O NACIONAL NA ROTA DO CAXINDE

O inesquecível Ruy Duarte de Carvalho, só escrevia coisas belas, excepcionais. Honra-me bastante ele ter sido um dos nossos. Que alimentou projectos para a nossa instituição.

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Ponto prévio – Entendo que pretos diferentes (os tais que usam óculos), são os cidadãos negros instalados verticalmente na sociedade. Por norma, são pessoas com carácter, capazes de pensar, sem complexos, livres, sobretudo, da maldição do preconceito racial. Distinguem-se de gente desnivelada (brancos, mulatos e pretos), a espécie má da humanidade, a precisada de óculos para enxergar o ridículo da sua acção racista e intolerante. 

Ponto 1 – Partiu, aqui em Lisboa, mais um dos meus bons amigos. Um amigo sério, um cidadão exemplar. Vamos acompanhá-lo hoje, domingo, à sua última morada. Manuel Sebastião, antigo funcionário público reformado e velho correligionário das lides da Chá de Caxinde, cansou-se da vida, deixou-nos e foi descansar para a eternidade. Em nós, seus amigos, ficará para sempre a saudade da sua presença. Era um preto diferente. Era daqueles que usava óculos. 

Ponto 2 – Faço o que posso para ser verdadeiro. Tento ser o mais correcto possível com as pessoas. Faz parte da minha educação. Apesar disso, nem sempre consigo sê-lo. E quando os lapsos e omissões acontecem, utilizo o melhor remédio. Encarando o prejudicado pelo meu erro e pedindo desculpas. É, sem dúvida, o recurso ideal para essas situações. E é por isso que estou aqui hoje. Para penitenciar-me perante o Ministro da Cultura e Turismo do nosso Governo, o músico, compositor e escritor, Filipe Zau. Considero-o um amigo de longa data e, por virtude de cumplicidades culturais de várias matrizes, estimo-o e respeito-o, desde há muito tempo. Julgo e sinto que ele tem a mesma consideração por mim. 

Vou aos factos. Na minha crónica de domingo passado, faltou dar a conhecer ao público leitor um facto relevante que levou a interpretações erradas do tema abordado. Na verdade, Filipe Zau, Ministro da Cultura e Turismo do nosso Governo tomou a inédita iniciativa de reunir, há cerca de dois, três meses, a direcção da Associação Chá de Caxinde, para tratar do caso do Nacional Cine-Teatro. Tive o privilégio de estar presente nessa reunião. Foram alinhavadas estratégias visando a recuperação da sala de espectáculos e o seu retorno à actividade normal. Foi nessas circunstâncias que o meu texto pecou ao omitir esse facto. Devo dizer agora, sem quaisquer subterfúgios, que no decorrer dos trinta anos que me ligam simultaneamente à Chá de Caxinde e à casa de espectáculos em questão, o governante foi, seguramente, o único membro do nosso Governo a tomar atitude clara e coerente em defesa da reabilitação dessa relíquia do nosso património cultural. No decorrer da longa e frutuosa conversa havida, mostrou intransigência e apego à causa cultural de Angola e, o que é importante, desejo de ajudar. Apesar do que fica exposto e sem o intuito de justificar coisa alguma, torna-se legítimo esclarecer que, a ocorrência desse lamentável lapso, deve-se, também e em certa medida, a alguma falta de crença que se tornou recorrente, de muitos anos seguidos de promessas não cumpridas, de exclusão e esquecimento inadmissíveis das autoridades deste sector. Deve ser bem entendida esta parte da questão.

Não seria justo se não mencionasse os nomes do Dr. Manuel Nunes Júnior e da dra. Vera Daves que, em momento anterior mas também recente, na qualidade de Ministro de Estado para a Coordenação Económica e Ministra das Finanças, respectivamente, me deram a honra de com eles dialogar num encontro onde, na presença do Ministro Filipe Zau, abordamos, conjuntamente, as possíveis soluções para a reabilitação do Nacional Cine-Teatro. Os resultados parecem estar à vista, e ainda bem que se mostram positivos. Por tudo o que fica dito, reitero o meu pedido de desculpas, estendendo-o a todos os governantes citados.

Ponto 3 – Segue agora o texto desta semana no seu verdadeiro contexto.

Como o prometido é devido, tentarei trazer à lembrança, hoje e nas edições futuras, factos, trechos, excertos de escritos, passagens de acontecimentos que fazem o percurso da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde, na Angola independente. Era de um modo simples, que as coisas entre nós iam acontecendo.

