A ESTRATÉGIA 2050 E AS CALEMAS QUE FLAGELAM ANGOLA

Talvez, a última oportunidade para o MPLA assumir a liderança de um projecto nacional de consenso e com isso ultrapassar a crise política, económica e social que afecta a sociedade, ou pelo menos atenua-la, e com isso recuperar alguma da confiança perdida nos últimos anos e que os resultados das eleições de 2022 e a crescente contestação popular não permitem escamotear.

FERNANDO PACHECO

Uma enorme calema está a varrer a costa política angolana, fazendo quase esquecer os planos de divulgação e discussão da Estratégia Angola 2050 proposta pelo Executivo. Poderá não ter sido concertado, mas o facto é que no final das contas os governantes tiram pelo menos um dividendo desta situação – a Estratégia acabará caucionada pela sociedade angolana sem grande contestação. Por tal razão, importa tecer algumas considerações sobre o documento apresentado e estabelecer algumas pontes com a dita calema.

É inquestionável a qualidade técnica do documento, feito por consultores competentes, bem como o seu alinhamento ao que politicamente se produz hoje no mundo em países tão díspares como a China ou a Suécia. Mas a verdade é que lhe falta alma, que só poderia ser incorporada por profissionais que conhecem e amam Angola e vivem os seus sabores e dissabores. Com quase 50 anos de país independente é inaceitável que não sejam envolvidas instituições científicas e académicas e empresas angolanas, no todo ou na modalidade de “joint ventures”. Isso é resultado da pouca atenção concedida ao conteúdo local ao longo das últimas décadas e do modo errado como tem sido tratado o tema da consultoria externa. Recorde-se que os OGE de anos entre 2010 e 2014 atribuíam a obscena quantia de 1.300 milhões de dólares a essa assistência técnica, comprovadamente sem os devidos benefícios para o país.

Não sendo possível analisar aqui o documento em detalhe, levanto algumas questões de carácter geral que tentam agregar alguma alma. Em primeiro lugar a dimensão política. Se a estratégia é para Angola e não para o governo incumbente ou o partido que o suporta, então as forças políticas, económicas e sociais teriam de ser envolvidas, não nas estéreis “auscultações” que fazem morada entre nós, mas em todo o processo desde a concepção de uma visão estratégica consensual ligada à consolidação da nação, até à definição das grandes linhas de orientação que possam sustentar um projecto comum, numa antecipação da elaboração técnica do documento. Quando em 2004-2005 foi elaborada a Estratégia 2025 havia o que se chamou Agenda Nacional de Consenso, que na realidade era o programa político do MPLA como na altura denunciei, mas que logo de seguida foi abandonada.

Em segundo lugar a dimensão institucional. Diagnosticada a enorme fragilidade transversal ao universo institucional e empresarial angolano, bem como as colossais dificuldades para conceber, implementar e gerir “projectos” e medidas” em espaços mais alargados, era importante o equacionamento de métodos e planos para o desenvolvimento das forças produtivas e consequentemente das instituições. Desenvolvimento que tem sido prejudicado pelo modo como são desvalorizadas em favor de práticas como, por exemplo, a criação de ineptas comissões multissectoriais que apenas consomem tempo e energias.

Em terceiro lugar a dimensão estratégica, no sentido do “modus faciendi” para fazer as coisas acontecerem. A experiência ensina que os técnicos das instituições sentem penosas dificuldades de entendimento e assunção das modalidades propostas por falta de ligação às diversidades culturais e territoriais. Tome-se como exemplo a atenção dada à agricultura familiar, considerada prioridade na Estratégia 2025, mas muito pouco concretizada, entre outras razões pelo desconhecimento dessa realidade e pelo preconceito como ela é encarada, não obstante continuar a afirmar-se como a responsável por cerca de 80% da produção alimentar. Felizmente a Estratégia volta a considerar que a sua evolução, e não a sua substituição, deverá ser uma importante aposta.

A Estratégia Angola 2050 era, talvez, a última oportunidade para o MPLA assumir a liderança de um projecto nacional de consenso e com isso ultrapassar a crise política, económica e social que afecta a sociedade, ou pelo menos atenua-la, e com isso recuperar alguma da confiança perdida nos últimos anos e que os resultados das eleições de 2022 e a crescente contestação popular não permitem escamotear. Uma crise que nas últimas semanas, e na sequência dos últimos anos, foi espevitada por alguns acontecimentos que importa fazer notar e acabam por delinear uma quadratura do círculo quase perfeita.

Desde logo a vertiginosa desvalorização do kwanza, depois da absurda e eleitoralista valorização durante o ano de 2022 que havia facilitado um aumento significativo das importações em prejuízo da produção nacional e da sempre adiada diversificação da economia. Em seguida, a cruzada encetada contra as quitandeiras e os armazenistas alimentadores do mercado informal sem que fossem encontradas alternativas credíveis, o que, associado ao fenómeno cambial, veio agravar ainda mais a insuportável situação de pobreza (de acordo com avaliação recente do FMI Angola ocupa o 54o lugar entre os países mais pobres no mundo).

Depois, as notícias que circulam sobre a colocação à venda de alguns dos mais importantes empreendimentos agro-pecuários, que confirmam os alertas que venho fazendo sobre a necessidade de tais empreendimentos serem analisados não apenas do ponto de vista da eficácia, mas também da eficiência, bem como a crescente perda de confiança do empresariado depois das eleições de 2022, segundo o Indicador sobre o Clima Económico, divulgado pelo INE. O que em nada contribui para atrair o mais do que desejado investimento estrangeiro directo , a ver se a economia angolana melhora o seu 76o lugar entre os países que mais crescem.

Finalmente, a chamada cereja em cima do bolo, sob a forma da inoportuna, desorganizada e penalizadora para a população mais pobre, retirada do subsídio ao preço da gasolina, bem como o modo como foi encarada a sua mitigação. Os efeitos na subida dos preços fizeram sentir-se de imediato, deitando por terra a mirífica intenção de redução da inflação de 2023 para um dígito (ainda segundo o FMI temos a vigésima maior taxa de inflação). De “esquebra”, ainda o modo imprudente como o Presidente, no momento em que conhece o maior índice de impopularidade e de contestação, abordou a questão de um eventual terceiro mandato. Na senda de outros posicionamentos anteriores, a única resposta aceitável ao questionamento de jornalistas estrangeiros seria a remissão para aquilo que estabelece a Constituição. E como se não bastasse, a confirmação dos recuos democráticos com a tentativa de aprovação de um regulamento das ONGs fortemente contestado pela sociedade civil não domesticada.

Na passada segunda feira a comitiva presidencial que seguia em direcção ao Fórum Internacional de Tecnologias de Informação e Comunicação foi vaiada na rua da Samba por um grupo de jovens que se manifestavam espontaneamente. Não perceber os sinais da sociedade e atribui-los a mera manipulação política por parte de terceiros é uma prática que historicamente nunca deu certo.

Novo Jornal, 16/6/23

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