COMBATE A CORRUPÇÃO NA VISÃO DO ADVOGADO SÉRGIO RAIMUNDO

“O que temos assistido até hoje, é o ataque aos efeitos e não as causas”

“Volvidos cerca de cinco anos e alguns meses do primeiro mandato do Presidente João Lourenço, estando já no segundo, era altura de procedermos à um balanço do que se fez, quais são os resultados que foram alcançados com esses métodos e com esta estratégia”

A cidade do Lobito acolheu no passado dia 12 (Abril) no Salão Nobre da Administração Municipal, a 1ª Conferência Provincial Tripartida do Processo Penal Angolano, promovida pelo Conselho Provincial da Ordem de Advogados, numa parceria com a Procuradoria-Geral da República e o Tribunal da Comarca do Lobito.

A conferência, digna dos maiores elogios, congregou operadores da Justiça angolana em Benguela e não só, envolvidos nos mais diferentes sectores e contou com a participação de cinco prelectores, designadamente, da Dra. Laurinda Cardoso, Veneranda Juíza Conselheira Presidente do Tribunal Constitucional, que abordou o tema “O papel do Tribunal Constitucional e a tramitação dos recursos extraordinários de inconstitucionalidade”; de Ramos Queta Barros, Juiz de Direito, que dissertou sobre “A relação entre juízes, procuradores e advogados”; Núria Viegas, Sub-procuradora Geral da República em Benguela, sobre “A institucionalização da figura do juiz de Garantia e a sua importância na celeridade processual penal”; Dilma Correia, advogada, sobre “O papel da mulher advogada e seus desafios”; Comissário Aristofanes dos Santos, Delegado Provincial do Minint, sobre “A segurança pública e a garantia dos arguidos nos processos penais”.

O ciclo de apresentação de temas foi encerrado pelo advogado Sérgio Raimundo, que teve a seu cargo a apresentação do tema sobre “Os principais instrumentos jurídicos do ordenamento angolano para o combate a corrupção”. Matéria sempre suculenta e de actualidade que pela sua relevância, decidimos reproduzir integralmente porque pensamos ser de grande utilidade para percebermos os diferentes meandros desse e de outros “combates”. Claro que, numa vertente pedagógica, de academia, como fez questão de ressaltar o orador, e numa “perspectiva crítica positiva” de contribuição para o êxito dessa empreitada, que é afinal, da responsabilidade de todos. 

O objectivo, reafirmamos fazendo nossos os argumentos de razão esgrimidos por esse destacado causídico, é “ajudar ou sugerir alguns caminhos para melhorar o combate a corrupção e torná-lo mais eficaz e eficiente” até porque, embora existam muitos angolanos que não encaram de bom grado a participação livre dos que são tidos como os “outros” nessa espinhosa empreitada de construção de uma nação livre, democrática e de direito, “a verdade não se tapa com a peneira”

Eis a intervenção do Dr. Sérgio Raimundo, que é a expressão do seu conhecimento, da prática de muitos anos de exercício jurídico activo, de academia, de cidadania, mas, sobretudo, de expressão do seu sentimento e comprometimento com a Nação e com todos. 

Alguém anda a enganar o Presidente

Procurarei fazer uma abordagem sucinta, mas numa perspectiva crítica positiva, não entrando no âmago de todas as questões, uma vez que pelo formato deste evento, não temos muito tempo para falar com profundidade de um tema tão complexo, como é o combate à corrupção, que para muitos parece resumir-se em dois aspectos simples: prender pessoas e metê-las na cadeia. Mas não é bem assim.

Mas, antes disso, gostaria de sugerir para aqueles que realmente estão interessados neste tema, a leitura de dois livros: um deles, de uma pessoa que conhecem bem aqui em Benguela, professor de muitos de vocês, que se tem dedicado muito ao estudo dessa dessas matérias. Refiro-me ao professor Hermínio Carlos Silva Rodrigues. Tem uma obra sobre “Recuperação de Activos e Perda Alargada de Bens em Angola”. A outra obra, é de autor brasileiro Antenor Baptista, “A Corrupção, o 5º Poder”. Ele denominou a corrupção como o quinto poder, tendo em atenção o Poder Legislativo, o Poder Judiciário, o Poder Executivo e a Imprensa, que é tida como o quarto poder. Então, ele coloca nessa sequência a corrupção como o quinto poder. E na introdução da sua obra, ele até diz que a corrupção deveria ser até o primeiro poder, porque influencia todos os demais poderes.

Para dizer que vou abordar o meu tema essencialmente com base em dois ou três instrumentos jurídicos essenciais, para facilitar a compreensão e aproveitarmos o tempo, e para que o resultado deste nosso encontro possa ser mais prático e proveitoso do ponto de vista de resultados.

É verdade que todos nós estamos interessados em combater a corrupção em Angola. Não há dúvidas quanto a isso e, aliás, já o antigo Presidente José Eduardo dos Santos dizia que, “depois da guerra, o segundo maior mal que tem prejudicado o desenvolvimento do país e a promoção do bem-estar social dos angolanos, é a corrupção”. E declarou, naquela altura, tolerância zero à corrupção. Mas, infelizmente, quando terminou o mandato, vimos que os níveis de corrupção que deixou eram altos.

Serve isso para dizer, que a nova liderança também elegeu o combate a corrupção como uma das principais bandeiras da sua governação. E não podia ser diferente, porque se nós continuarmos com uma sociedade corrupta, por melhores que forem as intenções políticas na promoção do desenvolvimento e do bem-estar social dos angolanos, dificilmente poderemos atingir algum resultado positivo.

Mas, penso que o problema não está em combater ou não à corrupção. E como já disse, até estamos todos de acordo. O problema está na estratégia de combate à corrupção: qual é a melhor estratégia para combater a corrupção? Porque, como disse, o anterior Presidente também proclamou (declarou) tolerância zero e não conseguiu. Porque, não houve uma estratégia inclusiva. E parece-me que a actual liderança está a trilhar o mesmo caminho. Apenas com uma única diferença: há alteração legislativa acelerada para facilitar este combate a corrupção, que muitas vezes é aprovada no calor das emoções. Com pressa de que precisamos receber isso… precisamos de prender aquele… e muitas vezes não se olha para o que é fundamental: as causas da corrupção, porque elas se mantêm lá todas, intactas. 

