A REALIDADE VIRTUAL E O SONHO AMERICANO

Os desejos do Presidente Biden esbarrarão com as dificuldades institucionais e outras que caracterizam o contexto angolano e poderão não entusiasmar os possíveis investidores que saberão investigar vantagens ou desvantagens comparativas.

FERNANDO PACHECO

Começo pelo positivo. O peso político da agricultura angolana, que desde a independência sempre esteve para cá do petróleo, aumentou nos últimos anos graças à conjugação de três factores: a continuada recessão económica de 2015 a 2020 a que se junta a carga da dívida pública, a vocação agrícola do Presidente João Lourenço e o protagonismo e influência da AAPA – Associação Agropecuária de Angola, uma associação empresarial angolana que cumpre verdadeiramente oseu papel, tanto de influência como de capacitação dos seus membros.

No passado mês de Julho, o protagonismo da AAPA fez-se notar pelo resultado das negociações que levaram o Executivo a anunciar algumas medidas importantes para o sector. Entre elas a de operacionalizar a campanha agrícola 2023-2024, com uma linha de crédito de 43 mil milhões de kwanzas a ser conduzida pelo BAI para os empresários que justificassem essa necessidade.

Há cerca de uma semana o Conselho de Governação Local realizou uma actividade que me fez recordar os tempos de Malanje nos anos 80, quando em encontros alargados entre o elenco governativo, os então comissários (hoje administradores) municipais e os representantes dos agricultores se faziam os balanços de cada ano agrícola e se perspectivava o seguinte. Era um exemplo, nos condicionalismos da época, de boas práticas participativas que se perderam na poeira dos tempos, e que a “democracia” actual não consegue resgatar. Boas práticas que uma organização como a ADRA tem procurado adoptar em várias circunstâncias, com excelentes resultados no âmbito do empoderamento e da cidadania.

A par desses episódios, outros avanços há a assinalar. A produção agrícola deste ano aumentou cerca de 6%, o FADA – Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Agrário foi capitalizado com cinco mil milhões de kwanzas para financiamento às caixas comunitárias – uma novidade que a propaganda governamental tem “sesquecido” –, a produção de adubos azotados e fosfatados deixou de ser uma miragem, a agricultura vê a sua fatia no OGE 2024 aumentada em 82% e a novidade das novidades, que deliciou os nossos propagandistas: vêm aí os americanos e o Presidente Biden já garantiu que Angola vai ser um exportador líquido de alimentos em 2027! Já lá vamos.

Mas, parafraseando João Armando, o director do semanário Expansão, a nossa realidade é por vezes virtual. Ao contrário do que é veiculado pelo senso comum, Angola não é um paraíso para a actividade agrícola devido a défices naturais e estruturais.

Os decisores e o público em geral desconhecem que os nossos solos são, na sua maioria, pouco férteis, muito ácidos e muito pobres em matéria orgânica. Nada que não possa ser resolvido com conhecimento e tecnologia, para o que são necessários recursos financeiros, e ainda mais com investigação. Neste quesito, há que notar que nos últimos 12 anos do período colonial os institutos de investigação agronómica e veterinária fizeram mais do que nós em mais de vinte anos de paz com mais doutorados e mestres.

E foram esses feitos que permitiram o conhecimento actual, pois acrescentamos muito pouco, porque tem faltado capacidade institucional e recursos financeiros que têm sobrado para projectos e investimentos desperdiçados.

A análise da informação contida no Relatório da Campanha Agrícola mostra algumas manifestações da realidade virtual, das quais destaco três. O cálculo da produção familiar é feito por amostragem a partir de um universo de famílias agricultoras estimado em três milhões, quando o obtido com o Recenseamento Agropecuário em 2020 é de apenas 2,2 milhões de famílias. Não há uma explicação para esse diferencial, mas o certo é que com ele a produção calculada pode estar empolada em quase 50%. Por tal razão, deve haver uma explicação pública.

