensino universitário público. A ameaça anterior – está a ir muito longe – já continha essa ideia de relacionar “a decisão” do fim da greve ao secretário geral … uma projecção da cultura dominante de centralização de poder subjacente a esta numa forma de pressionar ‘uma’ pessoa para acabar com ‘uma’ greve.
É importante relembrar que esta greve resulta de incumprimentos sucessivos da parte do Governo, em relação a questões básicas: salários, condições de trabalho, protecção social, carreiras e pagamento de dívidas antigas.
Em qualquer país onde a Educação seja, de facto, uma prioridade, e o subsistema de ensino superior seja entendido, como defendeu Mahmood Mamdani1 “a educação superior é o centro estratégico da educação porque é aí que o curriculum é desenvolvido, que os professores são treinados e que as pesquisas são realizadas”. E acrescentou: “não há renascimento sem uma intelligentsia”.
Um país africano que tenha subscrito a “Agenda 2063” para termos a África que queremos, precisa fazer um investimento sério na educação (Compromisso de Dakar – 20% do orçamento), e particularmente nas suas universidades, lembrando que as habilidades a ensinar e o curriculum a seguir devem ser concebidos no sentido de favorecer a inclusão dos estudantes num mundo globalizado de crescente comunicação, complexidade e mobilidade. Este deve ser um aspecto relativamente ao qual os estudantes angolanos das universidades públicas devem reflectir, antes de exigir o imediato retorno às aulas: a garantia de qualidade, tanto no ensino, quanto nos outros dois pilares praticamente inexistente entre nós: a pesquisa e a extensão universitária.
Como salienta o relatório da SARUA2 “Mais do que em qualquer outra época da História, África deve concentrar-se actualmente neste facto poderoso: a relação entre a universidade africana e a sociedade africana é absolutamente dialéctica, isto é, o destino de uma está nas mãos da outra”– (Lulat 2005:439)3. A importância do ensino superior como um impulsionador do desenvolvimento sustentável, particularmente no contexto da economia global do conhecimento, é amplamente reconhecida. A África não é excepção, nem os quinze países que constituem a SADC.
Entretanto, notícias recentes lembram-nos argumentos antigos apresentados, do lado do Governo, para justificar os incumprimentos e a morosidade em atender às reivindicações dos professores, sempre relativizando a capacidade de resposta às reivindicações com base “(…) nos recursos e nas condições que o país pode oferecer para que possam ser satisfeitas as reivindicações, não apenas do Sindicato do Ensino Superior”4.
Mais preocupante é o reportado numa outra notícia sobre declarações da ministra, Maria do Rosário Bragança5 afirmando existir “Uma equipa de trabalho (…) para atender às reivindicações dos professores para que sejam resolvidas” (…), e em relação à remuneração dos docentes, com realce ao salário básico, afirmou que “é um assunto que vai precisar de um outro tratamento a nível do Executivo, dada as implicações” (…). Referiu “passos dados em relação à preocupação de formação contínua dos docentes, que coincide com o projecto de desenvolvimento sectorial do Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologias e Inovação, para o quinquénio 2023-2027”. A ministra anunciou “o arranque das obras de construção de 12 instituições do ensino superior públicas, em nove das 18 províncias do país, esclarecendo que as obras estão previstas no Orçamento Geral do Estado de 2023“.
Esta situação denuncia a falta de coerência: não há recursos, para atender às reivindicações dos docentes para pagar decentemente, dignificar a carreira, melhorar as condições de trabalho, mas lançam-se as obras de construção de 12 novas instituições de ensino superior … De novo a ideia peregrina da divisão por 18? Houve alguma avaliação ou estudo para respaldar a decisão de criar as regiões universitárias e desmontar a UAN?6 Existe alguma avaliação sobre os resultados dessa decisão?
