BRASIL-ANGOLA E O RECONHECIMENTO DA INDEPENDÊNCIA EM 1975

No decurso da presidência de Ernesto Geisel no Brasil (1974-1979) inicia-se uma nova era na política brasileira para Angola. Os brasileiros chamaram-lhe “pragmatismo responsável e ecuménico” e esta política tentava incluir os países africanos, os árabes e os países do então campo socialista. Foi o início da campanha brasileira pelo que apelidaram de multilateralismo

POR: SANTOS SEBASTIÃO PEDRO 

A ligação a Angola

O Brasil há séculos que está historicamente ligado ao continente africano, às colónias portuguesas e, particularmente, a Angola. O relacionamento entre o Brasil e Angola provem do século XVI, quando os dois territórios eram parte do império português, embora cumprindo objectivos diferenciados nos processos de exploração e de colonização. O Brasil possui uma boa fatia da sua população de origem africana, com referência à escravatura e parte considerável foi levada de Angola.

Depois da fundação de Luanda, em 1575, os portugueses estabeleceram aí um importante ponto para intensificação do comércio de escravos. Nas relações comerciais entre os dois territórios, entre outros, trocavam-se aguardente e tabaco brasileiros por escravos de Angola. A monarquia portuguesa tratava de garantir, no Brasil, mão-de-obra necessária às plantações de cana-de-açúcar e tabaco e às minas de ouro para enriquecimento da coroa.

Com a independência do Brasil em 1822, as relações entre os três territórios alteraram-se. Com o desenrolar dos desenvolvimentos separados começou a haver algum receio da ligação directa entre o Brasil e Angola, nomeadamente da parte da Inglaterra. Esta forçou a abolição da escravatura com o objectivo de prosseguir os seus interesses comerciais. Segundo Martins a diplomacia inglesa via na extinção do tráfico “… uma maneira de romper as ligações entre o Brasil e Angola e evitar a formação de um império Sul-Atlântico, sob o domínio brasileiro” (2002, p.98). com estes objectivos, a Inglaterra condicionou o reconhecimento internacional da independência do Brasil. Para evitar dificuldades acrescidas, o Brasil garantiu a Portugal, através de um Tratado, em 1825, que não tencionava, a qualquer título, anexar nenhuma das suas colónias em África.

Em meados do século XIX, o fim do tráfico negreiro e as novas culturas agrícolas brasileiras, em especial com a introdução do café e da mão-de-obra imigrante, fizeram com que existisse mais do que um século de suspensão nas relações entre os dois territórios. O Brasil foi privilegiando as relações com a potências colonizadoras até à década de 1950.

Relativamente à sua política externa o Brasil efectuou ligações diversas conforme os seus interesses de desenvolvimento até que, no decurso do segundo mandato de Getúlio Vargas (1951-1954), o Brasil assinou o Tratado de Amizade e Consulta com Portugal, em 1953. A partir daqui se gera uma ambiguidade na política externa brasileira: por um lado cumpria o estabelecido no Tratado com Portugal (apoiando a sua política colonial); por outro lado, com a emergência das independências depois da Segunda Guerra Mundial, o Brasil via-se tentado a mostrar interesse pelas colónias pois se previa a existência de futuros países independentes.

Durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960) notou-se uma colagem aos EUA após o lançamento da Operação Pan-americana[1]. Durante o governo Jânio Quadros (1961) traçou-se a primeira estratégia orientada para África: criou-se o Departamento de África no Itamarati[2] e instalou-se as primeiras embaixadas brasileiras em países africanos (Gana, Quénia, Senegal e Nigéria). O presidente Jânio criou, em 14-04-1961, o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-asiáticos (IBEAA); o Itamarati criou o Grupo de Trabalho para África que deveria apresentar “… conclusões sobre missões diplomáticas nos novos Estados africanos e propor medidas económicas, comerciais e culturais” (Relatório, 1983, p.183).Nesta altura o Brasil tentava implementar uma política externa com alguma autonomia relativamente aos EUA, aproximando-se também dos países do leste europeu e dos países asiáticos. O Brasil pretendeu inserir-se nas teses terceiro-mundistas e lançou a política dos 3D’s (desarmamento, desenvolvimento e descolonização) na Assembleia da Nações Unidas, através do seu embaixador João Augusto de Araújo Castro. A política externa passou a ser o instrumento indispensável para a realização dos projectos nacionais, uma vez que o desenvolvimento industrial era a justificação de tal política. Foi nesta altura que o Brasil, nas Nações Unidas, votou contra diversas posições colonialistas, mas relativamente às colónias portuguesas abstinha-se de votar devido ao Tratado assinado em 1953.

O Aprofundamento das Relações

O movimento pela independência de Angola coincidiu com o processo de descolonização afro-asiático ocorrido na segunda metade do século XX. Os regimes autoritários de António Salazar (1932-1968) e Marcelo Caetano (1968-1974), ambos defensores do poder colonial, também defendiam a ligação contínua das colónias ao Estado português. Para mascarar a situação colonial, alterou-se a designação oficial de “Colónia” para “Província Ultramarina” de Portugal (1951).

Em 1975 a tensão agravou-se em Angola quando, em resposta às intervenções sul-africana, a sul, e zairense, acompanhada por mercenários de origem diversa, a norte, o primeiro contingente de tropas cubanas chega a Angola nas vésperas da sua independência. É de ressaltar que, em pleno contexto de Guerra fria, existia uma forte unidade entre os colonizadores e demais poderes aliados, enquanto entre os chamados libertadores existiam clivagens motivadas pelos interesses que se propunham defender e pelos diferentes apoios que mantinham.