Por isso é que hoje ouvimos na sociedade, que a corrupção atingiu níveis superiores àqueles que José Eduardo dos Santos deixou. Porque o Presidente da República não é omnipotente nem omnipresente. Ele pode ter muita boa vontade política de combater a corrupção, mas, se não contar com a participação de todas as forças vivas da Nação, quando ele terminar os mandatos todos que tiver vai deixar o país igual, ou pior do que o que encontrou.

Na realidade, os principais instrumentos jurídicos para o combate a corrupção no nosso ordenamento, obviamente, em primeiro lugar está a Constituição. E depois encontramos uma série de leis ordinárias, como por exemplo, o próprio Código Penal recentemente aprovado, o Código de Processo Penal que temos em vigor e que é novo, a lei 3/10 de 29 de Março, a Lei da Probidade Pública, a lei 9/18 de 26 de Junho, a Lei de Repatriamento de Recursos Financeiros, ou se quisermos, de Repatriamento Voluntário, que foi aprovada numa perspectiva de acelerar a recuperação dos activos que, indevidamente ou presumivelmente de forma indevida, saíram da esfera jurídico patrimonial do Estado para a esfera jurídica patrimonial de alguns particulares, permitindo assim – e se pudéssemos chamar a isto uma espécie de “Amnistia Parcial temporária” – que essas pessoas pudessem devolver voluntariamente, ficando isentas de quaisquer responsabilidades de natureza criminal. 

Como vimos, passaram os seis meses e ninguém entregou praticamente nada. Então, surgiu a lei 15/18 de 26 de Dezembro, seis meses depois, taxativamente, que é chamada Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens, que a obra que eu citei do doutor Hermínio Carlos Silva Rodrigues aborda muito bem toda esta matéria. Critica, inclusivamente, algumas soluções que foram adoptadas nesta lei, com as quais eu concordo e também subscreve. 

Há uma outra obra (que não trouxe) que também recomendo. É sobre o “Crime de Branqueamento de Capitais em Angola e as Suas Infracções Subjacentes” da autoria do Dr. Avelino Capaco, que escrevi o prefácio. Tem lá também muita coisa boa sobre esta matéria. Ele tem uma outra obra, a primeira, que é sobre a “Acumulação Primitiva de Capitais”, onde faz uma abordagem positiva, contrariamente àquela que assistimos diariamente na nossa sociedade. Quando falamos da “apropriação primitiva de capitais”, a ideia que se transmite é de anarquia ou açambarcamento de bens públicos. Mas não! A apropriação primitiva tem uma perspectiva positiva, no sentido de como é que as pessoas, pela primeira vez, tiveram acesso à determinadas riquezas. E nessa obra, ele explica que quer nos Estados Unidos, quer em França, quer em Inglaterra, quer até em Portugal, à determinada fase da história dessas nações seculares, tiveram de tomar decisões políticas para criar a dita burguesia nacional, definindo critérios para que determinados cidadãos tivessem acesso fácil a riqueza para assim dar lugar a burguesia nacional. Porque falar em economia de mercado, de livre concorrência, sem uma classe burguesa nacional forte, é entregar a soberania económica do país aos estrangeiros. Esta é a grande realidade, e temos de ter muito cuidado, porque senão, um dia vamos acabar todos novamente empregados de estrangeiros. 

O outro instrumento jurídico importante a chamar aqui a colação, é a Lei 5/20 de 27 de Janeiro, a Lei da Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e do Financiamento do Terrorismo e Proliferação de Armas de Destruição Massiva, a Lei 13/22 de 25 de Maio de Apropriação Pública, que surgiu na base da chamada Revisão Pontual da Constituição que introduziu uma alteração na redacção do Artigo 37 da Constituição, surgindo aqui o número 4 e o número 5, como consequência do qual foi aprovada esta Lei Ordinária, que vem numa espécie de regulamento desta norma programática do número 4 do Artigo 37 da Constituição, por um lado. Por outro lado, essas leis também constituem um dos meios através do qual o combate a corrupção se concretiza, bem como também, através dos órgãos da administração da Justiça e não só. Porque foi necessária a aprovação dessas leis, para que os órgãos de administração da Justiça tivessem instrumentos capazes de tornar célere e eficaz o combate a corrupção. 

Entendo que, volvidos cerca de cinco anos e alguns meses do primeiro mandato do Presidente João Lourenço, estando já no segundo mandato, era altura de procedermos à um balanço do que se fez, quais são os resultados que foram alcançados com esses métodos, com esta estratégia de combate a corrupção, e procurarmos, dentro daquele lema que elegeu o MPLA para governar este país, “corrigir o que está mal e melhorar o que está bem”, então corrigir o que está mal na estratégia, e melhorar alguns aspetos que estão bem nessa mesma estratégia de combate a corrupção. 

E nós temos de começar a aprender com todos, inclusivamente com os mais novos, com os mais velhos e até com os nossos adversários políticos. E digo isto porquê? Gostaria de chamar aqui a colação uma entrevista interessante, que uma das pessoas tidas como das mais radicais, considerado mesmo um dos líderes mais radicais do maior partido da oposição, a UNITA, que é o general Camalata Numa, que deu ao Jornal Vanguarda (em 2018) que já desapareceu, em que dizia de forma muito resumida, “que combater a corrupção sim, estamos todos de acordo, mas não da forma como está a ser feito”. E ele disse ainda: “Combater a corrupção não pode ser entendido como combater o antigo Presidente da República, seus filhos e pessoas mais próximas, porque isto pode pôr em causa todas as conquistas alcançadas até agora, com sacrifício de vidas humanas e muito sangue vertido pelos filhos e filhas desta nação, porque isto pode criar alguma instabilidade até económica”

