AS VIRTUDES DO CINEMA

 A CONFERÊNCIA

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Em todo o mundo e desde que o cinema é cinema, a chamada “sétima arte” desempenhou, e vai desempenhando ainda, um papel fundamental na educação e aculturação das pessoas. Embora já não me sinta com o espírito “cinéfilo” dos tempos da minha mocidade, em que fui um viciado, autêntico militante do cinema, não me divorciei dele. Porque, para mim, o espectáculo cinematográfico, já não sendo hoje o que era, continua a ser uma instituição de ensino que educa, esclarece e refina o bom gosto do cidadão espectador. Por isso o respeito e o aprecio sempre com muita seriedade. Sou de tal modo apaixonado, que faço o possível por acompanhar todos os anos, mesmo de longe, os meandros dos Festivais Internacionais de Cinema de Cannes ou de Veneza e da atribuição dos Óscares de Hollywood, onde o cinema é tratado a alto nível pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Não tendo outras hipóteses, limito-me a recordar agora o tempo em que aos sábados ia à matinée do Cine-Miramar, aproveitar o preço de saldo na época do “Festival dos Grandes Êxitos”, com filmes de qualidade a serem exibidos. Ah! Que saudades!

Sou daqueles indivíduos que pensam no cinema numa perspectiva de fonte histórica, tal como ele é na realidade. É, pois, a partir deste ponto de vista, que encaro alguns filmes que vou vendo. E embora vá escasseando a qualidade de oferta para espectadores da minha idade (talvez não seja correcto dizer isso), volta e meia surge no mercado uma fita que me inspira. Aconteceu isso há meia dúzia de meses, quando, aqui em Lisboa, por feliz acaso, decidi ir ver “A Conferência”, um filme alemão do qual nem sequer tinha lido a sinopse. Foi num daqueles fins de tarde em que queria fugir da fatigante conversa política dos últimos dias, de nada querer saber das coisas do país, muito menos do estrangeiro, das bárbaras opiniões veiculadas nas redes sociais, onde a banalidade do que se discutia já tinha tomado conta dos assuntos diários, oscilando entre um mimetismo irritante e o genuíno empenho das muitas ilustres personagens da cena política indígena, principalmente estes, a mostrarem-se com as suas reais circunstâncias.

Não tem sido por acaso que, volta e meia e nesta coluna, comento ou faço analogias de temas cinematográficos, comparando-os com a realidade da vida actual no mundo. Em regra e à minha maneira, confronto-os e medito sobre eles. É o que tentarei fazer em relação a este filme. Principalmente porque, à partida, é daqueles que pode ficar para a história do cinema. De facto, a Conferência de Wannsee, por virtude de tudo o que rodeou essa célebre reunião, do seu alcance político e humano e, sobretudo, da fatalidade que cairia sobre o destino de milhões de seres humanos com as traumáticas consequências que se conhecem, é considerada pelos especialistas, a mais terrível reunião da história humana que o cinema produziu até hoje. 

Confesso que não contava enfrentar em cinema uma memória tão impiedosa, a descobrir desassombradamente a parte mais trágica do Holocausto. Conhecia a realidade de certos factos como a maioria contemporânea (talvez) conhece. Mas por alto, não com tamanha profundidade. Mesmo sem nenhuma cena de violência explícita, a maldade e o desprezo pela vida dos judeus são postas a nu de um modo cruel, incomodativo, humilhante. As pessoas são tratadas como seres insignificantes e, surpreendentemente para mim, constatei que algumas delas, vítimas da tirania nazista, eram consideradas mestiças. Desconhecia a tendência. Eram coisa sem valor nenhum. Horrível e miserável, a descrição! Mas era assim mesmo que se tratavam os filhos de judeus nascidos na Alemanha e noutros países europeus. Eram vistos como mercadoria podre, algo a ser exterminado. Chegado a este ponto, vieram-me inevitavelmente uma série de imagens à mente, relacionadas com a mesquinha diferenciação feita por pessoas que, infelizmente, ainda hoje e em todo o mundo, descriminam o seu semelhante a partir do preconceito racial. Passei-me para o nosso lado. Entre os vários dramas vividos pelo povo angolano, o da mestiçagem é também considerado com alguma lógica, a desgraça da raça. E, não por mero acaso, lembrei-me de um dos mais famosos poemas de Viriato da Cruz que aborda o tema:

“Mas deixa…

Quando Sô Santo morrer,

Vamos chamar um kimbanda

Para N`gombo nos dizer

Se a sua grande desgraça

Foi desamparo de Sandu

Ou se é já própria da raça…”

