Implica a necessidade de entender a comunicação como um processo pelo qual os conflitos são expressos e discutidos abertamente pelos diversos actores envolvidos até que entendimentos sejam alcançados e colocados em prática, e sempre monitorados e redefinidos. O que terá melhorado em Angola nos últimos anos, se continuamos sem uma cultura de debate de ideias, de propostas, de programas e de visões de país?
O relatório mundial sobre a liberdade de imprensa indica que a Angola subiu quatro lugares no ranking da liberdade de imprensa, passando da posição 103 em 2021, para a posição 99 em 2022, apesar das ameaças e perseguições a jornalistas. Mas, na sua mais recente actualização sobre a posição de Angola no ranking de 2023, os Repórteres sem Fronteiras (RSF) consideram que a chegada de João Lourenço à presidência, em Setembro de 2017, não marcou um ponto de virada para a liberdade de imprensa. Refere que a censura e o controle da informação ainda pesam muito sobre os jornalistas angolanos.
Assistindo televisão (qualquer delas), lendo notícias dos mídia públicos, notas de imprensa do Governo, declarações de governantes, na melhor das hipóteses, ou seja, quando elas existem, ou “localizando” no tempo e no espaço o silêncio e as omissões sobre situações que realmente importam porque “batem” no dia a dia dos angolanos que vivem (procuram sobreviver) dos seus salários, temos de facto a impressão que muita coisa não vai bem.
Refiro-me à fome, à pobreza escancarada em cada esquina, à desigualdade crescente, ao descaso em relação à vida quotidiana dos cidadãos – a educação pública que não temos, a saúde cheia de casos diários, como o dos makeiros a fazerem-se de médicos, os elevados custos dos produtos básicos, a economia que não cresce menos ainda se diversifica, as reservas internacionais ‘engolidas’ pela importação de bens alimentares porque a produção nacional não responde, o trânsito caótico, os prédios que caem ou ameaçam cair, os bens públicos sem manutenção (o Estádio da Cidadela, p ex.), os contratos milionários direcionados aos “3 magníficos” da era actual por adjudicação directa, a vergonha pública do poder com atribuições de fiscalização dos outros 2 (o que devia legislar mas segue a iniciativa legislativa de quem exerce o poder unipessoal, e o dos auxiliares deste) … Como ser indiferente, como não se expor, sendo jornalista?
Ao cabo de 7 meses do mesmo Governo pós-eleições, alguém ouviu falar do PDN? Ou, por acaso, viu os bem pagos (1 250 000 Euros) consultores externos contratados para o fazer (no entender do ‘chefe’ ver , com 47 e meio anos de independência Angola não criou capacidades para conceber, executar e avaliar o seu Plano de Desenvolvimento Nacional). No Angola Economic Outlook (assim mesmo, em inglês) logo na introdução faz-se o seguinte balanço: “Volvidos cinco (5) anos, avalia-se que o País: i. Retomou a trajectória de saldos fiscais positivos; ii. Reduziu o stock da dívida pública em percentagem do PIB; iii. Aprofundou os instrumentos de política monetária, com a adopção de um novo regime monetário; iv. Voltou a registar saldos superavitários na conta corrente da balança de pagamentos; v. Introduziu um regime de taxa de câmbio flexível que permitiu ajustar o valor da moeda nacional às condições do mercado; e vi. Retornou à trajectória de crescimento económico, depois de um período longo de recessão”1. Acabando de ler, olha-se em redor em busca dos esperados efeitos na vida dos cidadãos, mas não se vêm; a sensação dominante é a de, pelo contrário, ter piorado!
E, em seguida, anuncia-se: “Persistem desafios e riscos, mas mantém-se o optimismo quanto ao futuro. Deverão ser mantidos os ganhos até então conquistados, consolidados o processo de recuperação da actividade económica e, no âmbito do PDN 2023-2027, deverão ser priorizados programas que permitam a: (i) promoção do capital humano; (ii) expansão e modernização das infraestruturas; e (iii) aceleração da diversificação da economia”. Vamos ver como essas intenções, tão mimeticamente repetidas, serão ‘projectadas’ e se, depois, serão implementadas.