Em Angola, o sistema de educação, em geral, e o sub-sistema do ensino superior perderam qualidade, apesar do crescimento do número de instituições, de professores e de estudantes a eles relacionados. A expansão da rede escolar, aos diversos níveis, não resultou de uma prioridade assente numa vontade política de melhorar as condições de vida da população numa base universal, reconhecendo a função social da educação – e do ensino público, em especial -, aumentando o investimento público na formação de professores e na criação de espaços adequados ao funcionamento de escolas aos diversos níveis.
Defendo que o investimento em capital humano é fundamental para eliminar (ou reduzir substancialmente) a pobreza e, acima de tudo, combater as desigualdades sociais, o nosso maior problema na actualidade. A análise do percurso histórico das sociedades tem demonstrado que existe uma relação entre progresso social e a tomada de medidas de política incentivando a educação e a produção crítica de conhecimento7.
Ao longo da minha carreira profissional, e não apenas como docente universitária, defendi a necessidade de haver uma clarificação, o mais ampla possível, sobre os entendimentos da sociedade angolana, e dos seus poderes instituídos, sobre a função social da Universidade, o seu papel no alcance dos objectivos estratégicos do desenvolvimento nacional sustentável, e não apenas do crescimento económico. Esse debate e o processo de concertação, em meu entender, devem enquadrar-se numa abordagem mais ampla sobre os caminhos para o futuro, as estratégias para alcançar os objectivos desejados e o que cada um deve fazer para o alcançar.
Em 2015 subscrevi uma carta de 224 académicos de mais de 30 países dirigida a Irina Bokova, então Directora-Geral da UNESCO, posicionando-se contra, entre outras, a crescente mercantilização da educação (…) os esforços insuficientes para garantir o direito universal no acesso à educação de qualidade, a redução da componente ensino público, o descaso na resposta às necessidades especiais de estudantes, entre outros aspectos destacados na missiva que termina pedindo um maior engajamento da UNESCO e da sua directora na luta, que se impõe internacional, contra o que consideraram “Apagão Pedagógico Global”.
Voltaria a subscrever posicionamentos em defesa da expansão e fortalecimento dos sistemas de ensino com base no princípio do direito universal a uma educação de qualidade, incluído numa estratégia que promova o desenvolvimento do capital humano e social, e procure responder à necessidade premente, a nível planetário, de colocar a Educação para as Mudanças Climáticas, as questões ambientais e os estilos de vida sustentáveis como eixos organizadores da filosofia dos programas curriculares. Ou seja, privilegiar as dimensões Humana, Social e Ambiental, sem as quais, os imperativos de mercado, do aumento da produtividade e do desenvolvimento tecnológico continuarão a gerar mais desigualdade social e a acelerar a exaustão dos recursos naturais. E isso implica políticas públicas, de facto, e não apelos ao empreendedorismo!
1 Mamdani, M., 2006, na abertura da 16a Cimeira dos Ministros da Educação da Commonwealth, reunidos em Cape Town, Africa do Sul, de 11 a 14 de Dezembro;
2 SARUA, associação de liderança sem fins lucrativos de direcções das universidades públicas nos 15 países da SADC.
3 Kotecha P (exec. ed.), Strydom‐Wilson M e Fongwa SN (2012) Um Perfil do Ensino Superior na África Austral – Volume 1: Perspectiva regional. Joanesburgo: SARUA.
4 VOA Angola_Casa do secretário-geral do SINPES foi vandalizada e recebeu ameaça de morte, 11 Abril 2023
5 JORNAL de Angola, Ministra do Ensino Superior garante continuidade do Ano Académico, 08 Abril 2023
6 Decreto Executivo 5/09 de 7 de Abril
7 ABREU, Cesaltina (2018) Até que uma IES (Instituição de Ensino Superior) ascenda a Universidade!… Comunicação à Conferência INTERNACIONAL “HUMANIDADES PÚBLICAS. PENSAR A LIBERDADE NA UNIVERSIDADE AFRICANA”
Sobre a autora:
*Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e o Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.