Algumas ideias sobre a função social da Universidade

POR CESALTINA ABREU

Um pouco por todo o mundo assiste-se a um progressivo processo de privatização das instituições de ensino superior, o que tem colocado a produção do conhecimento científico ao serviço de interesses particularistas, postergando as prioridades colectivas. Existe uma pressão para a produção de um conhecimento-mercadoria, imediatamente aplicado nas áreas que “importam” para a economia crescer.

A Universidade Pública tem (ou deveria ter) como responsabilidade social responder às demandas sociais pela construção de uma ciência democrática e transformadora, por uma Universidade actualizada e actuante ao serviço da sociedade. Precisa promover uma cultura académica que prepare docentes e estudantes para contextos multiculturais e abordagens interdisciplinares, que promova o pensamento criativo e desenvolva atitudes, comportamentos e capacidades para que todos possam contribuir para a sociedade primeiramente como cidadãos.

É fundamental restituir à Universidade as condições e as oportunidades de recriar a sua capacidade reflexiva e crítica e ensaiar novos processos de produção e divulgação de conhecimentos e novas tecnologias no âmbito de um programa de experimentação social inserido na formulação de um novo projecto nacional alternativo[1].

Para além dos seus deveres no campo da ciência e tecnologia, a Universidade deve sentir-se responsável também pela emergência de uma nova responsabilidade favorável à reconstrução de uma sociedade que, sem rejeitar os ganhos da ciência e tecnologia, seja capaz de reinventar uma cultura mais humana. Para isso, mostrando levar a sério a sua função cultural, a universidade deve retomar seriamente a questão de sua função social na tensão entre a cultura e a profissionalização, buscando um novo equilíbrio entre a formação técnico/profissional e a formação humanista/cultural. E isso não significa, apenas, abordar temas humanísticos ou de artes em disciplinas ou cursos criados nas grades curriculares, mas ampliar, de facto, o conceito de formação académica de forma rigorosa, o que pressupõe uma séria revisão da prática académica que tem vindo a prevalecer.

Para Goergen[2], o caminho não se percorre como antes: começando por ideias gerais a respeito da identidade ideal da universidade para depois tentar aplicá-las normativamente; é necessário que o novo modelo universitário seja construído com base na realidade concreta da sociedade e do homem de hoje. É mister, portanto, que a universidade desenvolva a necessária sensibilidade social para que, reconhecendo seus problemas e suas necessidades, possa instituir sua nova identidade e desenvolver estratégias de actuação numa perspectiva contemporânea.

Enquanto instituição social, e sendo o locus da produção, organização e acumulação do conhecimento científico, o papel da Universidade na divulgação da ciência é insubstituível no sentido em que pode e deve apoiar os professores, investigadores e os estudantes interessados nesse tipo de actividade, devendo encontrar meios de os incentivar e recompensar pelos esforços realizados no âmbito da divulgação e compreensão da ciência pelo público. Para além disso, deve desenvolver iniciativas regulares como conferências públicas, dias de portas abertas, edições a colocar nas livrarias e bibliotecas, etc. 

Na tradição da Universidade enquanto instituição secular (autónoma em relação à igreja) e republicana (autónoma em relação ao governo), saibamos eleger o saber segundo a óptica do direito do cidadão, o que se reflectirá no refrear da despersonalização e na valorização da democratização, espelhando uma sociedade em que os valores democráticos da cidadania são imperativos ético e político da vida universitária.

Do ponto de vista da pertinência e da relevância de uma tal opção, cito a Conferência Mundial sobre Educação Superior no Século XXI, organizada pela UNESCO em 1998, quando caracteriza tais conceitos: (d) (…), a educação superior deve visar a criação de uma nova sociedade, não-violenta e não-exploradora, formada por indivíduos altamente esclarecidos, motivados e integrados, inspirados pelo amor à humanidade e guiados pela sabedoria[3].

A incapacidade de pensar através das disciplinas, ou combinar o conhecimento das ciências naturais, sociais e humanidades é uma característica do dualismo moderno, separando natureza de sociedade, e o desenvolvimento das ciências naturais do desenvolvimento das ciências sociais e humanas. A propósito da relação entre Sociedade e Natureza, Peter Dickens[4] sugere que as divisões académicas resultantes do trabalho são uma das causas da alienação das pessoas em relação à natureza, já que as torna incapazes de entender a sua ‘situação ecológica’. Jerome Kagan[5], no livro As Três Culturas, vai mais longe, afirmando que “é hora dos membros das três culturas adoptarem uma postura de maior humildade” e de as três comunidades científicas reconhecerem as contribuições de cada uma – “enquanto tigres, tubarões e gaviões (…) sendo cada grupo potente no seu próprio território, mas impotente no território do outro” – para um mundo de sociedades diversas e crescentemente complexas.