Voltando ao Relatório sobre a Liberdade de Imprensa no Mundo 2022, reafirmo a estranheza perante a “melhoria da classificação de Angola em matéria de liberdade de imprensa” … serão as Conversas do Café CIPRA? Ou as matérias (com fotos alheias) nas páginas da presidência? Porque a Liberdade de Imprensa se concretiza, em grande medida, através da comunicação social, pergunto-me: o que terá melhorado, se continuamos sem uma cultura de debate de ideias, de propostas, de programas, de visões de país? Estamos a falar da mesma coisa, ou seja, de comunicação social como a entendo e como procurei abordá-la nas aulas, conferências, debates e formações?
Communicare (do latim) significa trocar opiniões, partilhar, tornar comum, conferenciar. Refiro-me a Comunicação Pública, ou seja, à Política de Comunicação como Política Pública e Social, na perspectiva do estreitamento das relações entre o Estado e a sociedade, com vista a criar/fortalecer mecanismos e procedimentos de proximidade com os cidadãos. O desafio é o de aprimorar o relacionamento dos poderes instituídos com a sociedade pela compreensão e aplicação dos processos comunicativos — o fluxo de acesso a informações e a disponibilização/uso de canais/veículos — entre uma gestão governamental interessada/pressionada em fortalecer os vínculos entre os poderes instituídos e os cidadãos, e estes interessados em exercer a sua cidadania através da identificação das necessidades, dos problemas e das soluções, dos quais fazem parte. Isto implica a necessidade de entender a comunicação como um processo pelo qual os conflitos são expressos e discutidos abertamente pelos diversos actores envolvidos até que entendimentos sejam alcançados e colocados em prática, e sempre monitorados e redefinidos.
Aristóteles criou, no século III a.C., o modelo clássico tricotómico fonte>mensagem>receptor – que vigora até hoje. Na essência, a evolução das comunicações não alterou o esquema emissor-mensagem-receptor. Mudaram a velocidade, a capacidade de reprodução, o número de fontes e os efeitos da comunicação, entre outros factores. Se a sociedade amplia, diversifica e multiplica os actores e as interpretações, deverá também construir contextos comunicacionais que acompanhem a (re)configuração das relações sociais e de poder. É preciso promover, no âmbito da participação, novos espaços públicos, além dos proporcionados pela mídia, criando um conjunto diversificado de estruturas comunicativas e, consequentemente, uma série de processos sociais de recepção e elaboração de discursos e entendimentos … o que apenas uma Comunicação Pública despida do carácter de marketing político pode fazer, tornando-se em instrumento de gestão, de participação e de controlo social. Trata-se da comunicação entre governo e sociedade como fenómeno indissociável da participação, cabendo ao poder executivo o papel de consolidá-la, colocando a comunicação no campo da gestão das políticas públicas como espaço de interlocução entre governantes e governados.
Actualização dos Repórteres sem Fronteiras (RSF)
Angola, na 125ª posição, desceu 36 posições relativamente ao reportado em 2022, segundo o Relatório dos Repórteres sem Fronteiras , que cobre 180 países. No documento, os RSF consideram que em Angola, após 40 anos de gestão do ex-Presidente José Eduardo Dos Santos, “a chegada de João Lourenço à presidência, em Setembro de 2017, não marcou um ponto de virada para a liberdade de imprensa. A censura e o controle da informação ainda pesam muito sobre os jornalistas angolanos.”2
Os itens mais destacados no Relatório são: a falta de segurança dos jornalistas, a pressão política, a ausência de pluralidade e a fragilidade social, traduzidos na hegemonia dos mídia estatais, na censura e na auto-censura.