Num contexto marcado por impasses, por lutas entre os chamados libertadores, no interior dos seus próprios movimentos (incluindo o MPLA) e por pressões internacionais sobre o governo português e os seus partidos políticos, o MPLA declarou unilateralmente a independência a 11 de Novembro de 1975, sustentado por forças cubanas (armas e homens).

O conflito em Angola deve ser compreendido através de algumas componentes, nomeadamente: a) a luta de libertação e as suas componentes; b) o contexto da Guerra Fria; c) o conflito regional, com a África do Sul a tentar impor-se como polícia da região; e d) o conflito interangolano[1].No decurso da presidência de Ernesto Geisel no Brasil (1974-1979) inicia-se uma nova era na política brasileira para Angola. Os brasileiros chamaram-lhe “pragmatismo responsável e ecuménico” e esta política tentava incluir os países africanos, os árabes e os países do então campo socialista. Foi o início da campanha brasileira pelo que apelidaram de multilateralismo. Nos organismos internacionais o Brasil passou a assumir uma postura contra o colonialismo e contra o racismo. Como consequência desta política o Brasil instalou uma Representação Especial em Luanda, sob o comando do embaixador Ovídeo de Melo, em 22 de Março de 1975, bem antes da independência. Foi neste contexto que as relações entre o Brasil e Angola se estabeleceram ad factum. O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a República Popular de Angola, com o MPLA no poder. Como forma de cooperar com o jovem país o Brasil procurava “… ampliar a sua influência diplomática e económica em África e equilibrar politicamente a presença cubana no Atlântico Sul” (Vizentini, 2003, p.94).

O reconhecimento da República Popular de Angola pode ser entendido como parte da estratégia brasileira (ou do imperialismo) no sentido de se colocar como charneira entre os interesses dos países do chamado primeiro e do terceiro mundos. Segundo Dombe “… assegurando assim, através das brechas surgidas na economia mundial, um espaço próprio para reprodução do seu capital” (1997, p.69).

A disfarçada invasão estrangeira financiada pelo exterior, nomeadamente pelos EUA, era mais um elemento da Guerra Fria. “As pressões internacionais e internas sobre o Itamarati certamente aumentariam” (Melo, 2000, p.381). A partir desta postura e da independência, “criaram-se as condições” para que a Representação Especial brasileira se transformasse em Embaixada, com Rodolfo Godoy de Souza Dantas a representá-la. Este acontecimento teve lugar em Maio de 1976, onde Neto afirmou a esperança de que “… um desenvolvimento real e plurifacético entre os povos brasileiro e angolano se verifique num futuro breve” (Neto, 1976, p.98).

A partir do reconhecimento da independência angolana, o Brasil passou a ter uma visibilidade privilegiada em Angola, onde se considerou um interlocutor ocidental junto do governo do MPLA. Santana refere que esse reconhecimento também funcionou “… como um sinal para os EUA no jogo de força que vinculava essa questão ao projecto nuclear brasileiro, ao desenvolvimento da indústria bélica e à própria busca de autonomia energética via construção de hidroeléctricas… A questão angolana garantiu grande visibilidade à diplomacia brasileira e resultou numa relação privilegiada entre o Brasil e Angola…” (Santana, 2003, p.159). 

Do ponto de vista de parte do governo angolano, o reconhecimento brasileiro indicava o encontro de um parceiro capaz de oferecer perspectivas de cooperação económica na difícil situação em que se encontrava. Em Angola, para alguns, para além das identidades histórica e cultural comuns, abria-se a possibilidade de relações de cooperação, mas para outros, havia a acrescentar as relações a nível político. Tenho memória o caso de um ministro do Comércio, Beto Vandunem[4], que, durante uma visita oficial (para compras[5]) ao Brasil declarou estar “no país que gostava que fosse o seu”. De recordar que o Brasil se encontrava em plena ditadura militar, na altura já com João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1985) na presidência, pelo partido ARENA. “A ditadura perfeita terá as aparências de democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão” (Aldous Huxley, 1894-1963).

Referências

[1] Recebeu o nome de Operação Pan-americana (OPA), uma iniciativa da diplomacia brasileira, sob o governo de Juscelino Kubitschek e que tinha como objectivo unir todos os países do continente americano, combatendo assim a pobreza, o subdesenvolvimento e demais carências comuns a todas as nações americanas.

[2] O Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

[3] Entre os movimentos de libertação e no interior dos mesmos.

[4] Carlos Alberto dos Santos Pereira Vandunem (28-07-1935/17-01-2020), ministro entre 1978 e 1981.

[5] Este ministro ficou conhecido como “Beto Ki-Suco” e “Beto Morteiro” devido a dois produtos pornográficos adquiridos no Brasil. Ki-Suco era um pó químico, com sabores diversos, em pequenas saquetas para uma quantidade de água generosa, que tingia a língua e os dedos. Refresco execrável! “Morteiro” era um vinho de qualidade bastante questionável, com o nome de Mosteiro. Reportaram-se, na altura, vários falecimentos por ingestão deste vinho. Recordo um consumidor que, após ingestão de um copo deste vinho, ficou com parte do corpo dormente. O vinho era tão mau que a população o apelidou de “Morteiro”.

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