Reconectar pessoas com a natureza depende, em parte, de uma Estratégia de Desenvolvimento Sustentável realista e interdisciplinar, respaldada por um arcabouço filosófico que promova a interdisciplinaridade, juntamente com a consciência epistemológica e de valores. E isto implica um envolvimento da Universidade com os poderes instituídos e com a sociedade para a produção dos cenários possíveis a serem amplamente debatidos em busca dos consensos necessários, ainda que parciais.

Mas também depende de, na sua concepção, os programas curriculares da graduação e da pós-graduação intencionalmente promoverem a reconexão com os contextos socioculturais africanos, tanto nos quadros teóricos e metodológicos, quanto na criação de espaços de diálogo com outros actores sociais, também eles produtores e portadores de conhecimento, como artistas, jornalistas, profissionais liberais, cidadãos comuns. 

Da necessidade de garantir o Ensinar e Aprender na interface Ambiente-Ciência-Sociedade

Compreender a natureza do conhecimento, os diferentes tipos de reivindicações ao conhecimento e como esses diferentes tipos de conhecimento podem ser combinados, parece-me incontornável para uma Educação Superior interdisciplinar preparada para abordar o Desenvolvimento Sustentável. 

No caso das Ciências Sociais isso implicaria ter consciência:

  • De questões epistemológicas e baseadas em valores para promover o pensamento crítico em todas as disciplinas para permitir que os estudantes integrem o conhecimento produzido em diferentes disciplinas como pré-requisitos para a interdisciplinaridade;
  • Sobre a diversidade em contextos multiculturais que constituem o quadro de referências de todos, estudantes, docentes e eventuais outras partes interessadas;
  • Da necessidade de criação de capacidade de trabalhar e agir como equipa.

A abordagem ao desenvolvimento sustentável alicerça-se na consciencialização de, e no esclarecimento sobre valores, e deve promover a autonomia moral e a ‘alfabetização política’ com base nos valores adoptados. A filosofia e a ética ambiental têm contribuições importantes quando, por exemplo, professores e estudantes são colocados perante os valores e os princípios descritos na Carta da Terra[6] e nos materiais educacionais relacionados.

Para as sociedades africanas se tornarem mais equitativas e justas, precisamos de transformar o crescimento económico – qualquer que ele seja – em progresso social e desenvolvimento sustentável, para conduzir a África para o futuro. Aumentar o nível do ensino superior em um ano, em média, melhoraria os níveis do PIB de longo prazo na África Subsaariana em 16% e aumentaria o crescimento por meio da convergência tecnológica de 0,06 pontos percentuais por ano (Bloom et al., 2014).

Como salienta o relatório da SARUA[7] “Mais do que em qualquer outra época da História, África deve concentrar-se actualmente neste facto poderoso: a relação entre a universidade africana e a sociedade africana é absolutamente dialéctica, isto é, o destino de uma está nas mãos da outra (Lulat 2005:439)[8].

A importância do ensino superior como um impulsionador do desenvolvimento, particularmente no contexto da economia global do conhecimento, é amplamente reconhecida. A África não é excepção, nem os quinze países que constituem a SADC, Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral[9]. O Relatório destaca ainda o papel do ensino superior no desenvolvimento económico, desempenhando um papel crucial na construção de sociedades democráticas (GUMEDE 2012). Nesse sentido, considere‐se a Declaração da missão da SADC:

…promover um crescimento económico sustentável e equitativo e um desenvolvimento socioeconómico através de sistemas produtivos eficientes, aprofundar a cooperação e a integração, um bom governo e paz e segurança duradouras, para que a região emerja como um jogador competitivo e eficaz nas relações internacionais e na economia mundial[10].

Lembra ainda o relatório que, para a região cumprir esta esta missão, é fundamental que a região promova a criação e o fortalecimento dos respectivos sistemas de ensino superior, para os tornar cada vez mais eficazes e eficientes, e de elevada qualidade, para que assim construam a base de capital humano necessária para o desenvolvimento económico e para uma sociedade informada que sustente um bom governo, a paz e a segurança (Kotecha 2012).

Intervenções emancipatórias que promovam o reforço do capital humano e social e contribuam para a dinamização das relações sociais dentro e entre as comunidades e o seu entorno, constituem pressupostos da construção de cidadania ao nível de base da sociedade, podendo resultar em factores de mudança na abordagem dos problemas nacionais e da participação dos cidadãos na sua resolução. 

Este fortalecimento multidimensional traduz-se não só pelo aumento efectivo das oportunidades de acesso à educação, saúde, água e saneamento, mas também pelo incremento dos níveis de confiança, de responsabilidade, de respeito e reconhecimento, influenciando positivamente o grau de participação, pressuposto fundamental do exercício da cidadania e suporte de uma luta pela expansão dos direitos humanos e pelo progresso social.

