Caem pedras sobre as flores

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Para conhecer uma bela flor, 

é necessário saber lidar com seus espinhos

Autor desconhecido

O título sugere algo de inspirador, coisa como o perfume da poesia. Deixa transparecer erradamente tendência da qual, falando verdade, nunca estive próximo nem sequer disponível para estar. A poesia é mesmo inspiração. É o exemplo da arrumação de palavras tratadas com esmero em estrofes e versos, estes cada vez mais sem rima, mas geralmente com o requinte da palavra escrita pelos mestres dessa arte. A poesia sempre se afastou de mim. Ou eu dela, por pura incapacidade de lidar com os ditos versos, com a sua métrica e com a sua sonoridade. Talvez seja, e este caso até pode conter um pouco de tudo isso, devo admitir. Pergunto-me então sobre as razões que fizeram raros os momentos em que estive disposto a tentar a procura de um sinal da poesia, com o mesmo entusiasmo com que vou à cata de outros textos? Não sei, é a minha resposta. 

Não será por acaso que a minha pequena biblioteca não é, nem poderia ser nestas circunstâncias, considerada rica em títulos dessa importante área da literatura. Porém, esse facto não pressupõe um divórcio do género, uma vez que quando é inevitável a necessidade do contacto, busco referências e, claro, encontro sempre autores e obras que fazem da poesia (aí abro olhos à realidade), um assunto muito sério na maioria das literaturas mundiais. Ao lembrar-me dela nestes dias de movimentação cultural, distingo a obra poética de autores de toscos versos com rima esforçada. Com outro olhar, observo aqueles que me obrigam a fazer rasgadas vénias à sua poesia, sempre com estética e laborada com rigor. Todas as exaltações aos poetas vivos, aos mortos e aos imortais de todas as latitudes, aos mestres que fizeram desta arte um sacerdócio, uma universidade, serão poucas as cortesias para os homenagear condignamente.

Foi com acento poético que se celebrou o dia 25 de Maio. Em Angola, particularmente em Luanda, como em todo o continente, festejou-se o dia de África. Nesse dia especial, todos os anos se transforma África no nosso mais belo jardim, no campo das nossas mais fundadas esperanças, um território onde as flores nascem raras de beleza, únicas, como nenhumas em todo o mundo. Exaltam-se as maravilhas da natureza e a riqueza dos seus solos. É assim que a vemos, nesse dia do nosso orgulho. África é toda nossa em 25 de Maio. Nesse dia ela transforma-se num jardim repleto de flores espontâneas das mais variadas cores e matizes. Elas obrigam-nos a sonhar. Com elas, com as flores a abrirem-se à luz e a fazerem-nos sorrir, meditar e perguntar. Qual delas é a flor mais formosa, a de melhor cheiro, a mais útil? No seu sorriso, a vaidade e mil pedidos escondidos, reclamando primeiro por melhor tratamento, um cuidado que dê arranjo a cada um dos inúmeros canteiros que enfeitam o território africano. Exigem cuidados recheados daquele amor especial não comprado nem emprestado, chamado de amor à terra, um adubo forte com que as flores e as plantas merecem ser tratadas pelos jardineiros que lhes conhecem a origem, a raiz e o caule. E aguardam pacientemente, anos atrás de anos, que esse cuidado especial a ter com elas não seja descurado, que seja entendido como um dos factores mais importantes para o desenvolvimento harmonioso dos nossos jardins, para evitar a todo o custo que sobre eles caiam pedras. 

Não obstante, caem permanentemente pedras sobre elas, pedras dos mais variados feitios e que ferem, machucam e emporcalham com o lixo da corrupção, da mentira, das guerras, dos genocídios, da má governação, do narcotráfico, da bruxaria, e, dentre os vários males, o pior de todos, a ignorância, o obscurantismo. São pragas que nos remetem sempre e naturalmente a um conjunto de reflexões sobre a nossa condição de africanos, e, quase sempre, a conclusões desagradáveis, pelas muitas razões que são sobejamente conhecidas por todos nós. Todavia, o tempo, os erros cometidos e a experiência que se acumula, têm ajudado a entender os fenómenos que a manietam e impedem o seu crescimento. Começamos a ter outra atitude. Apesar de alguns ainda fazerem de África um continente misterioso. Não exactamente pelas lendas e hábitos ancestrais, pelo fascínio que emana do continente negro, nem sequer o estigma da miséria que a envolve parece tão forte, porque todos estes elementos vão paulatinamente passando à história, mas ainda não evitam que periodicamente ainda obrigam a questionamentos do género, “por que África não é desenvolvida economicamente?”. 

Medito ainda sobre o alcance da epígrafe desta coluna. Como tudo o que nasce espontâneo, fica difícil explicar, a não ser referir que uma série de factores políticos e históricos são causa maior do complexo do colonizado que persistimos em carregar, um sentimento que nos conduz à ideia de o nosso continente ser sistematicamente maltratado com pedras poderosas, todas elas de um tipo mortífero. E nessa agressão permanente, repito-me, não escapam as mais frágeis flores que se plantam e florescem na imensidão dos territórios africanos. 

Retorno ao dia de África, para dizer que ele esteve presente na União dos Escritores Angolanos. A instituição associou-se à efeméride e anunciou o retorno às “Makas à quarta-feira”. O tema inaugural do novo ciclo centrou-se na abordagem do “Estatuto da Literatura Africana no Contexto Lusófono” tema muito bem explorado pelo dr. Sabino Ifukieto, docente da nossa Faculdade de Letras. Mas os poetas pareceram-me ausentes, a poesia angolana fluiu pouco e os ilustres membros mostraram dificuldades em juntar-se e ajudar a dar voz a quem a tem fraca. Deles se espera que clamem por justiça, não permitindo que as pedras continuem a maltratar as nossas flores mais estimadas.

Colada ao dia de África, está a data sangrenta do 27 de Maio de 1977, que mantém ferida a sociedade angolana. Neste dia, a par de várias manifestações alusivas à data, abriu o Congresso da Nação, que abraçou a tarefa de conseguir consensos para um Projecto de reflexão séria sobre o futuro de Angola. Ainda neste dia, a Dra. Maria Luísa Abrantes lançou o livro “Uma vida de luta – Estórias esquecidas da História”, um trabalho de muita coragem, rico na descrição de acontecimentos, nomeadamente os do 27 de Maio, e que vai ajudar a esclarecer dúvidas sobre algumas das várias ocorrências dessa data fatídica. Entretanto, a professora Ana Clara Guerra Marques e a sua Companhia de Dança Contemporânea de Angola brindaram a cidade de Luanda com uma série de espectáculos da peça “Isto é uma mulher?”. Tive oportunidade de a ver, e só tenho uma palavra para ela: excepcional! Que não a perca, quem gostar de Arte, na sua expressão mais pura e real. E obriga-me a dizer, “por favor, não deixem cair mais pedras sobre as flores”.

Por hoje é tudo. Termino constatando a viragem que Angola, África e o Mundo tentam empreender. Viajo no meu sonho e embarco timidamente nesta ousada tentativa de me aproximar da poesia, falando das nossas flores, da nossa riqueza, identificada nos actos de cultura que presenciei.

Despeço-me dos meus leitores, amigos e companheiros de luta. Até domingo próximo, a hora do matabicho.

Luanda, 28 de Maio de 2022 

One Comment
  1. Mais um artigo belíssimo, completamente de acordo em relação à poesia!!!!!!!!!!!!!! saludos da Argentina

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