A INDEPENDÊNCIA E A TORNEIRA SEMPRE A INUNDAR A SALA

O balanço dos 48 anos de independência mostra bem que não tem havido vontade, nem mesmo capacidade, para fechar a torneira que inunda a sala ao longo dos anos, e por isso o “bombó molhou”, como se diz na gíria.

FERNANDO PACHECO

Comecemos pelo princípio. Os jovens precisam de saber, sem os alardes da propaganda balofa da comunicação social pública, o que representavam para a maioria dos angolanos as humilhações e maus tratos, o chicote e a palmatória, a pobreza material e não material, o esbulho de terras e o trabalho indigno. O que representava a impossibilidade de os negros da cidade de Nova Lisboa irem ao Cinema Ruacaná, não porque houvesse um cartaz a proibir a sua entrada, mas porque sabiam que não podiam ter esse “atrevimento”, o que era bem pior, dados os exemplos do quotidiano como, por exemplo, quando o dono da Pastelaria Diana (ao lado do Ruacaná) havia vetado a entrada, nos anos 50, do jovem Jonas Malheiro Savimbi, veto só levantado por intervenção enérgica do mais tarde Juiz Orlando Rodrigues. O que significava que desde a sua abertura, em 1963, até 1975, apenas terem estudado no conjunto dos cursos de Agronomia e de Veterinária um único negro da região do Huambo, Fadário Muteka, e mais quatro negros originários de Malanje (2), Luanda e Cuanza Norte. E muito mais poderia dizer, também para refrescar a memória dos mais velhos que já não se lembram dos “gloriosos” tempos coloniais.

Para melhor compreensão da situação actual, é também necessário dar conta de que a responsabilidade da transição caótica para a independência não pode ser atribuída exclusivamente aos angolanos, nem aos portugueses que derrubaram o fascismo e o colonialismo (que obviamente também tiveram a sua), mas a outros aspectos que derivam da irracionalidade colonial, dos quais destaco o ódio racial acumulado devido à opressão do passado; os sentimentos de vingança relativamente aos crimes, particularmente os cometidos na repressão que se seguiu aos acontecimentos de 1961; e a ignorância política da esmagadora maioria da população portuguesa, o que a levou a temer o futuro ou a rejeitar o convívio com um governo de maioria negra ou mesmo a aderir a acções ilegais contra a independência.

Ainda como ajuda à compreensão dos nossos insucessos não podemos esquecer outros factos, como as guerras de diferentes conotações até 2002 e a crise do 27 de Maio, que provocaram danos extremamente gravosos até hoje por reparar.

Dito isto, será possível entender melhor o significado do orgulho e a dignidade de sermos um país independente. Angola, apesar dos pesares, é um país com um elevado nível de consciência e coesão nacional e aberto ao mundo e às influências externas. Em Angola teve lugar uma impressionante mobilidade social ascendente, que permitiu, por exemplo, que descendentes de antigos indígenas de segunda ou terceira geração pudessem chegar a cientistas com licenciaturas ou doutoramentos. Não perceber a importância disso ….

Cabe também aqui o reconhecimento de quantos, apesar dos erros, tiveram a coragem de enfrentar o monstro do colonialismo, alguns deles abandonando vidas cómodas do ponto de vista material e financeiro. Que tiveram o mérito de terem conduzido a luta com enormes sacrifícios e riscos de vida para que Angola fosse um país independente e os seus filhos pudessem aspirar a um futuro melhor, ainda que a longo prazo.

Posto isto, podemos então falar das decepções e frustrações que venho sentindo pelo descaminho a que nos atirou o MPLA e seus sucessivos governos desde 2002, pois os anos anteriores têm pelo menos o benefício da dúvida pelas razões já assinaladas. Nada agora pode justificar o estado do país e da sua população, a pobreza e a fome, as injustiças, a desigualdade extrema, que já não podem ser atribuídas ao colonialismo e às guerras, mas sim ao desvio e má utilização dos recursos fabulosos que são pertença de todos os angolanos, por parte de quem se aproveita da sorte de não terem tido azar, até a de terem nascido de pais que um dia foram vistos como heróis ou artífices da independência. E aproveitam essa sorte para gastarem dinheiro “recuperado aos colonos” ou que gerem para comprarem viaturas topo de gama, relógios e roupas incrivelmente caros, vivendas sumptuosas, viagens em primeira classe, férias em destinos de sonho. Um tipo de consumo que faria corar de indignação Samir Amin, o africano que nos anos 70 tanto denunciou o consumo de luxo nos países recém-independentes da época, que estava a abissal distância deste.

Falhámos na educação, um insucesso total que adia o país por muitas gerações, ainda que nos vangloriemos das cerca de 100 instituições de ensino superior e os seus mais de 200 mil estudantes. Falhámos no desenvolvimento económico e na eliminação da dependência do petróleo, continuando a gastar mais de dois mil milhões de dólares na importação de alimentos e a ter elevados níveis de desemprego e salários extremamente baixos para a esmagadora maioria da população. Falhámos na descentralização prevista na Constituição e adiada de modo obsceno desde há mais de uma década, que penaliza as populações dos municípios do interior por exclusão e êxodo rural, mata a vida das vilas outrora tão importantes como espaços de sociabilidade e interface entre comunidades rurais e centros urbanos e acentua as assimetrias regionais. Falhámos na construção da democracia, que se imaginava florescer com o fim da guerra e, pelo contrário, teve recuos acentuados em matéria de comunicação social e de outras liberdades, como desassombradamente afirmou um deputado do MPLA durante o 2º Congresso de Direito Constitucional que aconteceu na passada semana, apesar do seu cuidado em dar a conhecer que falava como académico e não como político.

A estas decepções tenho de juntar as preocupações. Desde logo com a falta capacidade de que dá provas o Executivo e o partido que o sustenta de resolverem problemas como os subsídios aos combustíveis cujo corte vem sendo adiado desde há quase dez anos, para não ir mais atrás, facto que está a conduzir a Sonangol para a falência por insuportável dívida do Tesouro. Também com a falta de rumo e de visão mais uma vez presente em políticas, planos e programas para alavancar a economia que falham a cada ano que passa. Há menos de um ano anunciou-se que o PIB cresceria 3,3% e teríamos uma inflação de 11,1% em 2023, agora diz-se que, afinal o PIB só crescerá 0,4%, ou seja, não crescerá, e a inflação será de 17,8%. As décimas são deliciosas, visto que os erros não são de décimas, mas de muitos “porcentos”, e sem explicações credíveis jura-se que o PIB crescerá 3% em 2024 e a inflação será de 15%. Alguém acredita? Num ano em que se esperam aumentos dos preços dos combustíveis e da electricidade?

A torneira continua a inundar a sala. Até quando?

Novo Jornal, 17/11/23

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