Se olharmos hoje para o cenário económico fruto do combate a corrupção na base dessa estratégia, vamos encontrar muitas situações que trouxeram alguma instabilidade, como o aumento do desemprego, a destruição e desvalorização de activos quer dentro como fora do país. E, portanto, temos de ser humildes o suficiente, para aceitar parar para ir ao espelho, e reparar se estamos bem ou mal vestidos. O general Camalata Numa disse também, que o “Presidente João Lourenço não pode fazer do combate à corrupção uma bandeira exclusiva do MPLA”. E é verdade! A corrupção em Angola é endémica, é transversal, está enraizada em todas as instituições, mesmo até nos partidos políticos da oposição. E portanto, é preciso chamar todas as forças vivas da Nação, incluindo as igrejas, a sociedade civil organizada, através das ONG’s para num debate amplo e inclusivo, sob a liderança do Governo e do partido que governa porque têm responsabilidades acrescidas, trazer um projecto de estratégia de combate a corrupção, chamar a sociedade civil organizada e outras forças vivas da Nação e não apenas os partidos políticos e dizer: “O pensamento estratégico do Governo de combate a corrupção é este, mas queríamos ouvir as vossas opiniões e contribuições para enriquecermos essa estratégia, e sairmos daqui com uma estratégia única, consensual, comum, para que cada cidadão deste país se sinta participe deste combate”.

O que nós estamos a ver, é que ninguém se sente participe directo do combate a corrupção. Todos entendem que o combate a corrupção é da PGR (Procuradoria-Geral da República), é do MPLA, é uma tarefa do Presidente João Lourenço. Mas não! Eles sozinhos não vão conseguir fazer nada. 

Portanto, este debate impõe-se. A própria Igreja Católica que é a maior no país, também já sugeriu várias vezes e de forma pública, que é necessário um debate mais amplo à volta das grandes questões transversais da nossa sociedade. E muito recentemente, inclusivamente a CEAST foi mais longe e gritou mesmo no sentido de uma revisão profunda da Constituição. Eu também subscrevo isso, embora a minha opinião não seja convergente sobre a revisão profunda como muitas outras, quando oiço dizer que é preciso mudar a bandeira, o hino e outros símbolos. Angola tem outras prioridades, tem gente a morrer de fome nas ruas. Tem gente a comer no contentor (de lixo). Não é mudando os símbolos que se vai tirar essas pessoas dos contentores (do lixo). E dou muitas vezes o exemplo do próprio colonialismo português que nos governou – e eu ainda tive a infelicidade de nascer no tempo colonial e viver aí uns 12 anitos no tempo do colono. Portugal continua com a mesma bandeira que flautava aqui em Angola enquanto província ultramarina de Portugal, o mesmo hino que nós éramos obrigados a cantar no início das nossas aulas, a mesma bandeira, o mesmo hino que flutua na democracia portuguesa. E porquê? Porque eles têm noção do quanto custa a uma nação, a mudança dos símbolos. Têm-se despesas adicionais como mudar os bilhetes de identidade, os passaportes, até os papéis utilizados pela administração central e local. Isso tem custos elevadíssimos. Tem custos políticos, económicos e diplomáticos. Portanto, devemos definir o que constitui prioridade, e essa é, sem dúvidas, o salvar a vida dos angolanos que morrem de fome todos os dias.

Por imperativos de tempo, vou pegar em duas ou três leis para tentar esmiuçar um pouco, na tal perspectiva critica positiva, no sentido de ajudar ou sugerir alguns caminhos para melhorar o combate à corrupção e torná-lo mais eficaz e eficiente.

Começando pela Lei 9/18 de 26 de Junho, como disse, ela visava aligeirar o combate a corrupção, na perspectiva da recuperação rápida dos activos, concedendo uma espécie de Amnistia Provisória e Parcial. Mas, infelizmente, já o disse e volto a repetir, esta lei constituiu um ‘nado morto’ à nascença. E também já disse publicamente no ano passado na Conferência Nacional dos Advogados, que o Presidente João Lourenço – que até conheço muito bem porque já foi meu chefe duas vezes – não é jurista, é um político nato – portanto, deve ter juristas à sua volta que o aconselham – e no mínimo está a ser enganado. Porque quando ele vem à público dizer “que nós demos seis meses de período de graça para devolverem as coisas que tiraram e não aproveitaram”, alguém enganou o Presidente. Esta lei é um ‘nado morto’ à nascença. E vou demonstrar agora aqui, por que razão afirmo que é um ‘nado morto’.

O número 2 do Artigo 2º desta lei diz coisas incríveis. No mínimo tem duas inconstitucionalidades, mas, primeiro, queria dizer que mata a eficácia dessa lei, torna ineficaz essa lei, quando refere que “esta lei não se aplica aos casos de peculato”, como diz a alínea k e a alínea l desta mesma lei, e os crimes relacionados com a subtracção de recursos financeiros do erário público. A questão que coloco é a seguinte: “Então, se nós queremos recuperar dinheiro e bens que saíram do erário indevidamente e não há notícia de que o Banco Nacional ou o Tesouro Nacional, no sentido figurativo, foram alvo de assaltos a mão armada, é óbvio que esses bens só saíram dali através de quem? De um funcionário público que tinha a guarda ou a responsabilidade da gestão desses bens. Logo, na origem está um crime de peculato”. Quando vem alguém dizer que ela não se aplica aos casos de peculato, está a dizer que não beneficia os destinatários dessa mesma lei. E por isso é que ninguém entregou. Isto é quase dizer assim, vai à Rádio Lobito e emite um comunicado: “Olha! Quem tirou o plasma da minha casa, que se apresente ou que deixe ficar o plasma na porta da minha casa que vou retirar a queixa”. Toda a gente sabe que se ele arrombou a porta é roubo, se não arrombou nem utilizou violência é furto, e pelo valor do plasma (porque não são baratos) é um crime público. E os crimes públicos não admitem perdão. Portanto, não é verdade que se devolver o plasma, quem roubou fica isento de responsabilidade criminal. O que pode acontecer é uma atenuação da pena aplicada. Portanto, essa lei foi ineficaz por causa deste propósito, que vem falecer com as alíneas e l deste mesmo Artigo, no seu nº 2.