De entre muitas ideias em carteira, foi iniciado o ciclo Conheça Angola, onde se deu primazia ao Kwanza-Sul, e especificamente a Calulo, para a sua abertura. Decorriam os primeiros anos da década de noventa do século passado, e ainda não estávamos instalados no Nacional Cine-Teatro. Para essa actividade, conseguimos a cedência do espaço da Livegul (Liga da Velha Guarda de Luanda), mesmo ali ao lado do velho Nacional. Sessão rodeada de alguma expectativa e recheada de momentos agradáveis. Neste soprar de ventos da memória, não me escapam as presenças animadas de Idalina Costa e Esperança Carlos. Que bem que dançavam aquelas senhoras! Era um par que brilhava e recebia aplausos. Marcaram significativamente uma época na nossa vida divertida. Lembro ainda que no meio de um número razoável de pessoas ávidas de novas emoções, lá estava o inesquecível casal Manolo Simeão/Anália de Vitória Pereira, a dançar e a distribuir, como sempre o faziam, boa conversa e melhor disposição. 

Ruy Duarte de Carvalho Regente agrícola, estudou cinema em Londres e Antropologia em Paris.

O orador principal da sessão cultural foi o escritor e poeta Ruy Duarte de Carvalho. Na sua linguagem fluente e cativante, límpida como a sua escrita, falou e disse:

“…Só ontem me apercebi da responsabilidade que me cabia por ter aceitado, com um indesmentível prazer embora sem dúvida levianamente, a incumbência de vir hoje aqui implicar-me desta forma num acontecimento de inspiração revivalista. A honra que me é concedida, como todas as honras, exige ser honrada. E embora o uso da palavra, escrita ou falada, constitua em grande parte o meu ofício, falar aqui e agora comporta dificuldades a que eu na verdade não estou habituado. Se ontem, enquanto falava no Museu de Antropologia eu tinha a proteger-me a circunstância de operar no contexto profissional especializado e defendido pelas regras de um jogo em que me sinto à vontade, o mesmo não se passa tanto hoje aqui, evidentemente.

Perante um público unido pela via de uma referência comum que tem tanto de concreto na sua precisa configuração – trata-se de uma referência geográfica – quanto de impreciso no que possa dizer-se a seu respeito. A questão é pois a seguinte: como desempenhar uma missão assim tão particular, a dar um testemunho particular sobre Calulo, perante quem tem de Calulo, seguramente, um conhecimento efectivo muito maior que o meu?

É verdade que prometi vir falar da minha experiência de regente agrícola. Mas eu não vim aqui falar para uma assembleia de agricultores e ainda que assim fosse, que poderia dizer de algum valor, sobre a agricultura de Calulo, se saí de lá há mais de vinte anos e não exerço o ofício de técnico agrário há mais de quinze? Falaria do palmar, sim, das excepcionais condições que fazem do Libolo o terreno de um meio ecológico generosamente apto a acolher lado a lado, e em grande extensão, o palmar, precisamente, e o café, e as culturas alimentares e os chamados géneros pobres, a planta medicinal que os alemães cultivavam, e o sisal, e o gado e outras coisas que se está mesmo a ver que ali dava para dar, que sei eu, coisas. Mas não é isso certamente que estão à espera que eu faça. E ainda bem, porque não saberia fazê-lo.

Poderia tentar uma análise de economia agrária. Mas fundamentada em quê? Na minha experiência e na minha memória de há vinte anos? Quem aliás, hoje, estará em condições de fazer uma análise económica, que não poderá ser senão prospectiva, sem primeiro ir lá para ver como é que é? De que poderei então, afinal, falar com propriedade? Da minha experiência humana localizada em Calulo? É verdade que tudo ali me passou pela pele de regente agrícola, e isso me garantiu um contacto muito estreito com a terra e as pessoas, e que eu me via então perante os temas e os dilemas de quem tem vinte e cinco anos e precisa de dar uma ordem à vida…” 

Este texto é, na minha opinião um excelente trabalho, encantador em muitos aspectos, do grande escritor que foi. Aliás, o inesquecível Ruy Duarte de Carvalho, só escrevia coisas belas, excepcionais. Honra-me bastante ele ter sido um dos nossos. Que alimentou projectos para a nossa instituição. Julgo que a maioria dos meus leitores, pelo menos os que o conheceram, estará de acordo comigo e, nessas circunstâncias, prometo transcrever a parte final da sua intervenção, na próxima edição. Não teria sentido não o fazer.

Até lá, recebam os meus habituais cumprimentos e o desejo permanente de estar convosco, no domingo, à hora do matabicho.

Lisboa, 24 de Setembro de 2023

Calulo em 1935

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