O Relatório dos RSF reporta três itens, designadamente, o cenário mediático, contexto político, quadro jurídico, económico, sociocultural e de segurança,
Sobre o cenário midiático angolano, os RSF consideram que o panorama é marcado pela predominância da mídia estatal. Das cerca de 120 estações de rádio, apenas vinte são privadas, duas das quais são consideradas independentes: a Rádio Eclesia, ligada à Igreja Católica, e a Rádio MFM. Existem três canais de TV públicos e alguns privados. Em 2020, os dois veículos privados TV Zimbo e Palanca TV passaram a ser controlados pelo Governo. Dos muitos jornais privados que surgiram com o advento da política multipartidária em 1992, apenas quatro ainda existem em versão impressa.
Em relação ao contexto político, depois de uma aparente abertura em 2017, o relatório refere que o Presidente João Lourenço limitou e reduziu a sua uma colectiva de imprensa para um formato muito restritivo: cinco meios de comunicação convidados, com direito a duas perguntas cada e nenhuma pergunta complementar. O acesso a informações públicas e fontes governamentais é difícil, e a censura e a autocensura continuam presentes.
Os RSF dão igualmente conta que o partido no poder está sobrerrepresentado na mídia, especialmente na Televisão Pública de Angola (TPA), e muitos pedidos de licença estão pendentes no Ministério das Telecomunicações, acusado de obstruir as iniciativas de pessoas ou grupos de fora do Governo.
No tocante ao quadro jurídico, o relatório aponta para a existência de uma série de leis aprovadas em 2016, que exigem que a mídia audiovisual transmita os pronunciamentos oficiais do presidente. Ainda se espera pela descriminalização dos delitos de imprensa, exigida pelos profissionais do sector. Há, entretanto, sinais encorajadores, como a absolvição em 2018 de dois jornalistas investigativos pela justiça, que reconheceu que eles haviam exercido a sua “obrigação de informar objectivamente”.
Nos últimos anos, circunscrevendo-se ao contexto económico, os RSF recorda que muitos jornais faliram depois de serem comprados por pessoas ligadas ao partido no poder, outros não sobreviveram devido a dificuldades financeiras. Por outro, como medida agrante, o poder decidiu elevar, para níveis exorbitantes, os custos das licenças de rádio e televisão que constituem mais um freio ao exercício pluralista.
No contexto sociocultural o relatório dos RSF considera a sociedade angolana marcada pela influência do cristianismo e que os “assuntos relacionados à religião, à Igreja ou à sexualidade são tratados com cautela, quando não relegados ao silêncio”. Do mesmo modo, refere que o papel das mulheres nas redações é limitado e, por fim, que “os grupos étnicos minoritários estão mal representados na mídia e na cobertura dos assuntos que lhes dizem respeito”.
Finalmente, no domínio da segurança o relatório dos RSF confirma que ainda “é comum que jornalistas sejam alvo de processos e, às vezes, condenações muito pesadas quando realizam investigações que abordam a governança e o judiciário”. Para o efeito, cita o exemplo de um caso ocorrido em 2021, em que o diretor do portal de jornalismo investigativo A Denúncia foi condenado a dois anos de prisão e multa de 180 mil euros por difamação e “abuso da liberdade de imprensa” em relação a um caso de aquisição suspeita de terras pelo vice-procurador geral. E destaca que “nos últimos anos, vários jornalistas foram agredidos ou presos por breves períodos”.
*3 de Maio, desde 1993
1 “Angola Economic Outlook, da recuperação económica ao desenvolvimento sustentável”, Ministério da Economia e Planeamento do Governo de Angola e Economia&Finanças. 29 páginas, das quais 2 capas, 1 página com os autores, 1 página de abreviaturas, siglas e acrónimos, e 1 página de gráficos.
2 Nota Global do Relatório https://rsf.org/pt-br
Sobre a autora:
Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e o Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.