Eu falava da existência de duas inconstitucionalidades no mínimo – e a Dra. Laurinda deu-nos aqui uma lição muito positiva, referindo designadamente que “tudo bem não vou dizer que a Lei não está correcta, mas isto é a Lei”. É verdade que é a lei e cada um de nós tem os meios legais para poder atacar isto. Eu, pessoalmente, já ataquei e confesso que há anos. Não obtive resposta. Até parece que há uma orientação política expressa que vai no sentido de ignorar quem ataca essas leis, para ninguém se pronunciar sobre esse assunto. Eu já ataquei, porque o número 2, vem dizer assim: “Esta Lei não se aplica aquelas pessoas que já foram constituídas arguidas antes da sua entrada em vigor, ou que estejam a responder em processos administrativos ou inquéritos policiais”. Ora, onde é que fica a presunção da inocência? O facto de eu ser constituído arguido não afasta a presunção da inocência da minha pessoa. O que foi constituído arguido hoje, e o que foi constituído arguido ontem antes da entrada em vigor desta lei, estão na mesma situação. Há aqui também uma violação do princípio da igualdade. Sim! É uma aberração. Como é que você vai dizer que quem está a responder um inquérito policial, não pode beneficiar desta medida? Se não há uma decisão condenatória com trânsito em julgado, que é o único fundamento legal e bastante, que vem dizer que “este indivíduo cometeu este crime”, por que até aí, presume-se que eu cometi o crime, por força do princípio da presunção de inocência, com dignidade constitucional do Artigo 67.º do número 2 da Constituição, até que haja essa decisão proferida em última instância com trânsito em julgado, eu sou inocente.  

Por isso, quando as pessoas perguntam, “mas doutor, você é advogado dos marimbondos”? Uma vez eu respondi: “Mas na Constituição há alguma norma que consagra a protecção de insectos? Não há! Eu só defendo pessoas”. E mais: os advogados só defendem o cidadão que a própria Constituição o considera inocente. E, portanto, qualquer um de nós, enquanto advogado, não defende o criminoso. Defende o cidadão que a própria Constituição lhe confere uma presunção de inocência. E quem tem de fazer prova de que ele cometeu aquele crime, é quem o acusa. Não é ele, nem é o advogado, quem tem de fazer prova disso. Quando ele for condenado com trânsito em julgado, aí já não o podemos defender. O que temos de fazer é aconselhá-lo: “Olha aproveite o tempo da privação de liberdade para repensar a sua conduta, para que amanhã quando voltar à liberdade, mostrar a sociedade o lado positivo que ficou ofuscado com a sua condenação”. Este é o nosso papel. 

É preciso que a sociedade compreenda isso, e a Ordem dos Advogados aqui tem uma grande responsabilidade de passar esta mensagem à sociedade porque, infelizmente, muitos de nós não defendemos determinados casos porque temos medo de ser linchados. Eu já vivi situações do género. Falo com propriedade, porque já vivi essas situações. Eu sei que aqui, nesta sala, há advogados que nem querem defender processos críticos de natureza criminal, porque têm medo de ser conotados. Até a minha própria mulher, quando fui defender a Nerika, perguntou-me:

– Mas você mesmo, aquilo que eu vi na televisão é verdade? Então estas a defender aquela mulher que matou o marido? 

Intrigado, perguntei também se ela, sendo mulher, não estava solidária com a outra? – Quem é que te disse que ela matou o marido?

– Mas é o que estão a dizer!

Ah, é o que estão a dizer!

Eu não defendo criminosas. Eu defendo aquela cidadã a quem recai sobre ela, por força da Constituição, a presunção de inocência.

Vamos agora a outra lei, a 15/18 de 26 de Dezembro. Esta lei também tem um problema, e eu chamo aqui a colação essas insuficiências na minha perspectiva crítica construtiva de apontar o que está mal, mas também apontar soluções. Esta lei também tem um problema sério. Todas elas podem comprometer no futuro, tudo aquilo que está a ser feito hoje. Este é que é o meu receio. Esta é a minha preocupação.

A lei 15/18 de 26 de Dezembro, no seu Artigo 1.º diz que ela só se aplica às situações resultantes de condenação em processo penal. Mas o que é que nós assistimos hoje? O Serviço Nacional de Recuperação de Activos e a PGR no seu todo (com o devido respeito) aplicam esta lei na fase inicial do processo. Quase todos os bens que foram apreendidos no âmbito do combate a corrupção, os prédios do CIF, por aí… por aí… foi com base nessa Lei, quando ela está a dizer que só se aplica em situações resultantes de condenações em processo penal. Quer dizer o quê? Que tem de existir primeiro uma condenação, para que esta lei possa ser chamada a colação para responder a determinadas situações concretas. Fora disso, ela não se aplica. Está aqui a violação do princípio da legalidade. A própria lei é que diz isso. Está a ser violado o Artigo 1.º que define o âmbito ou objecto da sua aplicação.

Eu não acredito que é um problema de interpretação, porque a lei é expressa e é clara. Não tem nada que nos dificulte compreender o alcance da norma. Mas, depois esta norma encontra consistência em outros artigos seguintes. Mas há um outro caso curioso que está no Artigo 9.º que diz assim: “O Ministério Público requerer a todo o tempo ao juiz, a apreensão dos bens”, o arresto, que é apreensão judicial de bens. E no número 3 diz assim: “Quem ordena o arresto é o juiz”. Mas depois, vamos encontrar no Artigo 13.º, porque o 12.º cria o Serviço Nacional de Recuperação de Activos e o 13.º define as suas atribuições, o seguinte: “Compete ao Serviço Nacional de Recuperação de Activos: alínea a) Identificar, localizar e apreender bens”. Há claramente uma incongruência na estrutura normativa desta lei. Se no Artigo 9º está a dizer que o juiz é que tem de ordenar a apreensão, é porque o legislador no Artigo 13.º número 1 da alínea a) disse mais do que aquilo que pretendia. Logo, é missão nossa enquanto intérpretes e operadores do Direito e da Justiça, fazer uma interpretação corretiva ou restritiva para evitar essas incongruências ou antinomias estruturais da própria lei. Porque o que a lógica do pensamento do legislador nos aconselha, é, em conclusão, que ele disse mais do que pretendia, porque o que ele quis dizer é: “Compete ao Serviço Nacional de Recuperação de Activos identificar, localizar e requerer a apreensão de bens”. Esqueceu-se de colocar a palavra “requerer”, porque senão todas as outras normas é que estariam mal. E não pode ser! Por maioria de razão, esta é a única norma que está na contramão e então tem de ser corrigida.