Das muitas dimensões através das quais é preciso construir conhecimento, e refiro-me não apenas ao conhecimento científico, mas também aos saberes endógenos e dos diversos actores e movimentos sociais. E desta ideia de construção de conhecimento em co-autoria, parece possível retirar dois eixos estruturantes do papel social da Universidade:

1º. Constituir-se em espaço de questionamento por excelência, que permita a identificação, a superação e a transcendência dos problemas que hoje afectam a sociedade, suas comunidades e os seus sujeitos;

2º. Contribuir para um processo de ‘desenvolvimento’ inclusivo e socialmente justo através de pesquisa fundamental e aplicada, e tornando o conhecimento acessível ao público em geral.     

Em particular, as Ciências Sociais devem contribuir, através dos seus campos de acção, para:a construção de perspectivas críticas de compreensão e análise das realidades social, cultural e política, 

  • a produção de estudos sobre a relação entre o estado e a sociedade; 
  • o desenvolvimento de teorias e métodos que permitam compreender em profundidade os chamados problemas sociais. 

Tornam-se necessárias perspectivas mais abrangentes e flexíveis para permitir a manifestação de valores e formas de organização social e política de outros contextos e filosofias, e contribuir para novas articulações nas relações entre “o ocidente” e “o resto do mundo”, consentindo ousar um outro discurso capaz de descondicionar as teorias construídas em outros lugares e momentos, e compreender as condições locais a partir das suas próprias práticas discursivas.

Incentivando a reimaginação das lógicas fundamentais para mudar as relações actuais entre as sociedades, e colocando os imaginários sociais ao serviço da reemergência de uma nova orientação para os discursos sobre a diversidade sociocultural prevalecente no mundo de hoje, será possível estruturar uma nova visão destas realidades locais sobre si próprias e emprestar-lhes a força teórica necessária para a refundação de um mundo pós-colonial, pós-ocidental e pós-capitalista. 

Cabe às ciências sociais e humanidades contribuir para o reconhecimento e a transcendência dos pontos de diferença, produzindo e disponibilizando instrumentos analíticos, entre os quais os ideológicos, que facilitem o diálogo entre povos e culturas, e a resolução de conflitos de diversa natureza, criando as pré-condições para acabar com os monólogos entre poderosos e fracos[11]

Referências de consulta:

[1] Santos, Boaventura de Sousa (1989). ”Da ideia de universidade à universidade de ideias”, e (2005) “A Universidade do Século XXI. Para uma reforma democrática e emancipatória da universidade”. São Paulo: Cortez, 2005;

[2] Goergen, Pedro (1998), “Ciência, sociedade e universidade”. Educação e Sociedade – v.19 – n.63 – 1998;

[3] UNESCO, World Conference on Higher Education in the Twenty-first century: Vision and Action. Paris, 1998;

[4] Dickens, P. (1992), Society and Nature: Towards a Green Social Theory, Harvester Wheatsheaf, London;

5] Kagan, Jerome (2009). “The Three Cultures: Natural Sciences, Social Sciences and the Humanities in the 21th Century. Cambridge University Press;

[6] A Carta da Terra é uma declaração de princípios éticos fundamentais para a construção, no século XXI de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica. Oferece um novo marco, inclusivo e integralmente ético para guiar a transição para um futuro sustentável. Reconhece que os objectivos de proteção ecológica, erradicação da pobreza, desenvolvimento económico equitativo, democracia, paz e respeito aos direitos humanos são interdependentes e indivisíveis. O documento é resultado de uma década de diálogo intercultural, em torno de objectivos comuns e valores compartilhados. O projecto começou como uma iniciativa da ONU mas transformou-se, e foi finalizado como, uma iniciativa global da sociedade civil sob a supervisão da Comissão da Carta da Terra, em 2000;

[7] SARUA é a associação das direcções das universidades públicas dos 15 países que constituem a região da SADC. A sua missão consiste em promover, reforçar e dar incremento ao ensino superior, à pesquisa e à inovação, através de uma colaboração interinstitucional alargada e de iniciativas de criação de capacidades na região. Promove as universidades como importantes contribuintes para a construção do conhecimento, do desenvolvimento regional a nível socioeconómico e cultural, e para a erradicação da pobreza;

[8] Kotecha P (exec. ed.), Strydom‐Wilson M e Fongwa SN (2012) Um Perfil do Ensino Superior na África Austral – Volume 1: Perspectiva regional. Joanesburgo:  SARUA;

[9] Os 15 Estados que integram a SADC são: Angola, Botsuana, República Democrática do Congo, Lesotho, Madagascar, Malawi, Ilhas Maurícias, Moçambique, Namibia, Scheychelles, Africa do Sul, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbabwe;

[10] www.sadc.int/english/about-sadc

[11] ALATAS, Syed Farid (2002), “The Role of Human Sciences in the Dialogue Among Civilizations”. Development and Society, vol. 31, n°.2 [265-279]. RANDERIA, Shalini (1999), Beyond Sociology and Social-Cultural Anthropology: The Place of the Non-Western World in a Future Social Theory. Mimeo. MOUFFE, Chantal (org.), The Challenge of Carl Schmitt, Introduction, London: Verso. 

Sobre a autora:

Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e o Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.

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