“Os problemas do nosso país não residem no facto das lideranças serem masculinas ou femininas, mas na ausência de estratégias realistas de investimento nas pessoas, por forma a termos quadros (a todos os níveis e em todos os sectores motores) com capacidade para desempenhar as suas funções de forma honesta, humilde, profissional e competente”.
No rescaldo do Março/Mulher, a nossa terceira convidada é Ana Clara Guerra Marques, bailarina, coreógrafa e uma das pioneiras e fundadora da Companhia de Dança Contemporânea de Angola já lá vão quase 33 anos.
É igualmente uma destacada estudiosa e pesquisadora de danças tradicionais e populares angolanas e não só (é a única investigadora a trabalhar sobre as danças de máscaras do povo Cokwe) utilizando os elementos recolhidos para a criação de uma linguagem própria e contemporânea para a dança angolana, que experimenta em inúmeras obras lançadas como “A propósito de Lueji (1991), Mea culpa (1992), Imagem & movimento (1993), Palmas, por favor! (1994), Neste país (1996), Uma frase qualquer…e outras (frases) (1997), Agora não dá! ‘tou a bumbar … (1998), Os quadros do verso vetusto (1999), Peças para uma sombra iniciada e outros rituais mais ou menos (2009), O Homem que chorava sumo de Tomates (2011) e Solos para um Dó Maior (2014)”.
Ana Clara Guerra Marques teve à sua responsabilidade a coordenação coreográfica dos espectáculos de abertura e encerramento da Taça Africana das Nações Orange (CAN-Angola) em 2010, foi a coreógrafa e Directora Artística dos espectáculos de abertura e encerramento do Festival Nacional de Cultura e Artes FENACULT 2014.
É Mestre em Performance Artística – Dança e Licenciada em Dança – Pedagogia, é membro individual do CID (Concelho Internacional da Dança) da UNESCO. Em 1995 recebeu o prémio “Identidade” e em 2006 foram-lhe atribuídos o “Diploma de Honra do Ministério da Cultura” e o “Prémio Nacional de Cultura e Artes” na categoria Dança, pela sua contribuição nos campos do ensino, criação artística, investigação e cultura do seu país. Em 2011 recebeu o “Diploma de Honra da União Nacional dos Artistas e Compositores Angolanos (UNAC), na categoria de “Pilar da Dança”.
Ana Clara Guerra Marques é, de facto, uma autoridade e sobre o papel e contribuição das mulheres, fala com propriedade.
O que ganhou a nossa política e a governação de forma geral, com a integração de mais mulheres, ao abrigo do princípio do equilíbrio do género?
Depois de tantas lutas ao longo dos tempos pela liberdade e igualdade de direitos das mulheres em relação aos homens, naturalmente que é uma vitória vermos, em todo o mundo (e também em Angola), mulheres liderando. Este facto torna-se mais relevante, se tivermos em conta que, em alguns contextos sociais as mulheres ainda são, de forma legitimada por culturas e governos, vítimas de um sem número de formas de abuso e violência.
Na nossa sociedade, onde o machismo continua a ser uma presença, é importante que mulheres se destaquem em lugares de liderança. Todavia, sou de opinião que ser mulher não é condição chave para um desempenho competente. Assim, acho que temos em lugares importantes de direcção mulheres que possuem e mulheres que não possuem as competências políticas, académicas e profissionais requeridas para as responsabilidades que lhes foram atribuídas, justamente por ser “obrigatório” atingir quotas de mulheres em postos de chefia. Acho que ganhamos um maior número de mulheres dirigentes mas, nem por isso, melhores resultados imediatos, dado que as fragilidades do nosso país e a sua resolução não estão, na minha humilde opinião, relacionadas com as questões de género.
Continuo, enfim, à espera que todos nos descalcemos e trilhemos, sob a mesma chuva intensa, os caminhos de lama com a coragem de enfrentar os erros do presente, para a construção de um amanhã que poderá ser realidade ainda hoje; Com todos os homens, mulheres, (outros) animais e plantas!
Há, de facto, uma abordagem diferente em torno dos diversos assuntos, particularmente de âmbito social, tendo em conta o sentimento maternal e afectivo que caracteriza a mulher, como fonte geradora de vida?
Sinceramente, não sei se há. Não sei apenas pelo facto de, a menos que cientificamente esteja provado que, por esses aspectos, as mulheres se tornam mais competentes, eu não gosto de entrar por essa espiral de suposições e subjectivismos românticos em relação às mulheres. Vejo e defendo que cada ser humano tem as suas valências, independentemente do género. Naturalmente não podemos esperar o mesmo de todos, já que as nossas capacidades natas são distintas; por isso o desempenho de todos e de cada um de nós é importante em algum lugar. Também acho que não podemos dirigir um país apenas com afectos (que são, cada vez menos, uma exclusividade feminina). Infelizmente, pois a natureza predadora humana não o permite
É preciso empoderar as mulheres? É! Porquê? Porque além de possuírem as mesmas capacidades intelectuais que os homens, nos países menos desenvolvidos elas ainda são subalternizadas pelas práticas machistas. As mulheres que lideram são um exemplo para a luta de outras? Sim! Então vamos colocar mulheres em lugares de liderança para elas se sentirem autoconfiantes e exemplares? Não! Para ocuparem lugares de decisão (ou quaisquer outros) têm de ter competência e mérito em primeiro lugar!
Sente que com esse equilíbrio e até pelo facto de se ter uma mulher como vice-presidente da República, uma mulher como presidente da Assembleia Nacional, para além de outra no Tribunal Constitucional, em diferentes departamentos e daquelas na liderança ou co-liderança de partidos a abordagem dos assuntos melhorou, se comparado com anos anteriores de predominância masculina?
Continuo a defender que mulheres capazes devem ocupar lugares de decisão. Mas acredito que os problemas do nosso país não residem no facto das lideranças serem masculinas ou femininas, mas na ausência de estratégias realistas de investimento nas pessoas, por forma a termos quadros (a todos os níveis e em todos os sectores motores) com capacidade para desempenhar as suas funções de forma honesta, humilde, profissional e competente. Se a base funcionar, homens ou mulheres governarão com maior conforto e facilidade. A pirâmide constrói-se da base para o vértice.
O que esperava mais delas (se é que esperava) como intervenção política, administrativa, cultural, desportiva e social?
Delas e deles! Continuo a esperar uma maior proximidade com as pessoas comuns, para que se percebam quais os grandes problemas das “pessoas pequenas”; continuo a esperar que se dê maior espaço aos técnicos que, de facto, além de uma formação sólida, possuem experiência comprovada, um conhecimento vivido nas suas áreas de intervenção e visões progressistas de como o país poderia progredir em sectores onde é urgente intervir, designadamente, na educação, nas artes e na protecção dos direitos de todos. Continuo a esperar que se pare de descartar quadros por razões políticas, de cor da pele, porque são sinceras nas suas opiniões ou porque se “ouviu dizer que são intragáveis”. Continuo, enfim, à espera que todos nos descalcemos e trilhemos, sob a mesma chuva intensa, os caminhos de lama com a coragem de enfrentar os erros do presente, para a construção de um amanhã que poderá ser realidade ainda hoje; Com todos os homens, mulheres, (outros) animais e plantas!