Portanto estamos aqui também perante uma incongruência, ou uma antinomia estrutural do próprio diploma, que pode pôr tudo isso em causa. E aqui também está em jogo o princípio da legalidade. Mas também é discutível a aplicação retroactiva desta mesma lei, porque contém normas de natureza processual-penal e de natureza penal. E por isso as pessoas questionam: “Mas como é que esta lei está a ser aplicada, retroactivamente”? O Artigo 65, no número 4 da Constituição diz que, “As leis não se aplicam retroactivamente salvo se for em benefício do destinatário”. E essas normas não são aplicadas em benefício do seu destinatário. Antes pelo contrário, agrava a situação das pessoas. E então, levanta-se aquela discussão: “É correcta a sua aplicação retroactiva”?

Bom! A nossa Procuradoria tem usado aqui um artifício e eu já levantei essa questão. E o que me deram a entender é o seguinte: eles usam sempre a figura do crime continuado, para justificar a aplicação dessa lei à casos ocorridos antes da sua entrada em vigor, que se entende que arguido continuou a praticar os actos proibidos e só cessou quando se detectou que esta pessoa estava em contramão. Mas, esqueceram-se que o crime continuado, do ponto de vista doutrinário, tem requisitos, até porque o instituto do crime continuadoé em benefício do arguido e não em desfavor do arguido. Porque ele comete vários crimes e só responde como se tivesse cometido apenas um. 

Mas o que é que nós assistimos? Que as pessoas não olham para os pressupostos do crime continuado, que é a identidade dos sujeitos que, em regra, está sempre lá, porque é o cidadão que era funcionário público que se locupletou presumivelmente do dinheiro ou dos bens do Estado, e o ofendido é o Estado. Portanto, há aqui uma identidade de sujeitos que não está em causa. Mas há um outro problema, que é a identidade espacial e temporal. O crime continuado não pode ser um acto praticado ontem e dois dias depois você vai lá outra vez e tira um outro objecto. Nestas situações já não há crime continuado. O tolerável é até dentro das 24 horas. Se eu vou a sua casa de alguém subtrair um rádio e levo para minha casa, regresso, verifico que ainda não está ninguém na mesma casa, volto a entrar e tiro o ferro de engomar, deixo em minha casa, volto outra vez, não está ninguém, tiro o televisor, se me apanharem com ele, o crime é continuado. Há entidade de sujeitos, há identidade espacial (o espaço da acção é o mesmo) e há identidade temporal, porque está dentro das 24 horas. Mas nós temos assistido casos que ocorreram em 2012, outro em 2014, um no Bié, outro em Benguela, outro em Luanda e traz-se à colação a figura do crime continuado para se legitimar a aplicação desse diploma.

Eu poderia falar muito mais coisas aqui, mas só para vos dizer que todas essas insuficiências que infelizmente muita gente faz para agradar o Chefe, estão a enterrá-lo. Como aconteceu no passado, estamos a repetir a história. Eu só não quero é que ao Presidente João Lourenço amanhã, terminados os seus mandatos, venha a acontecer aquilo que aconteceu com José Eduardo dos Santos. E, portanto, quem é amigo do Presidente João Lourenço, quem de facto está interessado em ajudar Angola a melhorar e a ajudar o Executivo a governar melhor, tem que ter a hombridade e a coragem intelectual de dizer as coisas em fórum próprio. E este é um fórum apropriado, porque aqui estamos num debate académico. Portanto, eu falo a vontade, assumo e assino por baixo.

A outra questão é a Lei da Probidade. Não se vai conseguir combater a corrupção em Angola, na minha perspectiva humilde, continuando a ter declarações de rendimento ocultas em envelopes A/4 selados. Não estou a pedir que se publique no Diário da República. Não é isso. Não é assim noutros países e o exemplo de Portugal está aí. Há um banco de dados que é público, onde qualquer um tem acesso. Se o meu amigo Zé Carlos for nomeado governador não sei de onde, se eu quiser saber com quanto, ou com que bens é que ele entrou quando nomeado para o exercício daquele cargo, bastará ir ao site digitar o seu nome e aparece tudo: se entrou com um carro chefe máquina que ele gosta muito, se mais um camião…. Volvidos dois anos posso voltar para nova consulta: “Eh pá! O Zé Carlos já tem uma frota de caminhões, têm três padarias, tem mais não sei o quê?…” e posso atacar e exigir que ele justifique onde foi que tirou dinheiro para comprar tudo isso. Até pode justificar, que foi a um banco e pediu dinheiro emprestado…, mas tem de justificar o crescimento brusco do seu património. Porque aquilo enquanto ficar fechado, até eu se for chamado amanhã para exercer esse cargo, também posso pensar, como se diz na gíria, que “agora chegou a minha vez”. Então, a primeira intenção é encher o bolso. E se não cometer nada, se ninguém me apanhar a cometer nada, quando sair recebo o envelope fechado e até já… 

Entendo que o combate a corrupção, mais do que aprovarmos boas leis, temos de identificar e atacar as causas. Porque o que temos assistido até hoje, é o ataque aos efeitos da corrupção. Isto é: quando ouvimos dizer que há alguém que deve ser indiciado por crime de corrupção, o crime está consumado. E, portanto, aí estamos a atacar o que é? Os efeitos da corrupção. Estamos a tapar o sol com a peneira e o sol passa. Por isso é que eu disse no início, que as causas continuam as mesmas, e estão lá. Então, qualquer um de nós (não é falar mal dos outros) nessas circunstâncias e naquelas condições, faríamos igual ou pior que aqueles que estão lá hoje. E muita gente aqui em baixo critica os outros que estão lá em cima. Mas quando chegam lá ficam piores. Isso não é mentira!