É verdade, sim, que se aprende sempre alguma coisa com o cinema. Eu, que não estava preparado para enfrentar aquela história macabra, nunca supus que em Wannsee, uma zona especialmente acolhedora e idílica nos arredores de Berlim, naquele frio dia 20 de Janeiro de 1942, estivesse a ser decidido o fim da vida de mais de quatro milhões de seres humanos, que se juntariam a outros tantos infelizes até ao final da Segunda Guerra Mundial. Falava-se do extermínio de crianças e dos mestiços com uma naturalidade impressionante. Faziam-se contas sobre o custo das balas que seriam necessárias para “despachar” aquela gente; engendrava-se um gigantesco esquema para fazer desaparecer os cadáveres dos sacrificados. Apesar de um ou outro assomo de bondade (incrível naquele contexto), e enquanto mero espectador do filme, fui sendo surpreendido pela sequência de imagens, reveladoras da maldade intrínseca em certas pessoas. Estava ali reunida a organização que, burocraticamente, planejava o sistemático assassinato em massa dos judeus de toda a Europa. Até encontrarem a chamada “Solução Final”.

O Encontro estava a ser liderado por Reinhard Heydrick, um dos principais organizadores do Holocausto. O filme dá especial importância às palavras usadas pelos quinze homens presentes, distintos oficiais das SS e de determinados ministérios (há também uma mulher, encarregada de redigir a acta da reunião) no sentido de, em poucas horas, entre conversas e algumas pausas para café e bolinhos, programarem a morte de muitos milhões de seres humanos. Ali estava eu a assistir a um filme duro e indigesto em diversos momentos (foi assim classificado por um comentador). A discussão naquele momento da Guerra não era sobre armas, mantimentos, comida ou transporte. Discutiam ali o destino de pessoas, e de como se poderiam livrar desse problema criado pela própria Alemanha. 

É sabido que, em todo o mundo (ou quase todo) há ou houve o registo de genocídios brutais, como são sempre todos eles. Quase sempre com a marca inqualificável da injustiça. Em Angola, em épocas distintas, também presenciamos o selo implacável desse fenómeno, a marca tenebrosa da eliminação em massa de pessoas. Por outro lado, também sabemos bem o que a descriminação racial envolveu e envolve, para além dos conflitos que foi despoletando. Conhecemos igualmente e apesar de algum alarido em seu redor, o pouco das acções que se fazem, oficialmente, em relação ao combate dessas práticas aberrantes, pouco dignas para os princípios e comportamentos humanos numa sociedade moderna. Que deveriam, quanto a mim, ser cortadas e condenadas ao mais pequeno gesto ou palavra.

Mas, voltando ao cinema e pegando o fio à meada, direi que sempre que posso, não deixo escapar a oportunidade de ver um bom filme. Gosto de sentir a influência que ele pode exercer sobre mim, assim como gosto de apreciar um bom filme em sala de ecrã gigante. Os da televisão, mesmo os de maior dimensão, só imitam, e transmitem com menor sensação, aquele insuperável aliviar dos espíritos quando se acaba de ver um filme. Todavia, no cinema ou em casa, saio sempre dessas sessões com uma ideia que é quase certeza. Muitos dos actuais protagonistas da cena político-social do momento, terão, a dado momento das suas vidas, o seu carácter, bom ou mau, os seus actos, quaisquer que sejam, completamente descobertos pelas janelas indiscretas do cinema. É uma das suas virtudes. Não terão como escapar desse julgamento público. De ocultar as suas vidas pouco transparentes. Eles próprios ou os seus descendentes, os lacaios de hoje e os descendentes desses, através de interpretações de actores e actrizes que se irão descobrir, e que serão, quase ou muito parecidos com os muadiês protagonistas de hoje, serão submetidos ao julgamento que a história e as sociedades reclamam. Leve o tempo que levar!

Vamos a caminho de assinalar o centenário do Holocausto (ainda estamos a duas décadas), e o racismo e o preconceito mantêm-se em todo o seu esplendor, com todos os seus horrores e perigos. Fazendo a estrada da diferença que separa as pessoas. Apesar de, mesmo com as possibilidades cada vez maiores de vermos a mexer em ritmo acelerado o íntimo de uns certos puristas desgraçados, doentes e obcecados pelas diferenças raciais, continuarmos a apreciá-los, serenos e impunes, no alto das suas incríveis loucuras.

Bom, por hoje chega. É hora de deixar os bastidores do crime monstruoso, para entrar na realidade da nossa vida atormentada, sempre à espera que a nossa questão, a que mais nos interessa agora, seja brevemente resolvida, sem recurso a qualquer acto de violência.

Com os meus respeitosos cumprimentos, despeço-me de todos, com votos de boa saúde e melhor disposição para a leitura. Até ao próximo domingo, à hora do matabicho.

Lisboa, 2 de Setembro de 2023

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