Uma outra manifestação da realidade virtual está ligada à produção de milho por hectare (a cultura alimentar mais importante em Angola). Segundo o relatório é de 1,2 toneladas, enquanto as da Zâmbia e Moçambique, países onde a investigação agronómica está bastante mais avançada, utilizam sementes de muito melhor qualidade e muito mais fertilizantes (a Zâmbia consome 30 kg por habitante e Angola menos de três) apresentam produtividades de 2,3 e 1 tonelada, respectivamente. É difícil entender, sem uma explicação válida, como temos maior produtividade que Moçambique e metade que a da Zâmbia, pois a diferença para esta deveria ser maior.

A terceira anomalia reside nos aumentos brutais de produção esperados para 2024. A produção de cereais irá aumentar mais de 100%, a de café 100%, a de carne mais de 30% e a de ovos triplicará. Os aumentos dessas produções de 2023 foram de 5,3%, 9,6%, 6,9% e 2,2%, respectivamente.

Em 2008 o MPLA definiu para o milho uma meta de produção de 15 milhões de toneladas para 2012, depois o Plano Nacional 12-17 reduziu para 5 milhões e a produção de 2023 ainda está em 3,2 milhões de toneladas. Só com um milagre será possível duplicar essa produção e atingir as outras metas.

As esperanças depositadas no putativo investimento americano não podem, uma vez mais, fazer esquecer a nossa realidade. Para além do ambiente de negócios que está longe do desejável, incluindo a sua segurança jurídica, temos ainda muitas limitações estruturais específicas do sector agrícola, das quais sobressai a fragilidade institucional. Ao longo da década de 10 a ADRA e o OPSA insistiram junto da Assembleia Nacional, sem sucesso, na necessidade de as sucessivas propostas de OGE incluírem verbas para o recrutamento de técnicos para o sector, tal como se fazia para a Educação e para a Saúde. O MINAGRIF apresenta agora a necessidade de admissão de oito mil técnicos e no PDN 23-27 apenas estão contemplados 1.200. Sem um esforço enorme no reforço das capacidades institucionais, o sector não poderá facilitar e acompanhar os investimentos nem alcançar as metas desejadas. Os desejos do Presidente Biden esbarrarão com as dificuldades institucionais e outras que caracterizam o contexto angolano e poderão não entusiasmar os possíveis investidores que saberão investigar vantagens ou desvantagens comparativas.

O atraso tecnológico e as dificuldades da agricultura são um grande desafio, mas também uma oportunidade para o empresariado se entendermos o agronegócio em sentido holístico em toda a cadeia de valor, o que inclui imputes, equipamentos, sementes, fertilizantes e equipamentos e materiais diversos. Pode não ser para grandes empresários, dos que têm a possibilidade de fazerem agricultura 3.0 ou 4.0, muitos deles com livre trânsito para obterem financiamentos das sucessivas linhas disponibilizadas pelo Executivo. Mas pode ser para micro e pequenos empresários, para aqueles que nem sequer têm tractor ou usam fertilizantes, mas tão necessários são para preencherem o vazio empresarial existente na produção e no comércio e serviços, e capazes de não voltarem as costas ao povo e com isso darem vida aos municípios.

Uma última nota. A sociedade luandense “descobriu”, no Dombe Grande, uma realidade existente pelo menos desde o fim da guerra. Cidadãos da RDC compram feijão (e por vezes outros produtos) aos agricultores de Malanje, Cuanza Sul, Bié e outras províncias, e levam-no para o seu país, o que tem permitido criar e consolidar relações de confiança entre as duas partes, permitindo a compra de produtos antes das colheitas ou o financiamento prévio da actividade produtiva. Entre as preocupações patrióticas de muitos angolanos, a mais radical foi a de que se trata de comércio e exportação ilegal e fuga ao fisco. A elite pensante tem de perceber que o sonho americano não deve impedir a percepção de como viver na realidade real.

PS1. Eu também ficaria muito satisfeito com o Centro de Ciência de Luanda se fosse menos luxuoso, pois esse luxo é um insulto aos desgraçados que não têm assistência médica nem medicamentosa e ao número de crianças (36%) que deveriam estar matriculadas da 1ª à 6ª classe e estão fora da escola sem esperança de desfrutar algum dia do luxuoso Centro.

PS2. O objectivo da CIVICOP é o perdão ou o acirrar de ódios?

Novo Jornal, 13/12/23

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