Portanto, temos de atacar as causas. Penso que algumas delas poderia passar rapidamente a enumerá-las. Temos o problema dos salários que são míseros. Se o Estado pagar bem os funcionários públicos, ninguém vai aceitar pôr em risco o seu futuro profissional por causa de uma gasosa de mil kwanzas. O meu pai foi funcionário dos Serviços de Identificação Civil no tempo colonial, e eu nunca o vi a receber gasosa. Tinha um salário que permitia sustentar a família por 30 dias.

Outra questão importante, é a falta de outras formas ou meios de pagamento. Aqui tudo tem de se comprar a pronto: queres uma arca, tens de ter os trezentos mil. No tempo colonial – aqui há muitos mais velhos que sabem disso – pagava-se à letra. Chamavam-se a prestações. Você ia a uma loja, levava uma declaração de serviço de uma instituição idónea, e podia levar os eletrodomésticos. E todos os meses era descontado no seu salário. Parece um método supérfluo, mas uma das principais causas da corrupção é a ausência de outras formas de pagamento, o que faz com que a generalidade das famílias vivam sufocadas. E às vezes, as pessoas são obrigadas, mesmo que, involuntariamente, a envolver-se em esquemas. 

Tenho citado muitas vezes o seguinte exemplo: o polícia que sai à rua para regular o trânsito, para garantir a segurança pública, de repente recebe uma chamada telefónica da mulher a dizer que os miúdos não vão à escola, porque o gás de cozinha acabou e não tem dinheiro para comprar outra garrafa. Ele está na rua, põe as mãos nos bolsos e não tem dinheiro nenhum. Olha para o calendário, vê que ainda é dia 12 e percebe que o final do mês ainda está longe. Manda parar um automobilista que violou as regras de trânsito, e que lhe entrega a carta de condução com mil kwanzas no meio. Ele não vai olhar para trás. Está aí a solução para comprar o gás.

E tudo começa por aí. Não há pequeno sem grande, nem há grande sem pequeno. E isso está provado filosoficamente. Ninguém tem um problema menor se não tiver um problema maior. E o contrário também é verdade. Não me podem dizer que esse telefone é grande se não existir o telefone pequeno. Esse telefone passou a ser grande, depois surgiram os prós, e o que era normal virou pequeno. Se não se resolve os problemas pequenos, não se consegue resolver os grandes problemas. Esta é que é a grande realidade. 

Poderíamos citar aqui outras situações relativamente às causas da corrupção. As famílias estão desestruturadas, estão cada vez mais empobrecidas, há uma inversão de valores e as pessoas começam a crescer com determinados hábitos estranhos em relação ao que eram as nossas tradições éticas e morais da igreja. Quase todos nós crescemos na igreja. Hoje há casas em que o pai já não manda. Quem manda é o filho, porque é ele quem consegue trazer o sustento para casa. E o pai não consegue repreender o filho. 

Portanto, há aqui uma série de situações que é preciso elencar, para que possamos definir uma verdadeira estratégia de combate a corrupção. E não apenas ficarmos preocupados se prenderam mais a ou b, batermos palmas porque hoje prenderam o fulano e amanhã vão prender o Joaquim. Mas depois não vemos o resultado desse combate. Ou vemos que o resultado, afinal é desastroso: são os Kero’s que fecharam, uns estão a trabalhar a meio gás e outros não conseguiram abrir até hoje; os Kandando’s que estão em decadência, não têm a qualidade que tinham no passado; é a EFACEC que de repente ficou com o Estado português e não conseguimos dizer nada porque estamos de mãos atadas, e outras coisas mais… 

Resumindo e concluindo, acho que nós temos muito que fazer, e para isso entendo que é importante um debate inclusivo, ouvir todas as forças vivas da nação, transformar o combate a corrupção num combate de todos os angolanos contra este mal que enferma a nossa sociedade, impede o desenvolvimento e a promoção do bem-estar social de todos.

Também entendo que é preciso, no âmbito da dita Revisão Constitucional – eu disse e volto a dizer – que uma das fontes da corrupção também está no nosso sistema de governo, respeitando a opinião alheia. Nós temos um sistema de governo, que dizem ser presidencial, em que o único gestor da coisa pública é o Presidente da República. Eu acho até um risco para a imagem e prestígio da instituição Presidente da República, porque fica exposto num campo ao descoberto. E no nosso sistema, uma vez que os ministros não têm competências próprias, são meros auxiliares do Titular do Poder Executivo, sempre que praticarem um acto duvidoso, o Presidente tem de ser chamado para confirmar se deu ou não aquela orientação. Isto banaliza, vulgariza a instituição Presidente da República. 

É importante sermos mais ousados a repensarmos esse sistema. E penso que o apelo da Igreja Católica vai também um pouco nesse sentido, para que possamos encontrar um outro modelo de governação. Pessoalmente, sou defensor de um modelo semi-presidencial, em que o Presidente da República deixa de ser árbitro e jogador, passa a ser o guardião último da Constituição e o mediador entre os três outros poderes soberanos, o Legislativo, o Executivo e o Judicial. 

O modelo semi-presidencial permite uma partilha de poder e de responsabilidades, que resguarda melhor a instituição Presidente da República. Que haja um primeiro-ministro que lidera o Executivo, governa e presta contas periodicamente aos representantes do dono do dinheiro que é do erário, que são os nossos deputados. Por outro lado, a eleição e nomeação, dos Presidentes dos Tribunais Superiores, para mim também é uma janela que enferma este sistema que nós temos actualmente. Eu sou apologista que os Presidentes dos Tribunais Superiores devem ser os mais votados entre pares. É o mais votado quem deve ser, formalmente, nomeado pelo Presidente da República. Não estou a dizer que ele deixa de nomear. Nomeia formalmente, mas não escolhe dentre eles, qual deve ser. Porque aí, obviamente, somos seres humanos e todos nós temos o coração do lado esquerdo. Eu vou escolher aquela pessoa que é mais amiga. Não vou escolher uma pessoa que eu sei que me vai afrontar, ou que não vai permitir que eu faça o que eu queira ou não fazer. 

Também entendo que o Procurador-Geral deve ser eleito no mesmo modelo, entre pares, e o mais votado é quem deve ser confirmado em nomeação. Assim como nalguns cargos, os Concelhos de Administração de empresas públicas devem ser propostas as pessoas a nomear à Assembleia nacional, como se faz hoje no Banco Nacional, sendo um bom exemplo a seguir. O governador é proposto pelo Presidente, mas passa pelo crivo da Assembleia Nacional. Penso também que ao nível do Executivo, como ocorre no Brasil, nos Estados Unidos também é assim, tem de passar pelo crivo da Assembleia para que haja aqui uma partilha de poderes e de responsabilidades e no final, se existir alguma irregularidade neste sistema, todos eles são chamados à responsabilidade, cada um à medida da sua participação e intervenção. E não deixarmos tudo para o Presidente da República, como tem acontecido. E enquanto estiver no exercício do poder, toda a gente bate palmas, mas quando sai, toda a gente arremessa pedras. Aconteceu com José Eduardo, só espero que não aconteça com o Presidente João Lourenço.

Tenho dito e muito obrigado! 

Perguntas e respostas

Sobre a Conferência…

Essa iniciativa de debate é muito positiva, e por isso acho que no final se deveria produzir um relatório, para que se tenha conhecimento mais amplo do que aqui está a ocorrer. Moçambique, por exemplo, tem o formato de Congresso da Justiça que se realiza de dois em dois anos, cuja abertura é feita pelo Mais Alto Magistrado da Nação, e as decisões e as propostas vão para os órgãos competentes do Estado para análise e acolhimento. Esta seria uma forma de contribuirmos, de forma urbana e positiva, para melhorar a qualidade da administração da Justiça que todos nós clamamos.

Este é o caminho certo para voltar a credibilizar as instituições. Agora, fica mal na fotografia até o próprio Presidente da República que usou o Artigo 108 número 5 para tirar a senhora (Exalgina Gamboa, ex-juíza Presidente do Tribunal de Contas) e não usa o mesmo Artigo 108 número 5 para tirar o Presidente do Tribunal Supremo. Eles estão na mesma situação. Eu não estou a dizer que eles são culpados. Não! Muito longe disso. Estou preocupado com a imagem das instituições, com a credibilidade das instituições. E parece que ainda continua a dirigir sessões do Conselho Superior da Magistratura Judicial. Em Portugal, vocês viram que aquela senhora que foi administradora da TAP só porque recebeu determinada importância de indemnização, no exercício de novas funções de Secretária de Estado, levantou-se a poeira até ao nível da Assembleia da República, de imediato demitiu-se para proteger a imagem e credibilidade da instituição de que era titular. E deveríamos também seguir os bons exemplos lá de fora.

Porquê que o combate à corrupção não ataca as causas? Quem rouba galinhas é preso e quem rouba milhões está em liberdade?

Põe-se também aqui, como se diz na doutrina, o próprio carácter de classe do Direito Penal. O meu professor, Dr. Orlando Rodrigues, perguntava nas suas lições: “Você sabe porque é que o parricídio é um homicídio qualificado e por isso punido com uma pena mais grave, mas quando o pai mata o filho é um homicídio com outro qualquer?” 

A resposta é simples: “Porque quem fez a lei foi o pai”

Claro que o pai ao fazer a lei, fez no sentido de assegurar a sua própria protecção. Quem faz a lei é quem tem dinheiro e não quem não tem dinheiro. Mesmo quando abordamos essa matéria do combate a corrupção, o Código Penal actual, relativamente ao peculato, foi público que o Presidente da República, a determinada altura, devolveu o diploma para se agravar a pena. Mas se vocês olharem para a lei, do ponto de vista técnico, a penalidade aplicada ao peculato hoje é mais branda até que aquela que era aplicada no Código Penal Anterior, que no Artigo 421.º número 5, conjugado com o 113.º, que manda agravar, aplicando-se a imediatamente superior, isto é, a pena era de 12 a 16 anos de prisão maior. Hoje, no Novo Código Penal, a pena vai de 5 a 14 anos. Até no mínimo é uma penalidade mais branda que a que constava na lei antiga. 

Enganaram o Presidente. O diploma voltou, simularam que agravaram a pena, o Presidente não viu, porque não entende e aceitou. Mas se compararmos, vamos concluir que enganaram o Presidente. Hoje, o crime de peculato é punido com uma pena mais branda que ontem, porque ontem no mínimo você era condenado a 12 anos e no máximo 16. Hoje você no mínimo pode ser condenado a 5 e no máximo 14. Então como fazer a comparação de agravamento? Não há. Houve sim, uma redução. Portanto, quem fez a lei é quem tem dinheiro e ludibriou a intenção política do próprio Presidente da República.

Sobre a apreensão de meios e bens e a sua distribuição a PGR e tribunais na ordem dos 10% do valor das apreensões…

Para mim, isso é inconstitucional, porque os bens apreendidos constituem receitas do Estado. E tudo o que é receita do Estado deve constar no Orçamento Geral do Estado. Não pode o Presidente da República dispor de bens públicos, só porque foram apreendidos, fora do Orçamento. O único instrumento de gestão da coisa pública, constitucionalmente reconhecido, é o Orçamento Geral do Estado. E isso está nas competências absolutas da Assembleia Nacional. O Presidente da República deveria propor à Assembleia, que o aproveitamento do que possa resultar das apreensões, 10%, beneficiem os órgãos da administração da justiça e não apenas a PGR e os tribunais. Porque não são apenas eles que trabalham no combate à corrupção. A Investigação também.

Podem argumentar que isso não é para beneficiar pessoalmente os magistrados, mas sim a instituições, para criar (ou melhorar) condições de trabalho. Mas os últimos beneficiários são mesmo os magistrados. E eu comparo essa situação com o instituto da Cota litis que é proibido aos advogados. No estatuto da Ordem, ao advogado é proibido que se transforme em parte do problema, porque senão, ele usa todo o tipo de artifícios para ganhar a causa. Eu sou contra essa ideia de ganhar causas. Essa é outra janela de entrada da corrupção na administração da Justiça. É ganhar causas. E quando um advogado acha que só deve ganhar causas, e já tem nome na praça que só ganha causas, tudo faz para continuar a ganhar causas, mesmo que para tal, tenha que trilhar caminhos ínvios.

Eu acho que é inconstitucional, e dei uma entrevista no ano passado ao semanário Expansão em que considerei isso como a institucionalização da corrupção do poder político aos órgãos judiciais e judiciários, porque está aqui a PGR, porque o juiz, o procurador, não se deve sentir parte do problema. E quando lhe aparece um processo de milhões de dólares, ele começa a fazer as contas com base nesses 10% dos milhões que dão outros milhões, que vão dar para melhorar as condições de funcionamento do tribunal, comprar mais carros, mudar os aparelhos de ar condicionado que já não trabalham bem, mudar o chão…. Portanto fere a verdade material e põe em causa a boa administração da Justiça. Na minha opinião esse diploma é inconstitucional.

Sobre se a inconstitucionalidade não pode ser citada pela Ordem de Advogados…

Pode sim, e a Ordem já fez isso, inclusivamente na Lei Sobre as Medidas Cautelares levantou uma inconstitucionalidade que eu já havia levantado muito antes no caso Quim Ribeiro (que já transitou em julgado e por isso posso falar dele à vontade). E a questão era por que razão o Ministério Público aplicava medidas de coação privativas de liberdade. Eu já coloquei essa questão em 2010/2011. E há um Acórdão do Tribunal Constitucional que dizia, que “estava bem assim”, porque não há nenhuma norma na Constituição que consagra a existência do Juiz nesta fase inicial do processo, hoje chamado de Juiz das Garantias, e fazia-se uma interpretação errada do Artigo 186, alínea f, primeira parte e segunda que diz “que o Ministério Público dirige a instrução preparatória”. E a ideia das pessoas sobre “dirigir a instrução preparatória” era de que ele era o dono e senhor da instrução preparatória. Faz e desfaz na instrução preparatória, esquecendo-se que na alínea f tem uma vírgula e uma segunda parte que diz, “sem prejuízo da fiscalização das garantias fundamentais dos cidadãos por Magistrado Judicial, nos termos da lei”

Portanto, eu nessa altura já defendia que a Constituição consagrava que um juiz, (chamem o nome que se quiser, das garantias, das liberdades, ou de instrução ou outro) que não dirige a instrução preparatória nem era dono e senhor da instrução preparatória, mas sim, que fiscaliza e garante o respeito pela liberdade e garantias fundamentais dos cidadãos. Esse é o seu papel. Nessa altura já defendia isso e diziam que não. Mas depois veio a Ordem de Advogados a levantar o mesmo assunto, e o Tribunal Constitucional produziu uma decisão muito interessante. Reconheceu a inconstitucionalidade da norma, mas repôs a inconstitucionalidade dessa mesma norma, referindo o seguinte: “No entanto, enquanto não estiverem criadas as condições para o funcionamento do Juiz de Garantias, o Ministério Público pode continuar a aplicar as medidas de coação privativas da liberdade, até que o Estado crie condições”. Se o Estado não criou em cerca de cinco ou dez anos, não ia criar num ano. E estamos agora em 2023, já se passaram cerca de três ou quatro anos e só agora, em Maio, é que se vai ensaiar essa figura.

É só para ver que naquela altura tinha pessoas, até constitucionalistas, que defendiam que nós não tínhamos consagrada a figura do Juiz de Garantias no nosso ordenamento jurídico-constitucional. Porque se fazem interpretações isoladas das normas, quando elas não devem ser interpretadas fora do contexto em que estão inseridas, em homenagem ao princípio da unidade e da harmonia da ordem jurídica. E nessa altura usando como argumento interpretativo da Constituição, a referência ao nº 2 do Artigo 34, que diz “que para abrir a carta de um cidadão é preciso autorização de um juiz”. E então para prender o dono da carta não é preciso também autorização do juiz? Não faz sentido! Se para você abrir a minha carta tem de ter autorização do juiz, então para prender o dono da carta não precisa de autorização daquele entidade? Há aqui uma inversão de valores.

É essa a questão que tem de ser vista, da mesma forma que induziram o Presidente da República em erro quando interpretou o Artigo 175.º fora da Constituição. Como que os Tribunais não são órgãos de soberania independentes na sala de audiência, mas fora da sala de audiências, o Presidente, na qualidade de Mais Alto Magistrado da Nação, manda neles. Este artigo deve ser interpretado em conjugação com outras normas da Constituição, v.g., o Artigo 2º, número 2, o 105.º, o 108.º e outros…. É preciso conjugar-se tudo isso para se compreender o alcance dessa norma. E, portanto, são situações que nós enquanto estudiosos e juristas devemos ter a coragem de abordar em sede própria e trazermos soluções para quem de direito, assim, possa corrigir a situação.    

Já ataquei essas questões de inconstitucionalidades aqui referidas, mas as vezes fico com a impressão de que isso é intencional, que alguém não faz correctamente e por uma questão de orgulho, diz que enquanto eu estiver aqui, eu mando e isso vai continuar, a espera que saia, para depois acontecer o mesmo que aconteceu ao ex-Presidente José Eduardo dos Santos.

Não façam isso com o Presidente João Lourenço.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

PROCURAR